terça-feira, 22 de março de 2011

"Bombardeios não podem instaurar democracia"

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FILME AMERICANO

Seis civis líbios são metralhados por um helicóptero dos EUA nas proximidades de Benghazi; uma das vítimas corre o risco de ter a perna amputada. O helicóptero em voos rasantes estava em missão de resgate de dois tripulantes do caça F-15 Strike Eagle que caiu em circunstancias não esclarecidas  na noite da segunda-feira. O F-15E realizava bombardeios na cidade de Benghazi, supostamente um reduto de opositores de Kadafi. Um dos feridos, ouvido no hospital, afirma que os civis estavam comemorando a ação internacional quando os americanos abriram fogo... (Carta Maior, com informações Al-Jazira/ Channel 4 News). Fundo sonoro da cena: o discurso de Obama no Chile, nesta 3º feira, quando afirmou: 'Nossa ação militar ...tem como foco a ameaça humana que Khadafi está impondo a seu povo. Ele não apenas está assassinando os civis, mas também ameaçando fazer muito mais". Corta e volta para a cena do helicóptero, agora sem som. Closes alternados nos rostos dos americanos acionando as metralhadoras e nos dos líbios, que festejavam chegada das forças estrangeiras.


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"Bombardeios não podem instaurar democracia na Líbia"

 

Em entrevista ao jornal francês Libération, Rony Brauman, ex-presidente da organização Médicos sem Fronteiras e professor de Estudos Políticos em Paris, critica a ação militar autorizada pela ONU na Líbia.

 

Eric Aeschimann – Libération

Libération: Desta vez, uma parte dos que se opunham à intervenção estadunidense no Iraque está de acordo com a resolução do Conselho de Segurança sobre a Líbia. Você não está. Por quê?

Rony Brauman: Porque, como no passado, hoje em dia sigo sem acreditar nas virtudes dos bombardeios aéreos para estabelecer a democracia ou “pacificar” um país. Aí estão os casos da Somália, do Afeganistão, do Iraque e da Costa do Marfim para nos lembrar da cruel realidade da guerra e sua imprevisibilidade. “Proteger as populações”, na prática, significa desfazer-se de Kadafi e, se seguimos passo a passo essa lógica até o fim, substituí-lo por um Karzai local, ou dividir o país congelando a situação. Em ambos os casos seremos incapazes de assumir as consequências. Quando será ganha esta guerra?

Libération: É preciso assistir como espectador a aniquilação da rebelião líbia por parte do exército de Kadafi?

Brauman: Claro que não. Entre a guerra e o statu quo há uma margem de ação: o reconhecimento do Conselho Nacional (órgão político dos rebeldes) por parte da França foi um gesto político relevante. É preciso seguir apoiando militarmente a insurreição, fornecer-lhe armamento e assessoramento militar para reequilibrar a relação de forças no terreno, assim como fornecer informação sobre os movimentos e os preparativos das tropas inimigas. O embargo comercial, o embargo sobre as armas e o congelamento dos ativos do clã Kadafi são outras medidas de pressão em relação às quais o regime de Trípoli não pode permanecer insensível.

Libération: Não se corre o risco de deixar que ocorra uma tragédia?

Brauman: Tome Ruanda como exemplo, caso frequentemente mencionado a propósito do que não devemos fazer: a ONU tinha enviado soldados e os retirou antes do genocídio; isso é lembrado como um erro gigantesco. No entanto, ainda que possa se entender esse erro, o que a crítica moral não vê é que para mudar o curso dos acontecimentos teria que ter sido estabelecida uma tutela total no país, o que era impossível. No meu entender, nossa falha não consistiu na retirada de 1994, mas sim na intervenção de 1990 para salvar o regime no poder, com a ilusão de poder impor a paz. Teria sido melhor aceitar a violência daquele momento do que congelar, por um período necessariamente limitado, a relação de forças. Os mais radicais de ambos os lados acabaram se aproveitando dessa situação.

Libération: Você mantém sua posição inclusive se nos conformamos somente com intervenções aéreas?

