O golpe de 64 e o direito à verdade
Emiliano José (*)
O 47º aniversário do golpe militar de 31 de março de 1964 é uma boa oportunidade para refletirmos sobre uma grande mancha, uma nódoa moral que mancha a alma brasileira. O golpe militar violentou o Estado de direito, derrubou um presidente constitucional, desrespeitou as liberdades individuais e coletivas e, sobretudo, submeteu o país aos interesses do grande capital nacional e internacional, capital que se acumpliciou inteiramente com o golpe. Os responsáveis pelo golpe militar cometeram um crime de lesa-pátria. E com o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, os militares radicalizaram a ditadura, institucionalizando o terror de Estado, acabando com quaisquer vestígios de legalidade, e atentando, a partir daí de modo cotidiano, contra os direitos humanos.
Alguns historiadores concluíram, numa explicação rasa, simplista, que a anarquia militar deu origem à ditadura e ao terrorismo de Estado. Penso que não. A ditadura militar e o terrorismo de Estado foram resultado de um planejamento na Escola Superior de Guerra (ESG) que reproduziu pensamentos de guerra de escolas norte-americanas, que não admitiam um governo democrático reformista, progressista, porque era essa a natureza do governo Goulart. Todos os generais-presidentes eram foras-da-lei. Cúmplices na derrubada de um governo constitucional, e também na criação de um ordenamento jurídico autoritário e espúrio.
Esses generais-presidentes, por mais de 20 anos, comandaram o martírio imposto aos jovens estudantes, aos operários, a todos os que se opuseram ao regime militar das mais variadas maneiras e adotando as mais diversas formas de luta. Os generais-presidentes são criminosos. Não podemos, a Nação não pode, eximi-los da responsabilidade dos crimes de prisão, tortura, assassinato, desaparecimento de opositores ocorridos dentro das instituições das forças armadas e nas ações chamadas de combate.
Lamentavelmente, temos que dizer que as forças armadas brasileiras, as daquele período histórico, têm as mãos sujas de sangue. Essa gente tem nome e sobrenome. Daí a importância do resgate da verdade. Se ainda estão vivos, torturadores e assassinos precisam ser punidos, e o primeiro passo é o conhecimento da verdade. Não há prescrição para esse tipo de crime. Não pode haver. À luz do direito internacional, do nosso direito e à luz dos direitos humanos.
Esclareço, embora me pareça óbviom, que ao fazer isso ninguém está pretendendo julgar os militares brasileiros de hoje, que se encontram cumprindo suas funções constitucionais. Mais: creio que às Forças Armadas atuais deveria interessar que toda a verdade viesse à tona, que se desse nome aos torturadores publicamente, de modo a separar o joio do trigo, a enterrar de vez aquele período, e a não permitir de modo nenhum que tais Forças Armadas voltassem a se envolver em políticas terroristas, como ocorreu durante a vigência da ditadura militar inaugurada em 1964.
Um padre amigo me citou certa vez um trecho do Evangelho de São João: “queiram a verdade, porque a verdade vos tornará livres”. Ou então o que dizia o notável Gramsci: aos revolucionários só interessa a verdade, nada mais do que a verdade. Simples assim. A verdade sobre o regime militar, mais cedo ou mais tarde, deverá ser exposta porque liberta. Vejo como uma purificação da alma brasileira. Uma catarse necessária, fundamental. Temos de olhar para os monstros que torturaram e mataram sem piedade, reconhecê-los. Ao menos isso.
Direito à verdade. Direito à memória. Temos que reconhecer que lamentavelmente grande parte de nossa juventude de hoje não tem a menor idéia do que aconteceu nos porões da ditadura. É preciso que a sociedade medite sobre o que aconteceu, sobre a covardia que é submeter à tortura prisioneiros de qualquer natureza. É curioso assinalar que nem mesmo a legislação da ditadura, nem mesmo ela, admitia que a tortura fosse admissível. Eles não quiseram passar recibo. Mas, não adianta: a história registra as coisas. Na pele, no corpo, na alma de milhares de brasileiros ficaram gravadas as garras dos assassinos da ditadura. Não é panfletarismo gratuito: é que eram assassinos, e da pior espécie, e além de tudo covardes. A tortura é um ato de covardia, para além de monstruoso.
