quinta-feira, 31 de março de 2011

As novas leis racistas de Israel

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Quem está anexando quem?

Uri Avnery

Numa rara sessão que foi pela noite adentro, o Knesset [parlamento de Israel] aprovou finalmente duas chocantes leis racistas. Ambas são claramente dirigidas contra os cidadãos árabes de Israel, que representam um quinto da população.

A primeira torna possível anular a cidadania de pessoas consideradas culpadas de crimes contra a segurança do Estado. Israel orgulha-se de ter uma grande variedade de leis desse tipo. Anular a cidadania por esses motivos é contrário à lei e às convenções internacionais.

A segunda é mais sofisticada. Permite que comunidades de menos de 400 famílias nomeiem "comités de admissão" que podem impedir de viver nessas comunidades pessoas indesejáveis. Muito astutamente, proíbe especificamente a rejeição de candidatos devido a raça, religião etc. –, mas esse parágrafo equivale a um piscar de olhos. Um candidato árabe será simplesmente rejeitado por ter muitos filhos ou pela falta do serviço militar.

A maioria dos deputados não se deu ao trabalho de aparecer na votação. Afinal, já era tarde e eles também têm famílias. Quem sabe, alguns podem até ter tido vergonha de votar.

Mas muito pior é um terceiro diploma que chega à fase final dentro de poucas semanas: a lei para proibir o boicote aos colonatos.

Desde a sua primeira versão, este projeto foi de certa forma sendo refinado.

Tal como está agora, a lei punirá qualquer pessoa ou associação que apele publicamente a um boicote a Israel – econômico, acadêmico ou cultural. "Israel", de acordo com esta lei, significa qualquer pessoa ou empresa israelense, em Israel ou em qualquer território controlado por Israel. Pondo a questão em termos simples: é tudo sobre os colonatos. E não só sobre o boicote aos produtos dos colonatos, que foi iniciado pela Gush Shalom há uns 13 anos, mas também sobre a recente recusa dos atores de atuar no colonato de Ariel e do apelo de acadêmicos a não apoiar o chamado Centro Universitário que lá existe. Também se aplica, naturalmente, a qualquer apelo ao boicote a uma universidade ou a uma empresa comercial israelense.

Esta é uma peça fundamentalmente falha de legislação: é anti-democrática, discriminatória, anexionista, e totalmente inconstitucional.

Todos têm o direito de comprar ou não comprar o que desejarem, de quem escolherem. Isso é tão óbvio que não precisa de confirmação. Faz parte do direito à livre expressão garantido por qualquer Constituição que se preze, e é um elemento essencial de uma economia de livre mercado.

Eu posso comprar na loja da esquina porque gosto do proprietário, e evitar o supermercado do outro lado da rua, que explora os seus empregados. As empresas gastam grandes quantias para me convencer a comprar os seus produtos em detrimento de outros.

E quanto às campanhas ideologicamente motivadas? Anos atrás, durante uma visita a Nova York, convenceram-me a não comprar uvas produzidas na Califórnia, porque os proprietários oprimiam os trabalhadores imigrantes mexicanos. Este boicote durou um longo tempo e foi – se bem me lembro – bem-sucedido. Ninguém se atreveu a sugerir que boicotes como este deviam ser proibidos.

Aqui em Israel, os rabinos de muitas comunidades regularmente colam cartazes convocando o seu rebanho a não comprar em certas lojas, que eles acreditam não serem kosher, ou não serem suficientemente kosher. Esses apelos são comuns.

Tais informações são totalmente compatíveis com os direitos humanos. Os cidadãos para quem a carne de porco é uma abominação, têm o direito de saber quais lojas vendem carne de porco e quais não. Tanto quanto eu saiba, ninguém em Israel jamais contestou este direito.

Mais cedo ou mais tarde, alguns grupos anti-religiosos vão publicar apelos ao boicote às lojas kosher, que pagam aos rabinos – alguns deles, os mais intolerantes do seu tipo – taxas pesadas pelos seus certificados. Eles sustentam um vasto establishment religioso que defende abertamente transformar Israel num "estado Halakha" – o equivalente judaico de um "estado sharia" muçulmano. Muitos milhares de supervisores Kashrut e miríades de outros funcionários religiosos são pagos pelo público em grande parte secular.

Então e que tal um boicote anti-rabinos? Dificilmente pode ser proibido, já que os religiosos e os anti-religioso têm garantidos direitos iguais.

Assim, parece que nem todos os boicotes por motivos ideológicos estão errados. Nem os promotores desta lei em particular – racistas da escola Lieberman, direitistas do Likud e "centristas" do Kadima – afirmam isso. Para eles, boicotes só são errados se forem contra as políticas nacionalistas, de anexação, deste governo.

Isso é declarado explicitamente na própria lei. Boicotes são ilegais se forem dirigidas contra o Estado de Israel – não são, por exemplo, se forem promovidos pelo Estado de Israel contra algum outro estado. Nenhum israelense no seu perfeito juízo condenaria retroativamente o boicote imposto pela comunidade judaica mundial à Alemanha logo depois de os nazistas chegarem ao poder – um boicote que serviu de pretexto para Josef Goebbels desencadear, em 1 de Abril de 1933, o primeiro boicote nazi anti-semita ("Deutsche wehrt euch! nicht bei Juden Kauft!")

Nem qualquer autêntico sionista poderia considerar erradas as medidas de boicote aprovadas pelo Congresso, sob pressão intensa de judeus, contra a antiga União Soviética, para romper as barreiras à imigração judaica livre. Estas medidas tiveram um enorme sucesso.

Não menos bem-sucedido foi o boicote mundial contra o regime do Apartheid na África do Sul – um boicote calorosamente saudado pelo movimento de libertação sul-africano, apesar de também ter prejudicado os trabalhadores africanos empregados pelos empresários brancos boicotados (um argumento agora repetido pelos colonos israelenses, que exploram trabalhadores palestinos com salários de fome).

Assim, os boicotes políticos não são errados, desde que sejam dirigidos contra os outros. É a velha "moral hotentote" da tradição colonial – "se eu roubar a sua vaca, estou certo. Se você rouba a minha vaca, está errado."

Os direitistas podem mobilizar-se contra as organizações de esquerda. A esquerda não pode mobilizar-se contra as organizações de direita. É tão simples como isso.

Mas a lei não só é anti-democrática e discriminatória, também é flagrantemente anexionista.

Por um simples truque semântico, em menos de uma frase, os legisladores fazem o que os sucessivos governos israelenses não se atreveram a fazer: anexam a Israel os territórios palestinos ocupados.

Ou talvez seja o contrário: estão os colonos anexando Israel? A palavra "colonatos" não aparece no texto. Deus nos livre. Assim como a palavra "árabes" não aparece em nenhuma das outras leis.

Em vez disso, o texto simplesmente determina que os apelos ao boicote a Israel, que são proibidos pela lei, incluem o boicote a instituições e empresas israelenses em todos os territórios controlados por Israel. Isto inclui, naturalmente, a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e as Colinas do Golan.

Este é o cerne da questão. Tudo o resto é camuflagem.

Os promotores da lei querem silenciar o nosso apelo ao boicote aos colonatos, que está a ganhar força em todo o mundo.

A ironia da questão é que eles podem conseguir o exato oposto.

Quando começamos o boicote, o nosso objetivo declarado era traçar uma linha divisória clara entre Israel nas suas fronteiras reconhecidas – a Linha Verde – e os colonatos. Não defendemos um boicote ao Estado de Israel, que, acreditamos, envia a mensagem errada e empurra o centro israelense os braços abertos da extrema-direita ("O mundo inteiro está contra nós!"). Consideramos que um boicote aos colonatos ajuda a recolocar a Linha Verde e faz uma clara distinção.

Esta lei faz exatamente o oposto. Ao varrer a linha entre o Estado de Israel e os colonatos, faz o jogo daqueles que chamam ao boicote a Israel, na crença (equivocada, na minha opinião) que um estado unificado de Apartheid abriria o caminho para um futuro democrático.