Brauman: As operações aéreas nunca permitiram ganhar uma guerra. Esta ilusão tecnológica provém do pensamento mágico. O balanço destas intervenções armadas internacionais indica que já não possuímos os meios para decidir o que é bom ou não no estrangeiro. O remédio é pior que a enfermidade. Quando a força já não nos permite fazer com que uma circunstância histórica se transforme para nossa conveniência, é melhor não fazer uso dela e renunciar ao sonho da “guerra justa”. Nesta matéria, como em outras, a política regida pela emoção é uma má conselheira.

Libération: Trata-se então de uma oposição de princípio a qualquer intervenção?

Brauman: Não, as Brigadas Internacionais que foram combater na Espanha ao lado dos republicanos em 1936, representam um momento importante de solidariedade internacionalista – ainda que, com toda certeza, não o tenham sido no que se refere à defesa das liberdades democráticas – e eu aprovaria totalmente a ideia de que brigadas internacionais fosse apoiar a rebelião líbia. No entanto, as intervenções dos Estados são uma questão completamente diferente!

E acrescento que a ética está bastante longe de sair vitoriosa se se comparam as situações nas quais se considerou justificável uma intervenção internacional com aquelas dos povos que abandonamos deixando-os a mercê de seus opressores: Chechênia, palestina, Zimbabwe, Coreia do Norte, etc. E para citar um exemplo recente, entre os que reclamam o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia, quantos teriam defendido a neutralização da força aérea israelense sobre Gaza em janeiro de 2009 ou sobre o Líbano em agosto de 2006?

Libération: Então é impossível uma diplomacia dos direitos humanos?

Brauman: Pergunte o que pensam disso os manifestantes de Bahrein, reprimidos por nossos aliados, as monarquias petroleiras do Golfo. Por sua parte, os iranianos já poderiam preocupar-se com a defesa dos direitos humanos na Península Arábica. Não, os direitos humanos não constituem uma política e a oposição canônica entre os direitos humanos e a realpolitik é um beco sem saída. Só existe uma política, que é a arte de querer as consequências do que se deseja. Os direitos humanos são invocados ou revogados pelos Estados segundo a vontade destes.

Libération: O que diz aos líbios que pedem ajuda ao Ocidente?

Brauman: Digo que alimentam ilusões sobre nossa capacidade de corrigir a situação em seu favor e que pagarão um preço muito alto. Lembre que, em 2003, muitos iraquianos se pronunciaram a favor de uma intervenção militar. Pensavam que os estadunidenses cortariam a cabeça do tirano e logo iriam embora. Os médicos sabem, ainda que não somente eles, que dar a ilusão de proteção pode ser pior que oferecer proteção.

Libération: E o fato de Kadafi recuperar o controle da Líbia por acaso não constitui o fim da primavera árabe e mesmo uma ameaça para as revoluções tunisiana e egípcia?

Brauman: Não vejo por que seria assim. Por um lado, não é somente a situação na Líbia que determinará o futuro da democracia nos países árabes; por outro, vemos que, eclipsada pela intervenção em curso, a repressão se abate sobre outras manifestações nos países do Golfo. Por outro lado, nós, franceses, somos os mais indicados para saber que entre a revolução e a democracia há bastante caminho a percorrer e há retrocessos também. E a primavera árabe não é uma exceção. Estou convencido de que o rechaço aos poderes despóticos e corruptos está profundamente arraigado em todas as sociedades contemporâneas, mas também, de que são elas que devem fazer desse repúdio um programa político.

(*) Rony Brauman foi presidente da organização Médicos sem Fronteiras, é professor de Ciências Políticas no Instituto de Estudos Políticos de Paris e estuda há muitos anos as consequências das intervenções humanitárias.

Fonte: http://www.liberation.fr/monde/01012326703-je-ne-crois-pas-aux-bombardements-pour-instaurer-la-democratie

Tradução para o Rebelión: Marina Almeida
Tradução para a Carta Maior: Katarina Peixoto

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