Do ponto de vista jurídico não há impedimento para o julgamento dessas pessoas, militares e civis. Pelo sistema de direitos humanos sacramentado pela ONU, pela OEA, não há prescrição para crimes deste tipo. Não é objetivo da Comissão da Verdade, sei, até porque impossível, até porque fora de suas atribuições, promover quaisquer espécies de julgamento. Ela quer apenas e tão-somente conhecer, garantir que a sociedade brasileira conheça a verdade. Saiba sua própria história.
Quando o General De Gaulle assumiu o governo provisório, após a libertação da França na Segunda Guerra Mundial, fez uma declaração singular: sua primeira medida seria instituir tribunais regulares para julgar os colaboracionistas, porque a França jamais poderia encarar o futuro com confiança se não liquidasse as contas do passado. Poderíamos acusá-lo de revanchista? Certamente não. Em nosso caso, não liquidamos as contas do passado e isso prolonga a nódoa moral criada pelo terrorismo de Estado.
Não apenas não liquidamos as contas, como o fizeram tantos países latino-americanos, como o Argentina, o Chile, o Uruguai, que viveram ditaduras também. Na Argentina, os carrascos, maiores e menores, amargam prisões, depois de julgamentos regulares, sob um Estado democrático. Jorge Videla está na prisão. Nós, nem ainda conhecemos toda a verdade.
Essa impunidade histórica alimenta um vício secular na política brasileira. O vício de um sentimento de imunidade do poder. No poder, os autoritários, fardados ou não, se julgam inatingíveis, se corrompem, traem os interesses nacionais, entregam as riquezas do país, relativizam atrocidades cometidas, como se os fins justificassem os meios. Creio que estamos mudando. Que no governo Lula, houve prisão de gente de colarinho branco, embora sob protestos de parte de nossa elite. Mas, ainda temos muito que avançar para acabar com quaisquer imunidades ou impunidades. Todos estão ou devem estar submetidos à lei. Ninguém tem o direito de torturar ninguém, e quem o fizer nunca deixará de estar ao alcance da lei.
A mídia anunciou que o Exército Brasileiro retirou da agenda a “comemoração” do 31 de março. Se corresponde aos fatos, ainda há esperança. Só temos a saudar tão sábia decisão. Chega a ser trágico que os novos militares cultuem com ordem unida e desfile público os crimes cometidos pelos generais do passado. Não dá para construir uma verdadeira democracia com esse tipo de tradição. O 31 de março só merece repúdio. Nunca comemoração. Ao fazer isso, creio, se de fato o fizeram, se acabaram com tais celebrações, as Forças Armadas atuais se incorporam definitivamente ao ideário democrático, se adequam aos novos tempos do Estado democrático.
A Comissão da Verdade quer apenas a verdade, o exercío do direito à verdade, à memória. O direito que tem qualquer pai, qualquer mãe de família, qualquer parente de saber o que ocorreu com seus entes queridos, muitos deles desaparecidos, milhares torturados pelos criminosos fardados ou não sob as ordens dos generais-presidentes entre 1964 e 1985.
Porta-vozes dos criminosos do passado tentam carimbar a Comissão da Verdade como revanchismo. Ela não tem esse caráter. Ela segue o caminho de todos os países que enfrentaram regimes genocidas, ditaduras terroristas, como foi o nosso caso. Queremos justiça, apenas justiça. Quer resgate de uma dívida do Estado brasileiro, na letra e no espírito da Constituição Federal. Quer o direito coletivo à verdade, um direito das vítimas da ditadura, um direito dos brasileiros.