Recentemente, a loucura da lei foi demonstrada por um juiz francês, em Grenoble, devido a um incidente que envolveu uma empresa israelense quase monopolista de exportação de produtos agrícolas, a Agrexco. O juiz suspeitava que a empresa estava envolvida em fraude, porque os produtos dos colonatos eram falsamente declarados como provenientes de Israel. Isto poderia ser também fraude, porque as exportações de Israel para a Europa têm direito a tratamento preferencial, benefício de que não gozam os produtos dos colonatos.

Incidentes como este estão ocorrendo cada vez mais frequentemente em vários países europeus. Esta lei fará com que eles se multipliquem.

Na versão original, os boicotadores teriam cometido um crime e seriam multados. Isso ter-nos-ia causado grande alegria, porque a nossa recusa de pagar as multas e a consequente prisão teria dramatizado a questão.

Essa cláusula foi agora omitida. Mas cada empresa nos colonatos e, na verdade, cada colono que se sente ferido pelo boicote pode processar – por danos ilimitados – qualquer grupo que apele ao boicote e qualquer pessoa ligada a esse apelo. Como os colonos estão muito bem organizados e detêm fundos ilimitados, fornecidos por todo o tipo de proprietários de casinos e de comerciantes do sexo, podem entrar com milhares de processos e praticamente paralisar o movimento de boicote. Este é, evidentemente, o seu objectivo.

A luta está longe do fim. Após a promulgação da lei, vamos apelar ao Supremo Tribunal para anulá-la, por ser contrária aos princípios constitucionais fundamentais de Israel e ser contrária aos direitos humanos básicos.

Como Menachem Begin costumava dizer: "Ainda há juízes em Jerusalém!" Há?

Retirado do site de Gush Shalom

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
Uri Avnery é jornalista, membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense).

Não devemos temer, não podemos esquecer e não podemos perdoar

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Curió e seus documentos


O Globo, 30/03/2011


Curió, major da repressão no Araguaia, é preso em Brasília

 
Tatiana Farah
 
SÃO PAULO - O oficial de reserva Sebastião Curió Rodrigues de Moura, um dos chefes da repressão à Guerrilha do Araguaia, foi preso na terça-feira em sua casa em Brasília durante uma operação de busca e apreensão a documentos da ditadura. Segundo a Superintendência da Polícia Federal (PF) do Distrito Federal, O major Curió guardava em casa armas sem o devido registro. Depois de prestar depoimento à Justiça Federal e à PF, Curió foi levado para o Batalhão de Polícia do Exército, uma vez que é militar.
Os agentes federais e o procurador da República Paulo Roberto Galvão foram à casa de Curió para tentar resgatar documentos do período da ditadura (1964-1985), em especial de sua atuação durante a Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 70. Foram apreendidos documentos, um computador e armas que não tinha registro de porte.
O Ministério Público Federal vai submeter o computador a análise em busca de documentos que possam estar digitalizados. Entre os papéis encontrados pelo MPF, estão páginas de documentos antigos com o selo "confidencial". No entanto, o MPF não confirmou se os papeis podem ajudar na localização dos corpos dos guerrilheiros enterrados no Araguaia (TO) durante a ditadura.
Em entrevistas públicas e em depoimentos à Justiça, Curió já disse que o Exército teria executado 41 guerrilheiros no Araguaia. Ao jornal "O Estado de S. Paulo", em 2009, Curió abriu uma mala cheia de papeis em que anotava, supostamente, detalhes de diversas dessas mortes. Os 41 militantes de esquerda teriam sido mortos, segundo ele, fora do campo de combate, quando não ofereciam risco aos militares.
A intenção do MPF ao buscar os documentos é encontrar pistas de onde os corpos foram enterrados. O governo federal já fez buscas, orientadas pelo Exército, para localizar essas vítimas.
- Era o que precisava ser feito desde a sentença da Justiça Federal, em 2007- disse Crimeia de Almeida, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Segundo Crimeia, a busca e apreensão é resultado de uma ação movida por 22 familiares de 25 desaparecidos, entre eles, o marido de Crimeia, André Grabois, um dos líderes da guerrilha. A própria Crimeia participou do conflito no Araguaia.
A ação dos familiares da Guerrilha do Araguaia tramita na 1.a Vara Federal Criminal de Brasília. Até o final da tarde, nem o STF (Supremo Tribunal Federal), o STJ (Superior Tribunal de Justiça) ou o TRF (Tribunal Regional Federal) haviam divulgado a entrada de algum recurso para a libertação de Curió. O GLOBO tentou entrar em contato com a família do militar de reserva, mas não a localizou. Um de seus antigos advogados, que ainda não foi acionado por Curió, afirmou que o major reformado poderia ter armas sem registro em casa por sua condição de militar, o que não foi confirmado pelo Exército.
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Sem esquecimento, sem perdão, sem temor


Valter Pomar

Muitos de nossos amigos latino-americanos não conseguem entender por qual motivo os governos brasileiros pós-ditadura pegaram tão leve com aqueles que romperam com a legalidade, sequestraram, torturaram, mataram e desapareceram.

Neste quesito, os governos pós-ditadura na Argentina, Chile e Uruguai foram muito mais efetivos no combate aos crimes das ditaduras, do que os governos Sarney, Collor, FHC e Lula.

Nossos amigos não entendem, e muitos de nós tampouco entendem, paradoxos como a convivência, no mesmo governo, de uma presidenta que foi presa e torturada, com um general para quem fato histórico é codinome para crime que merece ser perdoado. Ou de ministros que defendem a Comissão da Verdade, com outros para quem a Lei da Anistia imposta pela ditadura permite que autores de crimes contra a humanidade escapem de julgamento.

A persistência desta situação revela, mais do que a força da direita, a incapacidade que parte da esquerda tem de perceber os riscos que corremos ao agir desta forma. Afinal, o golpe de 1964 não é apenas passado, nem foi apenas obra de generais hoje aposentados e mortos.

O golpe de 1964 foi a resposta dada por uma parte da elite brasileira, contra um governo progressista. Foi uma das batalhas da guerra travada, ao longo de todo o século XX, entre as vias conservadora e progressista de desenvolvimento do capitalismo brasileiro.

A via conservadora é aquela que desenvolveu o capitalismo, preservando os piores traços de nosso passado escravista e colonial. A via progressista é aquela que buscou e busca combinar crescimento capitalista, com reformas sociais, democracia política e soberania nacional.

O golpe de 1964 foi executado por uma coalizão cívico-militar. Os militares foram o partido armado do grande empresariado, do latifúndio e dos capitais estrangeiros. Muitas das empresas envolvidas no golpe, ou que cresceram durante o período da ditadura, seguem atuantes. As Organizações Globo, por exemplo.

Hoje, prossegue a guerra entre aquelas duas vias de desenvolvimento. O governo Dilma, assim como o governo Lula, constituem expressões atuais da via progressista. E a campanha reacionária feita por Serra, nas eleições presidenciais de 2012, traduziu os sentimentos e os interesses dos legítimos defensores da via conservadora (alguns dos quais, é bom dizer, buscaram e encontraram abrigo do lado de cá).

Quando um deputado diz ter saudade da ditadura militar, quando um candidato presidencial se alia a generais de pijama e a organizações de ultra-direita, quando um ditador é homenageado por uma turma de formandos de uma escola militar, quando um ministro diz que a Anistia impede a justiça de apreciar crimes contra a humanidade, não estamos diante de saudosismos inconsequentes.

Estamos, isto sim, vendo e ouvindo uma parte da elite brasileira dizer o seguinte: quebramos a legalidade e algum dia poderemos voltar a quebrar; desconsideramos a voz das urnas e algum dia poderemos voltar a desconsiderar.

