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Carta Maior, 30/09/2014
Por Léa Maria Aarão Reis
"Eles dizem: ‘viemos em paz’. Com uma Bíblia numa mão e com uma arma na outra," diz, sardônico, um velho africano se referindo à neocolonização do Sudão do Sul por um dos inúmeros grupos predadores do seu país e desse continente rico em hidrocarbonetos, água e recursos naturais que está sendo dilapidado.
Os grupos são uma triste vitrine de um dos piores aspectos da globalização: agências internacionais – inclusive ONGs, algumas de duvidosa fama -; frios funcionários da ONU e da Usaid; poderosas corporações chinesas; mercenários treinando exércitos locais; especialistas na localização de campos de milhares de minas a serem desenterradas (deixadas por levas anteriores de colonizadores); mercadores de armas pesadas que desembarcam sem pudores e sem cessar, nos portos e em pistas semi-clandestinas sua letal mercadoria; senhores da guerra; políticos corruptos que se venderam aos estrangeiros amealhando as fortunas depois gastas nos hoteis cinco estrelas de Paris; e, naturalmente, missionários norte-americanos firmemente dispostos a implantar um “novo Texas” no Sudão do Sul. "O clima aqui é ótimo; até parece com o nosso”, diz a missionária ao chegar na África, companheira de outra catequista tentando vestir os rapazes com jeans e calçar meias e sapatos no garotinho africano apavorado, chorando convulsivamente.
Ou o professor da escola que proíbe as meninas de assistirem aulas usando seus belos ornamentos, brincos, colares, pulseiras.
Num monitor de televisão, vê-se Hillary Clinton, ainda no seu reinado como secretária de estado do governo do presidente afroamericano Barack Obama dirigindo-se à população, candidamente, três anos atrás, quando do plebiscito que fatiou o Sudão em dois: "A África pode ser o celeiro (de alimentos) do mundo," diz a ex-secretária. Hoje, um terço da população do Sudão do Sul sofre de "insegurança alimentar". Eufemismo técnico de organismos das Nações Unidas para pessoas que sentem fome e engrossam as estatísticas dos que morrem pele e osso.
O filme do belga Hubert Sauper, We come as friends (seu título é uma irônica alusão aos herois da ficção cientítica que se apresentam aos alienígenas – “nós viemos como amigos” portando temível metralhadora para garantir a tal paz porque ninguém é de ferro) ganhou o Peace Film Prize do Festival de Berlim deste ano e sacudiu o primeiro fim de semana do Festival do Rio.
Viemos em paz (produção da França e da Áustria deste ano) é demolidor. Não é panfletário. Tem estilo, é seguro, trabalho de profissional talentoso que usa uma câmera viva, uma montagem esperta e segura o tema espinhoso em sua mais de uma hora e meia de duração, musicado pela bela trilha de tristes e lânguidas canções. Deixa, no fim, uma plateia sem voz.
Espera-se que o filme de Sauper, resultado de sua viagem em avião monomotor voando a 4000 metros e a 120 quilômetros de velocidade sobre o Sudão seja adquirido para exibição no Brasil ou disponibilizado no youtube para consumo gratuito.
Ele é um dos 130 documentários exibidos na mostra do Rio. São mais de 20 dos filmes, alguns denunciando o que se passa no nosso mundo cão. Relembra pretensões coloniais decisivas. A França, indo em paz até as região ricas em petróleo para expandir um império do Índico ao Atlântico, num movimento horizontal, e a Grã Bretanha chegando em paz para dominar o continente num movimento vertical, do delta do Nilo ao Cabo.
O filme alude à bizarra figura do presidente do Sudão do Sul, Salva Kiir, cujo inseparável chapéu de cauboi é presente de seu amigo George W. Bush. (Talvez de então a obsessão de fundar um “novo Texas” no pobre rico Sudão do Sul cristão e canibalizado.)
Dividir para governar melhor – o velho bordão dos colonizadores ingleses deu certo na região. Tudo começou quando eles chegaram, décadas atrás, nos dando armas para matarmos elefantes, diz um personagem entrevistado. Outro, um engenheiro chinês entrevistado dentro do conteiner à prova de bala construído para a hora de recreio dos funcionários, na gigantesca refinaria onde trabalha. Todos profissionais chineses, é claro, porque os sudaneses são faxineiros. Outros trabalham para terem o que comer à noite. Entre um jogo e outro de pingue-pongue o chinês ri e comenta, provocador: quem era mesmo aquele presidente americano que dizia ‘eu tenho um sonho’?
Dez por cento das terras do Sudão do Sul pertencem hoje a grandes corporações. No celeiro de alimentos do mundo as pessoas enlouquecem (como se vê no filme) e morrem de fome.
É instrutivo ver o filme de Sauper, 48 anos, autor também de outro premiado documentário, O pesadelo de Darwin (2004), sobre a extinção de espécies de peixes do lago Victoria, na Tanzânia, a alimentação primordial dos povos da região pelos colonizadores da década dos anos 60.
Com Viemos em paz nos é dado relembrar que o Brasil, há pouco, acabou de sair do chamado mapa da fome fugindo assim definitivamente ao destino de espoliado reservado aos países com instituições mais frágeis, porém ricos em cobiçadas reservas de petróleo.