Aqui, minha saudação aos bravos militantes brasileiros que tombaram na luta contra a ditadura de 31 de março de 1964. Minha saudação aos que lutaram e sobreviveram. E que não querem se esquecer do que houve. E ao manter na memória aqueles tempos não o fazem por qualquer espírito revanchista. Agem assim primeiro porque quem passa pela tortura, pela prisão, e sobrevive, nunca mais se esquece. E segundo, ao não se esquecerem e ao lembrarem publicamente dos crimes da ditadura, advertem as novas gerações que devem prezar muito as liberdades democráticas, valorizar a democracia, firmar a convicção de que ditadura nunca mais.
(*) Jornalista, escritor, deputado federal (PT/BA), e ex-preso político.
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Quem tem medo da verdade?
Nilmário Miranda (*) - Especial para Carta Maior
Eu não tinha 17 anos quando veio o golpe, destruindo meus sonhos das grandes reformas de base. Morava na então pequena Teófilo Otoni (MG). Os ferroviários da lendária Estação de Ferro Bahia-Minas cruzaram os braços. Foi o único e solitário protesto (no ano seguinte a EFBM foi extinta).
Em poucos dias nada menos que 74 pessoas foram presas pelos “revolucionários” e levados ao QG dos golpistas em Governador Valadares. Ferrovias, comerciários, bancários, estudantes, militantes da Igreja, do Partidão, do PTB, pequenos comerciantes – dentre eles meu pai, uma pessoa pacata, educada, incapaz de fazer mal a ninguém, uma alma gentil.
Chocou-me também a prisão de Dr. Petrônio Mendes de Souza, ex-prefeito, médico dos pobres, figura hierática. Lá pelos dias encontrei-me com o filho do ferroviário Nestor Medina, carismático, inteligente, autodidata, homem de grande dignidade. Desde aquela noite fiz juras de por todos os dias enquanto durasse, combateria a ditadura, o que realmente aconteceu.
No ano seguinte mudei para Belo Horizonte para estudar e participar da resistência. 1968 foi o ano do crescimento da oposição à ditadura. A Marcha dos Cem Mil no Rio; as duas greves (Contagem e Osasco) desafiando a rigorosa legislação anti operária; a fermentação no meio cultural; a Frente Ampla que uniu o impensável (a UDN de Carlos Lacerda, o PSD de JK, o PTB de Jango); as primeiras ações da resistência armada. A recusa da Câmara de conceder a licença para processar Márcio Moreira Alves foi um pretexto para a edição do AI-5 em 13 de dezembro, instituindo o Terror de Estado.
Eu respondia a processo pelo LSN depois da prisão por 32 dias após a greve de Contagem; vi-me em um dilema: sair do país, para o exílio; ou cair na clandestinidade. Estudava Ciências Econômicas na UFMG. Optei pela resistência na clandestinidade, aos 21 anos. Todas as portas foram fechadas; os espaços para a oposição foram extintos.
Desde as prisões em Ibiúna de mais de 700 estudantes de todo o país, as odiosas listas negras para os trabalhadores rebeldes, a “aposentadoria” forçada de três ministros do STF como recado para amordaçar a Justiça, a censura prévia na imprensa, o fim do habeas corpus. A polícia política tinha dez dias de prazo para apresentar o detido ao juiz militar, e a criação de centros de detenção e tortura na prática era a institucionalização da tortura.
Passar à resistência clandestina era a opção de colocar a própria integridade física em risco. Mas essa foi a opção de milhares de brasileiros. Nada menos que 479 pessoas foram eliminadas, 163 das quais se tornaram desaparecidos políticos.
Denominar a ditadura de “ditabranda” é piada de péssimo gosto. Pior ainda é a insistência de alguns comandos militares de comemorar o 31 de março como uma “revolução democrática”, em desafio à cúpula militar que retirou esta data do calendário de efemérides.
Aprovar e instalar a Comissão Nacional da Verdade, confiando à sete pessoas idôneas, probas e éticas a tarefa de passar os 21 anos da ditadura à limpo dá uma interpretação fiel ao que se passou no país para constar dos livros e currículos escolares, inclusive das academias militares. É mais uma grande e importante etapa na construção de nossa democracia, incorporando o direito à verdade.
(*) Nilmário Miranda é jornalista, Presidente da Fundação Perseu Abramo, ex Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH).
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