Uma esquerda que defende os direitos humanos de maneira consequente, deve lembrar que a impunidade dos torturadores de ontem, favorece os que hoje torturam presos ditos comuns. Uma esquerda que defende uma via eleitoral, tem motivos em dobro para ser implacável contra os que defendem a legitimidade de golpes. E uma esquerda que se pretende latinoamericanista precisa lembrar que o golpe de 1964 foi, em certo sentido, o início de um ciclo ditadorial que se espalhou por todo o continente.

E que ninguém ache que golpes são coisas do passado. Honduras, bem como as tentativas feitas no Equador e Venezuela, Bolivia e Paraguai, mostram que os Estados Unidos e parte expressiva das elites locais têm uma visão totalmente instrumental da democracia. E o reacionarismo atual de parte das chamadas classes médias não deixada nada a dever frente aquele que mobilizou, em 1964, as marchas com Deus, pela Família e pela Propriedade.

Por tudo isto, temos todos os motivos para dar o exemplo. Como nossos amigos de outros países da América Latina, não devemos temer, não podemos esquecer e não podemos perdoar.

(*) Valter Pomar é membro do Diretório Nacional do PT
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As heranças da ditadura no Brasil

Edson Teles 

Em agosto de 1979, o Congresso Nacional brasileiro, ainda sob a vigência do regime militar, aprovou a Lei de Anistia, que em seu texto dizia: estão anistiados “todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Na época, após 15 anos de ditadura, os militares cederam às pressões da opinião pública e a oposição aceitou a anistia proposta pelo governo, ainda que parte dos presos e perseguidos políticos não tenha sido beneficiada. Simbolicamente, foram considerados, sob a decisão de anistiar os crimes “conexos” aos crimes políticos, anistiados os agentes da repressão. Contudo, podemos dizer que não teriam sido anistiados os torturadores, pois cometeram crimes sem relação com causas políticas e recebendo salário como funcionários do Estado. Os mortos e desaparecidos políticos não foram considerados e o paradeiro de seus restos mortais nunca foi esclarecido. Era o marco da transição da ditadura para o Estado de Direito, visando superar – e mais do que isso, silenciar – o drama vivido diante da violência estatal.

A transição começou a ser pensada e formulada pelos militares, desde o começo do governo Geisel (1974-1978), procurando construir uma abertura lenta, gradual e segura, na qual o estatuto político da nova democracia pudesse ser acordado de antemão e, principalmente, se mantivesse o controle militar do processo. Ainda em 1977, o governo impõe o Pacote de Abril, fechando o Congresso Nacional por 15 dias (entre 1º e 15 de abril) e outorgando uma série de medidas limitando as possibilidades de ruptura na abertura, entre elas: eleição indireta para governadores incorporada à Constituição; seis anos de mandato presidencial; senadores biônicos, eleitos indiretamente.

O governo manteve as medidas de abertura gradual nas ações de outubro de 1978, quando extinguiu a capacidade do presidente de fechar o Congresso Nacional e de cassar direitos políticos, devolveu o habeas corpus, suspendeu a censura prévia e aboliu a pena de morte. Logo em seguida, no mês de dezembro, é tornado extinto o AI-5. A abertura militar fundamentava-se na lógica do consenso e a anistia ainda não era considerada como parte das ações possíveis no processo lento e gradual.

Quando nos anos de 1977-78 foram montados os primeiros pacotes de reformas da abertura, falava-se no máximo em revisões de algumas penas, como a dos banidos. O estado de exceção começava a se transformar.

Figura jurídica anômala da constitucionalidade do Estado autoritário, seu produto mais discricionário no Brasil foi o Ato Institucional número 5 (AI-5). Este decreto ampliou os poderes de exceção do cargo de Presidente e extinguiu vários direitos civis e políticos (artigos 4º, 5º e 8º), especialmente o habeas corpus (artigo 10º). De fato, investiu o Estado da prerrogativa de manipulação dos corpos e, também, da vida matável dos cidadãos. O corpo passou a ser algo fundamental para a ação do regime. No caso do desaparecido político, sabe-se da existência de um corpo – desaparecido – e de uma localidade – desconhecida –, mas marcado pela ausência. Se a sala de tortura tem como resto de sua produção um corpo violado, o assassinato político produz o corpo sem vida.

O grande aumento de desaparecidos políticos a partir do AI-5 demonstra como essa peça jurídica indicava a implantação do estado de exceção como normalidade. Tendo sido o primeiro ato institucional sem data para acabar, o AI-5 foi extinto em dezembro de 1978, mas alguns de seus dispositivos foram, ao longo dos 10 anos de sua existência, inseridos na Constituição e na Lei de Segurança Nacional, ainda hoje vigente.
A violência originária de determinado contexto político, que no caso da nossa democracia seriam os traumas vividos na ditadura, mantém-se, seja nos atos de tortura ainda praticados nas delegacias, seja na suspensão dos atos de justiça contida no simbolismo da anistia. Tais atos, por terem sido silenciados nos debates da transição, delimitam um lugar inaugural de determinada política e criam valores herdados na cultura, tanto objetivamente, quanto subjetivamente – nas narrativas, nos testemunhos, nos sentimentos e paixões dos sujeitos subtraídos da razão política.

Nos aspectos sociais e nacionais, as marcas de esferas políticas originárias, como a sala de tortura e a transição consensual, se constituem como partes fundantes da democracia nascida após o fim da ditadura. O caráter maldito da tortura e o aspecto de impunidade da democracia mantêm-se na lei quando o STF decide anistiar os torturadores (maio de 2010) sem a apuração e a responsabilização de seus crimes.

A transição consensual criou uma falsa questão: punir ou perdoar?! Encontramo-nos diante do problema de como conviver com um passado doloroso em um presente democrático, administrando conflitos que não se encerraram com a mera passagem institucional de um governo de exceção para um democrático. Por que passadas mais de três décadas dos crimes e de vinte anos do fim da ditadura, há reclamação por justiça? Deve-se julgar e punir os responsáveis pelas violações aos direitos humanos? Ou eles podem ser perdoados em nome da reconciliação nacional?

O fato é que, independentemente da lei brasileira de anistia, o Brasil tem assinado acordos internacionais – com poder de lei para os países aderentes – que condenam os crimes contra a dignidade humana e os tornam imprescritíveis. No último dia 14 de dezembro, o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) pela não localização dos corpos dos desaparecidos e por manter uma lei de auto-anistia extorquida em meio a uma ditadura e diante de um Congresso Nacional marcado por fechamentos arbitrários, cassações e bi-partidarismo.

Se alguns países latino-americanos se dedicaram à criação de novos investimentos em direitos humanos, o Brasil manteve-se como modelo de impunidade e não seguiu sequer a política da verdade histórica. Houve aqui uma grande ditadura, mas os arquivos públicos não foram abertos e as leis de reparação somente ouviram o reclamo das vítimas por meio de frios documentos; não deram direito à voz e não apuraram a verdade.

Enquanto os torturadores do passado não forem julgados e punidos, não teremos êxito nas políticas de diminuição da violência. É preciso que o país crie uma Comissão da Verdade, apure as circunstâncias dos crimes, abra os arquivos da ditadura e puna os responsáveis. Somente assim teremos como elaborar o passado e construir uma democracia respeitosa aos direitos do cidadão.

(*) Professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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http://quemtemmedodolula.blogspot.com/2011/03/carlos-eugenio-paz-aos-ditadores-o.html

terça-feira, 29 de março de 2011

Carlos Eugênio Paz: “Aos ditadores, o julgamento histórico” 

 

Após a entrevista, fomos ao "Vermelhinho" da Cinelândia.
"Quer que eu tire a foto com o cigarro mesmo?", perguntei.