"Viemos em paz": com uma bíblia numa mão e uma arma na outra
Por Léa Maria Aarão Reis
"Eles dizem: ‘viemos em paz’. Com uma Bíblia numa mão e com uma arma na outra," diz, sardônico, um velho africano se referindo à neocolonização do Sudão do Sul por um dos inúmeros grupos predadores do seu país e desse continente rico em hidrocarbonetos, água e recursos naturais que está sendo dilapidado.
Os grupos são uma triste vitrine de um dos piores aspectos da globalização: agências internacionais – inclusive ONGs, algumas de duvidosa fama -; frios funcionários da ONU e da Usaid; poderosas corporações chinesas; mercenários treinando exércitos locais; especialistas na localização de campos de milhares de minas a serem desenterradas (deixadas por levas anteriores de colonizadores); mercadores de armas pesadas que desembarcam sem pudores e sem cessar, nos portos e em pistas semi-clandestinas sua letal mercadoria; senhores da guerra; políticos corruptos que se venderam aos estrangeiros amealhando as fortunas depois gastas nos hoteis cinco estrelas de Paris; e, naturalmente, missionários norte-americanos firmemente dispostos a implantar um “novo Texas” no Sudão do Sul. "O clima aqui é ótimo; até parece com o nosso”, diz a missionária ao chegar na África, companheira de outra catequista tentando vestir os rapazes com jeans e calçar meias e sapatos no garotinho africano apavorado, chorando convulsivamente.
Ou o professor da escola que proíbe as meninas de assistirem aulas usando seus belos ornamentos, brincos, colares, pulseiras.
Num monitor de televisão, vê-se Hillary Clinton, ainda no seu reinado como secretária de estado do governo do presidente afroamericano Barack Obama dirigindo-se à população, candidamente, três anos atrás, quando do plebiscito que fatiou o Sudão em dois: "A África pode ser o celeiro (de alimentos) do mundo," diz a ex-secretária. Hoje, um terço da população do Sudão do Sul sofre de "insegurança alimentar". Eufemismo técnico de organismos das Nações Unidas para pessoas que sentem fome e engrossam as estatísticas dos que morrem pele e osso.
O filme do belga Hubert Sauper, We come as friends (seu título é uma irônica alusão aos herois da ficção cientítica que se apresentam aos alienígenas – “nós viemos como amigos” portando temível metralhadora para garantir a tal paz porque ninguém é de ferro) ganhou o Peace Film Prize do Festival de Berlim deste ano e sacudiu o primeiro fim de semana do Festival do Rio.
Viemos em paz (produção da França e da Áustria deste ano) é demolidor. Não é panfletário. Tem estilo, é seguro, trabalho de profissional talentoso que usa uma câmera viva, uma montagem esperta e segura o tema espinhoso em sua mais de uma hora e meia de duração, musicado pela bela trilha de tristes e lânguidas canções. Deixa, no fim, uma plateia sem voz.
Espera-se que o filme de Sauper, resultado de sua viagem em avião monomotor voando a 4000 metros e a 120 quilômetros de velocidade sobre o Sudão seja adquirido para exibição no Brasil ou disponibilizado no youtube para consumo gratuito.
Ele é um dos 130 documentários exibidos na mostra do Rio. São mais de 20 dos filmes, alguns denunciando o que se passa no nosso mundo cão. Relembra pretensões coloniais decisivas. A França, indo em paz até as região ricas em petróleo para expandir um império do Índico ao Atlântico, num movimento horizontal, e a Grã Bretanha chegando em paz para dominar o continente num movimento vertical, do delta do Nilo ao Cabo.
O filme alude à bizarra figura do presidente do Sudão do Sul, Salva Kiir, cujo inseparável chapéu de cauboi é presente de seu amigo George W. Bush. (Talvez de então a obsessão de fundar um “novo Texas” no pobre rico Sudão do Sul cristão e canibalizado.)
Dividir para governar melhor – o velho bordão dos colonizadores ingleses deu certo na região. Tudo começou quando eles chegaram, décadas atrás, nos dando armas para matarmos elefantes, diz um personagem entrevistado. Outro, um engenheiro chinês entrevistado dentro do conteiner à prova de bala construído para a hora de recreio dos funcionários, na gigantesca refinaria onde trabalha. Todos profissionais chineses, é claro, porque os sudaneses são faxineiros. Outros trabalham para terem o que comer à noite. Entre um jogo e outro de pingue-pongue o chinês ri e comenta, provocador: quem era mesmo aquele presidente americano que dizia ‘eu tenho um sonho’?
Dez por cento das terras do Sudão do Sul pertencem hoje a grandes corporações. No celeiro de alimentos do mundo as pessoas enlouquecem (como se vê no filme) e morrem de fome.
É instrutivo ver o filme de Sauper, 48 anos, autor também de outro premiado documentário, O pesadelo de Darwin (2004), sobre a extinção de espécies de peixes do lago Victoria, na Tanzânia, a alimentação primordial dos povos da região pelos colonizadores da década dos anos 60.
Com Viemos em paz nos é dado relembrar que o Brasil, há pouco, acabou de sair do chamado mapa da fome fugindo assim definitivamente ao destino de espoliado reservado aos países com instituições mais frágeis, porém ricos em cobiçadas reservas de petróleo.
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