"Principalmente! Não sou politicamente correto", respondeu.
Por Ana Helena Tavares

Um escritório próximo à Cinelândia, a pouquíssimos metros do Theatro que foi palco do discurso oco de Barack Obama, tem sido o local das reuniões de pauta do jornal online “Rede Democrática”. Na noite de sexta-feira, 25 de Março, tive a felicidade de participar dessa reunião e, em seguida, de entrevistar um de seus membros: Carlos Eugênio Paz, mas podem chamar de Comandante “Clemente”.

Entrou para a ALN (Ação Libertadora Nacional), quando esta ainda era o chamado “Grupo Marighela” do Partido Comunista. Era um jovem de 16 anos, o ano era 1966 e a ditadura brasileira estava no “olho do furacão”, como definiu, dizendo que talvez isso tenha contribuído pra sua sobrevivência, além de, principalmente,     a lealdade de seus

companheiros.

Minha intenção era entrevistá-lo sobre a Lei de Anistia, mas a conversa, saborosamente informal, e acompanhada por outros quatro integrantes da “Rede”, todos ex-guerrilheiros, aos quais dei a liberdade de intervir no papo, durou mais de uma hora. Mesmo porque ele não tem o menor problema em falar sobre seu passado. Ao contrário, acha isso importantíssimo. Tanto que já escreveu dois livros sobre o assunto – “Viagem à luta armada” e “Nas trilhas da ALN” – e ainda tem um pronto pra ser publicado.

Se é revanchismo prestar contas com a história, sou revanchista”, disse ele ironizando. Na verdade, ele é um “humanista”, que fala do Brasil como “um país a ser reconstruído”.

A pauta não poderia ser mais variada. Conseguimos ir das reformas de Jango ao “erotismo de açougue” do BBB. Dos desaparecidos políticos ao estupro como “método de governo”. Da medalha jogada por "Clemente" num bueiro em Copacabana à jurisprudência dos “crimes conexos”, gerada por sua deserção do exército. Da ausência de nomes, como Apolônio de Carvalho, nos livros de história, à onipresença do STF na interpretação das leis de hoje. De Médici como atual patrono de novos oficiais à tradição militar de não queimar arquivos... Das mentes desperdiçadas pelo golpe ao “pacto de conciliação” que inexistiu – “Onde eu assinei?”, perguntou ele. Dos mais perversos métodos de tortura, como a “malfadada coroa de Cristo”, à importância da erradicação da fome. De Karl Marx, com a “mais-valia”, a Jean Paul Sartre, com “o inferno são os outros”. Da ditadura entendida como “opção golpista da direita brasileira” à “democracia domesticada” pelas... “antenas de TV”.

Ao final de tudo isso, saí de lá com a conclusão de que a palavra “herói” está completamente desmoralizada e de que existe uma “democracia post-mortem” para aqueles que foram tiranos em vida.

Entrevista altamente aconselhável para quem acha que luta armada, contra um regime de exceção, é terrorismo. “Eu tenho um profundo orgulho de ter participado dessa luta. Olha, eu vou morrer orgulhoso. Sou um nordestino orgulhoso. Meu pai dizia: “Orgulho besta!” E eu dizia: pois eu sou besta, pai.”, confessou “Clemente”.

Ana Helena: Você foi o comandante mais jovem da ALN e o único que não foi preso nem torturado pela ditadura. Pra você, qual foi o fator, ou os fatores decisivos pra isso?

Carlos Eugênio: É difícil definir isso. Acho que tem duas ou três coisas que contribuíram pra eu ter sobrevivido. Digo ter sobrevivido, porque, se eu tivesse sido preso, eu já era condenado à morte, tanto formalmente quanto informalmente. Porque tinha pena de morte no Brasil durante a ditadura. E eu fui uma das 4 penas de morte pedidas.

A juventude

Quanto à minha sobrevivência, acho que se deve primeiro ao fato de eu ter entrado cedo, tive mais tempo de aprender e tinha características individuais próprias pra um guerreiro. Tinha um físico avantajado, dirigia muito bem, atirava bem e tinha um fôlego muito grande, era praticamente incansável. Ou seja, eu tinha algumas facilidades para a guerrilha urbana, de rural eu nunca participei. Tem um pessoal que fica meio chocado com esse negócio de idade... Eu queria perguntar: qual foi a guerra que foi travada por velhos? As guerras são dirigidas por homens velhos, devido à sua sabedoria. Como Giap dirigiu a guerra do Vietnã e em todas as guerras você tem isso. Agora, o combatente tem que ser jovem. Lá no Vietnã mesmo você via aqueles garotos, de 14, 15 anos, lutando na frente de libertação deles.

O “olho do furacão”

Outro fator que creio ter contribuído pra minha sobrevivência é, por incrível que pareça, o fato de eu ter entrado no “olho do furacão”. Você sabe que quando o furacão passa, o momento de calmaria é justamente quando você tá no olho. Quer dizer, você tá ali no meio, o vento fica rodando em volta e você nem se despenteia. Quando eu entrei na organização, com 16 anos, eu já tava sendo apresentado ao Marighela e eu acho que isso tem a ver, porque eu mergulhei aí. Por orientação dele, em vez de ir pra Cuba naquela época, fui pro exército brasileiro pra treinar e aprender a ser um militar.

Todos os presentes a essa mesa lutaram contra a ditadura.
Os companheiros

Então, tem todas essas razões, tem o acaso, tem tudo, mas a razão mais importante são os meus companheiros. Apesar de eu ter sido por muitos anos a pessoa mais procurada da Ação Libertadora Nacional, eu fui umas das menos abertas. Não no sentido de ninguém dizer “ah, ele fez isso, fez aquilo”, mas me preservaram no sentido de não abrirem meus pontos de encontro. Fui agraciado pela valentia, pela dignidade dos companheiros que foram torturados pra dizerem onde eu estava – e muitas vezes eles sabiam – mas não disseram. E a minha sobrevivência eu dedico a eles.

Ana Helena: Como foi uma história de que você ganhou ganhou uma medalha do exército e a jogou fora num bueiro em Copacabana?

Carlos Eugênio: Bom, eu fui condecorado com a medalha de melhor soldado do Forte de Copacabana. Era simples ganhar essa medalha. Por quê? Porque eu era o único soldado que tava treinando realmente. Os outros soldados todinhos estavam danados da vida de estar lá. Estavam putos, a palavra certa é essa. Por quê? Porque ninguém estava querendo servir ao exército. Era um atraso de vida. Se o cara era de classe média, estava prejudicando os estudos. Um ou outro, além de mim, queriam até estar no exército, mas eles não estavam com vontade de treinar. Eram caras pobres, que moravam em favelas e o exército pra eles era uma certa proteção. Tinham ali o soldo deles, que era pequenininho, mas almoçavam, comiam e tinham a roupa lavada. Era uma fonte de sobrevivência, mas isso não queria dizer que estivessem a fim de se esforçar no treinamento. Eu não.

“Pra comandar, tem que obedecer”

Eu fui lá com uma tarefa de aprender a ser um bom militar. Então, me dediquei muito, muito. “Ah, vamos fazer uma corrida...” Opa, já ia eu lá... O Marighela dizia: “Pra comandar, tem que aprender a obedecer”. Lá fui eu obedecendo... (risos) E ele dizia mais: “Você tem que ir lá aprender o pensamento de um militar. Porque nós vamos precisar de quadros militares”... Então, eu ficava lá observando os militares, como eles pensavam, e tentando me transformar num deles... E aí foi realmente o que aconteceu. E, em Outubro de 1969, eu ganhei essa medalha. Levei ela pra casa, só que aconteceu um problema. Logo em seguida, minha irmã foi presa e torturada, barbaramente, pelo mesmo exército que havia me condecorado. Então, eu peguei essa medalha e joguei num bueiro na Av. Princesa Isabel, perto do túnel novo. Eu estava junto com dois companheiros que, infelizmente, não podem estar aqui pra contar história: Luiz Afonso Miranda Rodrigues, o “Girafa” (da ALN); e o Aldo de Sá Brito, meus amigos de infância, de começarmos a vida juntos.

Ana Helena: O Aldo de Sá Brito teve uma morte perversa. Queria que você comentasse como foi isso.

(“Um dos melhores quadros da esquerda”, disse um dos presentes) Carlos Eugênio: O Aldo era sobrinho-neto do cardeal do Rio de Janeiro. Foi preso numa ação de uma expropriação de um banco em Belo Horizonte. A polícia chegou no final do assalto e eles foram tiroteando com a polícia. Ele entrou num prédio de apartamentos, tentou pular da janela do 2º andar pra ir pra outro prédio, caiu e quebrou um osso da bacia. Daí não conseguiu fugir. Foi preso e torturado até a morte com a famosa “coroa de Cristo”.

A “coroa de Cristo”


Ele é um dos casos comprovados do uso da malfadada coroa de Cristo. Trata-se de um aro de metal, colocado em volta da cabeça, com parafusos do lado de dentro do aro. Daí eles iam regulando e comprimindo o crânio até arrebentá-lo. Outra companheira que morreu assim foi Aurora Maria Nascimento Furtado.

Ana Helena: Sobre a Lei de Anistia, como é que você vê a decisão do STF?

Carlos Eugênio: Primeiro, eu acho um absurdo o STF tratar disso. Segundo, o problema da Lei de Anistia não começa com o STF, começa com a própria Lei de Anistia. Essa lei foi fruto de um processo que foi a passagem dos governos militares pro governos civis. Não houve uma vitória de um lado. Eu costumo dizer que, no Brasil, a ditadura não caiu, ela se transformou.

A “democracia domesticada”

E, ao mesmo tempo em que se transformava, ela foi criando um novo sistema político que é esse no qual nós vivemos hoje em dia, que eu chamo de “democracia domesticada”. A expressão é do meu amigo Luiz Felipe Miguel, que tem um texto com este título. Porque nós ainda estamos muito distantes de uma democracia popular e mais distantes ainda de uma democracia direta, que é a forma que eu acho que a humanidade tem que caminhar pra ela. Primeiro a popular, depois a direta.

A lei de anistia

Agora, o problema é o seguinte... Chegou um momento em que a ditadura não conseguia mais se sustentar. Os militares estavam num desgaste muito grande, não conseguiam mais controlar a economia do país, não conseguiam mais se manter no poder enquanto ditadura, aquela que de 4 em 4 anos trocava de ditador. Então, foi havendo um movimento popular, realmente houve. Primeiro, a campanha da anistia tornou-se um clamor que foi aumentando cada vez mais na sociedade civil até que eles foram obrigados a fazer uma lei. Só que ela foi sendo reformada. Na primeira, que foi feita em 1979, quem participou dos chamados “crimes de sangue”, ações onde morreu alguém, não estava anistiado. Eu, por exemplo, que participei, tava fora, assim como um monte de gente. Naquele ano, quem saiu da cadeia, não foi pela anistia, foi por indulto de Natal. A famosa anistia “Ampla, geral e irrestrita” não aconteceu no Brasil. (“inicialmente, permaneceram restrições políticas”, lembrou um dos presentes). E, além disso, a questão é que ela anistiava tanto quem lutou pela liberdade como aqueles que solaparam a liberdade.

A jurisprudência dos “crimes conexos”

Quando eu voltei ao Brasil, dois anos depois da Lei de Anistia, eu ainda não estava anistiado. Eu tive que travar uma batalha jurídica clandestina. Eu tive que entrar, em Março de 1982, na embaixada francesa em Brasília e ir ao STF. E, lá, é que eu acabei sendo anistiado, em 06 de Maio de 1982, sendo que a lei é de 79. Quase três anos depois. E foi através de um artigo pro qual eu, infelizmente, criei jurisprudência, que é o dos crimes conexos. Eu desertei do exército. E eles diziam: “é crime militar, não é crime político”. Só que eu aleguei que desertei, porque militava na ALN e lutava contra a ditadura. E a jurisprudência é que os torturadores foram incluídos justamente nesse artigo. De que maneira? Tortura não é crime político. Tudo bem, é crime contra a humanidade. Mas foi cometido por motivações políticas. Foi esse o entendimento do parecer dado pelo STF.

Humanistas, socialistas, comunistas e democratas

E, assim, os dois lados estão anistiados no Brasil. Através de uma lei, surgida de um acordo, que foi o possível de se fazer na época. Não é que se diga: “Ah, não devíamos ter aceito aquele acordo”... Essas coisas em história não existem. Você faz o que você tem força pra fazer. Se a gente tivesse tido mais força, a gente tinha tomado o poder, instalado uma democracia popular e punido todos esses torturadores com penas de prisão. Jamais a de tortura. Porque nós nunca torturamos nem torturaríamos. Somos humanistas. Somos socialistas. Somos comunistas. Democratas. Não somos a favor da tortura. Jamais faríamos uma coisa dessas. Mas teriam sido julgados, por tribunais populares, e cumpririam suas penas de prisão. Como isso não aconteceu, é essa a questão que está se tentando resolver no Brasil.

O julgamento histórico é o principal

Mas, além dessa, há uma questão que eu acho até mais grave. Sinceramente, eu acho que o julgamento histórico é o mais importante de todos. Claro que eu não tô dizendo: “Ah, então, o cara me torturou e não vai pra cadeia?”. Primeiro que muitos deles já morreram. Segundo que havia uma “cadeia de comando” nisso tudo. O cara que ia lá torturar era o último da “cadeia alimentar”. Ele era imediatamente antes do prisioneiro. Porque era aquele que tocava no prisioneiro. Imagine se Emílio Garrastazu Médici alguma vez tocou em algum prisioneiro... Ou Costa e Silva... Ou Castello Branco... Nenhum deles. No entanto, partiu deles a instauração de um regime cuja manutenção do poder se baseava na censura, no fechamento de todas as organizações de classe nesse país, na tortura, no assassinato, no seqüestro de militantes políticos opositores, etc... Então, esses é que têm que ser primeiramente julgados. E a eles, infelizmente, só vai caber o julgamento da história. Agora, como a gente pode viver num país em que o Médici é tratado como presidente? É só pegar o seu livro de história... (“Nós vamos voltar pra casa atravessando a ponte Presidente Costa e Silva”, lembrou um dos presentes referindo-se à Rio-Niterói). Como é que pode?

O exemplo francês

Estou chegando da França. Fui passar um tempinho lá na casa de amigos. Em cada canto de Paris, você encontra uma placa: “aqui morreu um combatente da liberdade assassinado pelas forças de ocupação nazista. Aquelas pessoas, por exemplo, que colaboraram para o regime nazista lá são todas conhecidas. Inclusive, algumas tiveram a coragem política de escrever livros e assumir essa colaboração com o regime de Vichy. E há muitas pessoas lá a favor deles.

Uma opção da direita brasileira

Como aqui, é evidente que muita gente colaborou com os militares. Não tivemos uma ditadura militar com um bando de generais de opereta que resolveram dar um golpe de Estado. Foi a direita brasileira que optou pelo caminho golpista e usou as forças armadas como ponta de lança.

Lula comemorando com Apolônio,
quando este foi anistiado.
Apolônio de Carvalho X Duque de Caxias

Por exemplo, nós temos o privilégio de sermos a pátria de nascimento de um herói de três países. Sabe lá o que é isso? E até hoje nós não o chamamos de herói... E eu vivo dizendo isso por aí: pra mim, devia ser o patrono do exército brasileiro. Apolônio de Carvalho. Ele foi resistente da guerra da Espanha, herói da resistência espanhola, coronel e herói da resistência francesa, ganhando a mais alta condecoração que é a Legião D’Honeur... Você chega na cidade de Toulouse, na França, e todos sabem quem foi Apoloniô de Carvalho... Porque ele foi quem dirigiu as tropas da resistência que libertaram Toulouse... Eu fui agora lá e há uma placa em homenagem a ele. No Brasil, até hoje a história não o fez justiça. Aí o general Duque de Caxias, um homem que era assassino de negros e dos irmãos paraguaios, é o patrono do exército... (“Ainda passaremos pela rua Moreira César”, completou um dos presentes referindo-se ao algoz de Canudos).

E assim caminha o nosso exército...

Recentemente, a Academia Militar das Agulhas Negras escolheu Emílio Garrastazu Médici como patrono de uma turma de novos oficiais. Então, olha só isso... Nossos jovens oficiais sendo educados dentro do pensamento do general golpista. Um general que mandou matar e torturar milhares de brasileiros (“o pior governo militar”, definiu um dos presentes). Aí a gente fica pensando assim... “E a punição aos torturadores?”... Tudo bem, quanto aos que ainda estão vivos, se a gente conseguir julgá-los e levá-los a tribunal dentro das normas vigentes no país. Tudo bem, vamos lá... Mas mais importante que tudo isso é o julgamento da história. E é disso que a gente tem que correr atrás...

O Brasil não abre arquivos, mas o exército não os queima...

Porque, por exemplo, os arquivos da guerra do Paraguai... Tente você, como jornalista, acessá-los pra ver se você consegue... Não, porque nesse país há uma tradição de não se abrir arquivos. Aí se fica nessa discussão sobre a abertura dos arquivos militares e se eles existem. Existem! Se tem uma coisa que militar faz é arquivo. E se tem uma coisa que militar não faz é queimar arquivo. Ele finge que queima. Ele queima uma parte que não tem importância, mas a parte principal tá lá.

Cadê, onde, como?

Stuart Angel
E nós queremos saber... Por exemplo, onde está Paulo de Tarso Celestino? Onde está Virgílio Gomes da Silva? Onde está Heleni Telles Guariba? Onde estão todos esses companheiros que desapareceram, sumiram, as famílias não conseguem encontrá-los nem enterrá-los simplesmente pra ir lá no dia em que quiserem e colocar uma flor no túmulo? Onde estão esses corpos? Como eles morreram? Por ordem de quem? Em que circunstâncias? Como é que a coisa aconteceu? Essas pessoas vão viver o resto da vida, gerações e gerações, e vai ter um elo que nunca vai se fechar... Nunca? Onde está Stuart? Como mataram a mãe de Stuart?

Caminhar pra frente

Daí dizem... “Ah, mas vamos deixar isso pra lá pra gente caminhar daqui pra frente...” Isso não é caminhar pra frente. Caminhar pra frente é exatamente você limpar o terreno, você pegar e discutir, e se alguém tem que ser punido que seja punido... Ficam falando sobre a “Comissão Nacional da Verdade”... Que tem que olhar os dois lados... Mas o nosso lado já foi julgado e condenado e cumpriu pena. Quem não foi julgado e condenado foi o lado de lá. E estupro e tortura são crimes hediondos, inafiançáveis e imprescritíveis. O mundo inteiro reconhece isso. (“Poucas das mulheres que foram presas tiveram a sorte de não ser estupradas e isso era liberado pelos generais”, lembrou um dos presentes) O estupro não era feito por torturadorezinhos tarados. Isso era uma política, era um método de governo.

Ana Helena: Voltando à Lei de Anistia, você comentou que acha um absurdo essa discussão ter ido parar no STF. A tarefa é de quem, então? Do Congresso?

Carlos Eugênio: As leis, segundo a nossa Constituição, a nossa Carta Magna, são tarefa do Congresso. Mas agora virou mania... É o STF que interpreta a lei. Quando eles simplesmente tinham que ajudar a aplicar a lei. Eles não podem ficar dizendo: “Isso aqui é assim e não pode mudar”. Que história é essa? E, se a gente conseguir uma maioria no Congresso e resolver mudar a Lei de Anistia, não pode porque o STF diz que não pode? (“Ainda tem uma coisa... no Congresso, as pessoas são eleitas e têm mandatos por tempo determinado... no STF, não são eleitos e são vitalícios... isso é uma aberração”, frisou um dos presentes ). O sujeito comete um crime, como aquele juiz “Lalau”, e a grande punição dele é ir pra uma aposentadoria compulsória, recebendo o mesmo valor de que se ele não tivesse cometido o crime. Não vai trabalhar mais e vai poder ganhar dinheiro... Vai poder jogar na bolsa, vai ter tranquilidade...

Ana Helena: Quanto à punição aos torturadores, você comentou e todos sabemos que muitos já morreram. Ainda cabe aos vivos uma punição de prisão?

Carlos Eugênio: Primeiro, eles têm que passar pra história pela porta que entraram: a lixeira. Porque alguém que comete um atentado contra a democracia, que derruba um governo eleito pelas regras democráticas – parte de uma das Constituições mais democráticas que o Brasil já teve, a de 1946 – que era legítimo e representativo, alguém que arrebenta as portas da legalidade, instaurando um governo ditatorial, tem que passar à história como isso: como ditadores, inimigos da democracia e torturadores. Esse é o primeiro julgamento que pode ter. Agora, há uma coisa, que não é uma questão moral, nada disso, que é o seguinte: a Comissão Nacional da Verdade, aprovada ainda no governo Lula. Nós já falamos a verdade...

Até pra Globo...

Olhe só... Nossos companheiros foram torturados e muitos falaram sob tortura. Além disso, ainda escrevemos nossos livros. Eu não tenho escrito no armário... Tenho dois livros publicados (“Viagem à luta armada” e “Nas trilhas da ALN”) e um prontinho. Estão ali as ações armadas de que eu participei, polêmicas ou não, as mortes que eu cometi, tá tudo ali aberto. Além dos livros, ainda há os jornalistas que me entrevistam. Nunca me recusei a falar. Costumo brincar dizendo que até pra Globo eu falo. Já falei pro Fantástico, pra Veja, pro Estadão, pra Folha, etc... Agora que o SBT tá produzindo uma novela chamada “Amor e Revolução” (sobre a ditadura), eu fui a São Paulo dar minhas declarações pra eles... Enfim...

Ana Helena: E o que você acha da idéia dessa novela do SBT?

Carlos Eugênio: Bom, eles estão usando a palavra “revolução” em referência ao nosso lado. Muita gente entendeu errado, mas eles não estão chamando o golpe de Estado de revolução. E, sim, a nossa. Porque os personagens principais são dois guerrilheiros. É muito interessante, tô dando a maior força. Estréia em Abril.

Mas ainda falta o outro lado se manifestar...

Aí eu pergunto: Por que Jarbas Passarinho não vem a público e conta a verdade? Alguma coisa ele até já disse... Tem até aquela famosa frase: “Às favas com os escrúpulos...Quer dizer, um homem que redigiu o AI-5 é tratado hoje em dia como um democrata. “Ah, é um ex-senador da República e tal...” Um homem que foi ministro de Médici. E, quanto ao exército, eu acho que eles têm que colocar na cabeça o seguinte: é muito melhor pro exército abrir os seus arquivos, porque não foi o conjunto do exército brasileiro que cometeu as atrocidades, gente. Isso aí quem tem que pagar historicamente são os comandantes. Quem ganha a guerra não é o comandante? É! Quem perde também é... Foram eles que instauraram a ditadura. Ou vocês acham que foi o soldado, o tenente, o capitão... Não foi! Então, o alto comando das forças armadas tem que assumir que foram cometidos esses crimes de lesa-pátria. E nós ainda nem temos condições de avaliar os prejuízos que esse país teve com aquele golpe de Estado.

Jango discursa, observado de perto...
As reformas traídas

Estamos ainda muito centrados em denunciar o que os caras fizeram, mas você já pensou, por exemplo, o atraso que foi pro Brasil a não-promulgação das reformas de base de João Goulart? O Brasil seria outro país se a reforma agrária que João Goulart enviou ao Congresso tivesse sido realizada naquela época. Um monte de camponeses não teriam morrido... Um monte de problemas de abastecimento que esse país teve, de pobreza, de miséria, de violência, tudo isso teria sido diferente. Inclusive, o êxodo rural. Outra: havia também a reforma urbana, da qual muita gente esquece. Reforma educacional, reforma do sistema financeiro, com a lei de remessa de lucros... Enfim... Por enquanto, nós só estamos falando das liberdades, mas o que mais o Brasil perdeu? É tão importante a gente abrir esses baús que estamos muito concentrados, mas um dia haveremos de ter uma idéia do prejuízo que foi o golpe de Estado. Não esquecendo, esquece tortura, esquece tudo, não... Mas pensando: se o Brasil tivesse ido por aquele caminho, quanto nós teríamos ganhado?

As mentes desperdiçadas

E mais... Ninguém há de duvidar que, entre os nossos companheiros, estavam algumas das mentes mais importantes, que mais contribuições poderiam dar à nossa pátria. Você já imaginou um homem com o poder de discernimento, de clareza que tinha Carlos Marighela, se, ao invés de usar sua energia criadora para a destruição de um sistema, ele a estivesse usando para a construção? Ele era um poeta... Tenho certeza de que teria sido muito mais importante pro Brasil dentro de um processo democrático do que dentro de um processo em que tivemos que fazer uma luta armada... E ele acabou morrendo ali, na Alameda Casa Branca, por um monte de tiros, por um monte de marginais, comandados por um marginal maior chamado Sérgio Paranhos Fleury, homem da pior estirpe, que depois acabou sendo morto como queima de arquivo. Então, vejam bem... O próprio Aldo de Sá Brito era um tremendo de um poeta, mas, infelizmente, uma pessoa bem próxima a ele, com medo da ditadura, quando ele andava na clandestinidade, queimou os poemas que ele tinha. Uma mulher como Ana Maria, que foi minha primeira companheira na vida, que era uma pianista, tocava piano de uma maneira maravilhosa. Era pintora, estudou na antiga Escola Nacional de Belas Artes. Desenhava também, era uma artista... E a mulher morre com 23 anos de idade, assassinada a tiros numa esquina no bairro da Mooca. Um menino como o Marcos Nonato, que entrou na ALN com 14 anos e o mataram com 18. Enfim...

Mas morreram em pé

Fora uma meia dúzia, ninguém se arrepende disso não. Estávamos lá pra isso mesmo. Era o que tinha que ser feito. Mas o que motivou isso? Foi o golpe de Estado de 31 de Março de 1964, que nos fez termos que sair das nossas ocupações, como brasileiros, pra podermos dizer que aqui nesse país não íamos morrer de joelho, que íamos morrer em pé. Então, se um dia essa discussão voltar ao Congresso, tem que se discutir: vai se punir ou não essas pessoas? Ora, estamos numa democracia... É crime tortura? O que a lei prevê como crime? Tem que ser uma discussão técnica, nas letras da lei. Ou será que vai ser uma troca? Quem pegou em armas contra a ditadura vai ter que fazer os anos de cadeia que faria caso não tivesse a Lei de Anistia? Fica essa questão no ar...

Ana Helena: Fala-se muito num “pacto de conciliação” e que quebrá-lo seria prejudicial. Existiu tal pacto?

Carlos Eugênio: Onde é que eu assinei? Eu era comandante da Ação Libertadora Nacional. Sou o único que ficou vivo, porque todos foram presos, torturados e mortos. Você assinou? Você assinou? (pergunta ele aos companheiros presentes, recebendo a negativa de todos) Então, eu quero saber onde é que tá esse pacto. Isso foi feito lá em cima, dentro da classe dominante. (“Acho que foi feito entre o Sarney e o Jarbas Passarinho, eles se acertaram por lá e fizeram isso”, brinca um dos presentes). Mas o povo brasileiro não participou. Por acaso, foi feito algum referendo? Eles disseram ao povo: ‘vem cá, como é que a gente vai acabar com essa merda? Fizemos um golpe de Estado, ficamos 20 anos no poder e queremos sair, porque agora não tá dando mais. O Jimmy Carter já disse que não vai dar mais dinheiro pro Brasil se continuar essa ditadura.’ Disseram isso? Foram logo convocadas eleições gerais livres? Ora, a primeira só viria a ocorrer em 89, 10 anos depois da Lei de Anistia. E esse foi o tempo necessário pra que os caras montassem um sistema que é o que aí está. E pra montar esse país, que a gente tá tentando, com muita vontade, com muita garra, reconstruir. Quando o Brasil saiu da ditadura, era um país a ser reconstruído, porque ele foi dizimado, acabado política, econômica e socialmente falando.

Ana Helena: O que você acha da expressão “revanchismo”?

Carlos Eugênio: Eu sou revanchista. Porque o problema é que os caras criam umas categorias e dão uma conotação, inclusive, moral a elas, que não existe. Ou seja, se é revanchismo prestar contas com a história, então eu sou revanchista. Eu prestei minhas contas. Fui condenado à revelia, entrei na clandestinidade, lutei e não me arrependo. Se eu precisasse dar mais 10 anos, daria mais 20. Não importa. Não precisou, tudo bem. Tô aqui, tô vivo. Se tivesse morto, seria mais um nome na lista. Agora, minhas contas estão prestadas em livros, reportagens e teses acadêmicas escritas sobre mim. Por exemplo, tem uma na Unicamp, que é: “A importância dos livros do Carlos Eugênio Paz para reconstrução da história da luta armada no Brasil. Pronto, tá lá. São 400 páginas explicando a importância que tem eu ter falado.

O orgulho

Quando ninguém falava nada aqui nesse país, em 87, quando nem havia a nova Constituição, tava na época da Constituinte, veio à tona um caso polêmico ligado à ALN, o JB me procurou e eu contei a história todinha. Saiu na 1ª página num domingo. Até o meu padeiro ficou sabendo quem eu era. Aí me perguntaram: “Por que você contou?” E eu respondi: porque me perguntaram. E por que isso? Porque eu não tenho problema com a minha história, com o meu passado. Tudo o que eu fiz na luta armada eu assumo e, se tiver algum caso que eu ainda não contei, é simplesmente porque não me perguntaram... (risos) Se perguntar, eu conto! Sabe por quê? Porque eu tenho um profundo orgulho de ter participado dessa luta. Olha, eu vou morrer orgulhoso. Sou um nordestino orgulhoso. Meu pai dizia: “Orgulho besta!” E eu dizia: pois eu sou besta, pai.

Presidente? Não! DITADOR!
Ana Helena: Então, por tudo o que você disse, fica entendido que o que você acha fundamental nessa discussão, fundamental pra que nos tornemos de fato uma democracia, é a localização dos dois lados na história, certo?

Carlos Eugênio: Exatamente. Marighela = herói do povo brasileiro. Médici = ditador. Brecht dizia “pobre do povo que precisa de heróis”.

Heróis

Mas hoje chamam de heróis os participantes do BBB!!!!! Aquele ex-jornalista... (“Pedro Bial”, disse alguém, no que Carlos Eugênio rebateu: você falou, mas eu não falo nem o nome) Ele era jornalista quando cobriu a queda do Muro de Berlim. Agora deveria pensar três, cinco, dez vezes... Será que ele já se deu conta do desserviço que faz à sua própria biografia? Será que a queda do Muro de Berlim é igual a um BBB? Então, eu já vou começar a achar que não tinha que ter caído o muro... (risos) Mas veja... Chamam os participantes de um jogo de televisão, pra ganhar dinheiro, de heróis. Jogo de onde só se tira porcaria, coisas que nossas famílias e crianças não precisam aprender, que é como se faz alianças pra dar golpe.

Erotismo

E a erotização... Olha que quem tá falando é uma pessoa que assume profundamente a sua própria erotização. Eu não tenho problemas com o erotismo. Nenhum. Sou leitor de Anaïs Nin e Henry Miller. Fui formado na escola do erotismo. Agora, o problema é transformar isso numa mercadoria de mau gosto, como é o BBB. Hoje em dia, tem gente que até vota pras meninas saírem mais rápido da casa, nos tais dos paredões, pra posarem no “Paparazzo”, na “Playboy”, “Sexy” etc... Isso eu tô falando porque ouço caras dizendo: “Vou votar em fulana, porque tô louco pra vê-la no ‘Paparazzo’”... Incentivando uma coisa que eu chamo de “erotismo de açougue”. Como se o erotismo fosse essa coisa de baixo calão que é pregada no BBB...

O Juquinha precisa saber

Mas, voltando à questão da localização dos sujeitos históricos, eu só vou morrer feliz quando Juquinha chegar na escola, abrir seu livro e estudar sobre João Cândido (o almirante negro, líder da Revolta da Chibata). Apolônio de Carvalho, Joaquim Câmara Ferreira (Comandante “Toledo” da ALN)... Agora na posse da companheira Dilma eu fiquei horrorizado, mais uma vez, porque me horrorizo a cada 3 segundos nesse país... É que deram o número total de presidentes... E eu pensei: não eram todos presidentes. Como podem até hoje chamar os caras que tomaram o poder pelas armas de presidentes? (“É tradição”, comentou um dos presentes) E eles ainda tentaram colocar nas costas da esquerda brasileira um rompimento com a democracia... Que é que é isso? Quem rompeu com a democracia nesse país?

Ana Helena: Como você vê a atuação da mídia nesse processo?

Carlos Eugênio: Bom, a Folha de S. Paulo emprestava os carros da redação pra transportar companheiros presos e torturados. E ainda ajudava a montar emboscadas. Porque alguns companheiros, sob tortura, fraquejavam e diziam: “eu vou encontrar com fulano na rua tal”. (“Até pra tentar fugir”, comentou um dos presentes) Aí, eles usavam os carros da Folha pra que a gente não desconfiasse. A UltraGaz também fazia isso com seus caminhões. “O Globo” e o “Estadão” pediam o golpe em seus editoriais. É impressionante como essas pessoas não foram presas na época... Porque você tá num país democrático, a pessoa chega e diz claramente: “precisamos derrubar esse governo”... Isso é sedição (levante, motim). Eles é que praticaram isso. Então, essa mídia foi construída assim. Ela já era uma mídia de classe, concentrada. A gente sabe que 5 ou 6 famílias dominam a grande mídia. Mas agora, felizmente, a coisa já tá se abrindo pra uma mídia alternativa, que já tá sendo uma outra história. A gente já tá vendo lá no fundo uma certa luz, porque tem um monte de gente que tá trabalhando, batalhando, pra construção dessa nova mídia e lutando, inclusive, pra democratização das informações e das comunicações. São duas coisas diferentes, né, informação e comunicação. E a gente tem que lutar pela democratização das duas.

Na ponta do fuzil e nas antenas de TV

Por exemplo, quando saiu o PNDH-3, essa mídia oficial todinha meteu o pau. Por quê? Porque eles estão defendendo os interesses deles. Mao Tsé-Tung dizia que “o poder está na ponta do fuzil”. Pois é, hoje o poder está na ponta do fuzil e nas antenas de TV. (um dos presentes lembrou o caso Proconsult, em que a Globo tentou fraudar a eleição de Brizola para o governo do RJ).

Ana Helena: Qual sua expectativa com relação ao papel da Dilma, uma ex-torturada, nessa questão?

Carlos Eugênio: Eu acho que são passos adiante. Por exemplo, o governo Lula. Foi o governo dos meus sonhos? Não. Mas foi um passo adiante? Foi. Um tremendo! Por que não foi o governo dos meus sonhos? Porque foi um governo que, ao mesmo tempo que... Sabe o que é? Vamos falar informalmente... Eu não mudo pra incluir ninguém no mercado. A minha luta não é pra isso. É pra acabar com mais-valia, com a exploração do homem pelo homem. Então, é uma luta muito mais profunda, mas que tá muito mais lá na frente... Aí, quando dizem o seguinte: “15% dos miseráveis passaram a ser pobres, 32% dos pobres passaram a ser classe média, tantos % passaram a ser ricos...” Isso, pra mim, só é passo adiante porque, se você tem um homem que tá passando fome, é importante que ele passe a comer. Porque, se ele não passar a comer, ele entra num estado de degenerescência humana e que se transforma em degenerescência social. (“Não podemos deixar ninguém morrer de fome na sociedade”, diz um dos presentes) Porque nós somos humanistas e queremos que todo mundo coma.

O governo Lula: um passo adiante

Então, são passos adiante por isso. Agora, o governo Lula deu esse passo à frente, mas os bancos nunca ganharam tanto... Outro dia, em Janeiro, eu fui a São Paulo, e participei de uma discussão em que alguns companheiros afirmaram: “O governo Lula diminuiu as desigualdades”. E eu disse: Não! Se você me falar que o governo Lula distribuiu renda, distribuiu. Mas aumentou a renda debaixo, deixando que a de cima aumentasse também. Então, a desigualdade continuou a mesma. Só que todo mundo subiu um pouco, não é isso? Mas pra que você acabe com a exploração do homem pelo homem ainda há muito a fazer. E se você me perguntar: “será que 2, 3, 4 governos desse tipo não vão no levar à democracia que você quer?” E eu vou dizer: Não! Ainda vai faltar outro estágio, que é mudar a estrutura das relações dos meios de produção no nosso país. Aí a gente vai chegar num Brasil fraterno em que ninguém explora ninguém, todo mundo respeita a opinião de todo mundo.

A fraternidade: o diferente não é o inferno

Cadê a fraternidade? É simplesmente uma campanha da CNBB uma vez por ano? É doar um quilo de alimento não perecível? Isso é caridade! Cristã. Fraternidade é você encarar que o seu diferente não é o seu inferno. Sartre é que dizia isso: “o inferno são os outros”. Quer dizer, tudo que não sou eu é o inferno pra mim. Então, temos que conseguir que o ser humano, especificamente o brasileiro, encare o seu diferente como seu igual. Falta muito? Falta! Mas são passos adiante...

Dilma: duas questões a atacar

A Dilma? A gente sabe que, no atual sistema, pra governar você precisa de maiorias e de um monte de coisas, senão você faz um governo horroroso que não anda pra lugar nenhum. Então, ela, na verdade, vai tentar, e espero que consiga, gerenciar da melhor maneira possível dentro do capitalismo brasileiro. Agora, espero que ela dê mais passos à frente com relação ao governo Lula. E duas das questões que eu acho que ela pode atacar são: 1- essa da Comissão Nacional da Verdade; 2- a democratização da informação, porque aí essa mídia, que só fala segundo seus interesses de classe, vai ter menos poder do que ela tem hoje (um dos presentes lembrou sobre a importância dos Pontos de Cultura e do Fórum Nacional de Banda Larga).

As imagens não mentem e são a prova de que os
"democratas" se atraem... E mais do que isso:
gostam de andar de braços dados!
Democracia post-mortem

Você veja o que é o conceito de "democracia"... Quando morreu o Frias pai, saiu em todos os órgãos de imprensa que morreu um democrata. Quando morreu o Roberto Marinho, também disseram que morreu um democrata. E as pessoas dos governos de centro-esquerda têm comparecido aos enterros... (vide Lula e Brizola que foram ao enterro do "Dr. Roberto")

(“As pessoas, na política, não são pessoas, elas são o que elas representam e são um conjunto de forças em movimento... então, um presidente da República tem que administrar as pressões dentro do governo... e cada um faz isso de uma maneira... então, não se pode julgar ninguém como pessoa”, resumiu um dos presentes).  

Os outros ex-guerrilheiros presentes eram:

Affonso Henriques, ex-PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário)
Colombo Vieira, ex-ALN
Paulo Gomes, ex-ALN
Pedro Alves, ex-MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro)