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27 de março de 2011
Líbia: Dividir, submeter, arrancar de lá o petróleo
Pepe Escobar, Asia Times Online 24/03/2011
Sem romper o nevoeiro da guerra, é impossível entender o que realmente se passa na Líbia.
A Operação Alvorada da Odisséia só está acontecendo porque os 22 membros da Liga Árabe, em votação, aprovaram a imposição de uma zona aérea de exclusão sobre a Líbia. A Liga Árabe – sempre apresentada rotineiramente nas capitais ocidentais como irrelevante, antes dessa decisão – não passa de instrumento da política externa da Casa de Saud.
A “decisão” da Liga Árabe foi incentivada pela promessa de Washington de proteger os reis/xeiques/oligarcas do Conselho de Cooperação do Golfo, contra a ação das aspirações democráticas dos respectivos cidadãos – que só aspiram a alcançar os mesmos direitos democráticos pelos quais lutam seus ‘primos’ do leste da Líbia.
Trata-se de exatamente o mesmo Conselho de Cooperação do Golfo que aprovou que a Arábia Saudita invadisse o Bahrain para ajudar a dinastia do sunita al-Khalifa a esmagar o movimento pró-democracia. A gangue do Conselho de Cooperação do Golfo é considerado pelo ocidente como “os nossos filhos-da-puta”, enquanto o coronel Muammar Gaddafi – segundo a narrativa ocidental – é terrorista que passou por curso intensivo e agora já é bandido-assassino.
O Conselho de Cooperação do Golfo inclui conhecidos campeões da luta pela igualdade: Arábia Saudita, Bahrain, Kuwait, Qatar, Omã e os Emirados Árabes Unidos. Quem primeiro votou a favor da zona aérea de exclusão foi o CCG; depois, a Arábia Saudita, cachorro grande, mediante chaves-de-braço & propinas prometidas, arrancou a aprovação pela Liga Árabe (Síria e Argélia, por exemplo, eram seriamente contra).
Para o oportunista secretário-geral da Liga Árabe Amr Moussa, que já está concorrendo à presidência do Egito, foi ótimo negócio. Recebeu ordem de Riad, ao mesmo tempo em que dava uma polida no próprio currículo, para mostrar em Washington.
Para a Arábia Saudita foi também ótimo negócio: chance perfeita para que o rei Abdullah livre-se de Gaddafi (há rixa insanável, legendária, entre os dois, desde 2002), e chance perfeita para que a Casa de Saud dê uma mão a Washington.
A Operação Aurora da Odisseia não tem meta clara. O presidente Barack Obama disse várias vezes que a coisa só acabará com a partida de Gaddafi (“Gaddafi tem de sair”). A isso se chama “mudança de regime”. Ou nos termos da nova doutrina de duas garras, de Obama, é “o braço dos EUA” (que se estende em socorro dos que se oponham aos “governos do mal”); governos que não sejam muito do mal, casos do Bahrain ou do Iêmen, são estimulados a fazer simples “alteração de regime”.
O problema é que “mudança de regime” não é coisa que a Resolução n. 1973 tenha autorizado.
A Operação Alvorada da Odisseia é a primeira guerra africana do mais novo comando militar do Pentágono do outro lado do mundo – o AFRICOM. Em pouco tempo, virará a primeira guerra africana do Tratado da Organização do Atlântico Norte (OTAN). Embora vendida como “missão limitada”, a Alvorada da Odisseia – só para impor e manter uma zona aérea de exclusão – custará, no mínimo, 15 bilhões de dólares/ano. Os membros da Liga Árabe deverão pagar parte substancial da conta – porque o único estado que enviará forças militares é o Qatar (dois jatos Mirage).
O circo que se vê armado hoje só tem a ver com a “transição” da guerra, do comando do Pentágono na África – cuja base está em Stuttgart, Alemanha, porque nenhum dos 53 países africanos dispôs-se a recebê-la –, para o comando do Pentágono na Europa, também conhecido como OTAN.
A OTAN já interveio na Somália em 2010 – para onde levou, por avião, milhares de soldados de Uganda. Agora está conduzindo a Operação “Escudo do Oceano” ao largo do chifre da África. E antes da Alvorada da Odisseia já pusera a Líbia sob vigilância 24 horas/dia, no foco de seus aviões equipados com Sistema Aéreo de Alerta e Controle [ing. Airborne Warning and Control System, AWACS] – ativos há quase dez anos na já velha Operação Active Endeavor.
No grande quadro, o papel combinado dos tentáculos globais do Pentágono são parte da Doutrina da Total Dominação [ing. Full Spectrum Dominance], que visa a impedir que qualquer nação em desenvolvimento, ou bloco de nações, estabeleçam alianças de relações preferenciais com China e Rússia.
China e Rússia estão entre os quatro principais países BRICSs, com Brasil e Índia. Esses quatro países abstiveram-se na votação do CSONU. Só 48 antes da correria para obter essa resolução, Muammar Gaddafi havia ameaçado que, se fosse atacado pelo ocidente, transferiria os sumarentos contratos de fornecimento de petróleo para companhias da Rússia, Índia e China.
Guerra por comissão
A oposição líbia é uma colcha de retalhos de tribos inamistosas entre elas, o bem-intencionado movimento de jovens, desertores civis e militares do regime de Gaddafi, ativos patrocinados pela CIA (como o sinistro ex-ministro da Justiça Mustafa Abdel-Jalil), islamistas relacionados (e não relacionados) com a Fraternidade Muçulmana e monarquistas tribais senussi. A tribo senussi é a principal na área de Benghazi; a maioria dos “rebeldes” de keffiah & Kalashnikovs são senussi, como era o rei Idris, derrubado pela revolução de Gaddafi em 1969.
O conselho transicional da Líbia chama-se agora “governo interino” – embora ainda comprometido, segundo palavras dele, com uma Líbia não dividida. Mas não se pode excluir a divisão do país – porque a Cyrenaica, historicamente, sempre viveu às turras com a Tripolitania. Se Gaddafi conseguir organizar uma maioria tribal que o apóie, seu regime não cai.
Todos os olhos estarão postos numa “marcha verde” anunciada pela poderosa tribo al-Warfalla, a maior da Líbia, de um milhão de almas; desertaram da oposição e, agora, farão praticamente qualquer coisa para convencer Gaddafi de sua lealdade.
Nada assegura que o Movimento 17 de fevereiro, força política que esteve à frente da revolta na Líbia, com plataforma democrática de respeito aos direitos humanos, estado de direito e garantia de eleições limpas, terá o controle político em ambiente de pós-era Gaddafi.
O ocidente dará preferência a liderança que fale inglês e conheça bem as capitais europeias, além de Washington. Se possível, um fantoche maleável. O petróleo pode corromper qualquer nova liderança até o âmago. Acrescente-se a isso as apimentadas notícias sobre a al-Qaeda no Maghreb Islâmico [ing. al-Qaeda in the Islamic Maghreb (AQIM)] – mais um front de combate da CIA – com um máximo de 800 jihadis, que já estaria apoiando os “rebeldes”. Que ninguém se surpreenda com virada à Armageddon nesse cenário. – A queda de Gaddafi tem potencial para produzir mais um Afeganistão ou outro Iraque.
O acordo ao qual chegaram Obama, o primeiro-ministro britânico David Cameron e o francês Nicolas Sarkozy é que a OTAN desempenhará “papel protagonista” na Alvorada da Odisseia. Tradução: para todos os efeitos, é guerra da OTAN. A liderança política ficará com um “comitê de controle” de ministros de Relações Exteriores – um clube anglo-francês-norte-americano com borrifos de Liga Árabe. Espera-se que se encontrem em breve, em Bruxelas, Londres ou Paris.
Obama telefonou ao primeiro-ministro da Turquia Recep Tayyip Erdogan e aparentemente convenceu-o sobre o arranjo – embora, em discurso ao seu partido governante, Partido Justiça e Desenvolvimento, Erdogan tenha dito que a Turquia “jamais apontará uma arma contra o povo líbio”.
O ministro francês Alain Juppe disse que, dado que nem todos os membros da coalizão militar são membros da OTAN, “essa, portanto, não é operação da OTAN”. Que ninguém se engane: é.
Essa guerra “é da OTAN, não é da OTAN” não é exatamente o que Sarkozy mais queria – uma plataforma “heroica” que salve sua reeleição em 2012. Mas a motivação ocidental, acima de tudo, tem sabor de petróleo. Se não se conta a Arábia Saudita, a Líbia é o mais espetacular pedaço de mundo com que podem sonhar os dependentes de petróleo de todo o ocidente: um posto de gasolina gigante no meio do deserto, sem ninguém por perto, que fiscalize.
A parte das reservas realmente já conhecidas e exploradas de petróleo e gás, da Líbia, estão na Cyrenaica “rebelde”. Petróleo e gás respondem por 25% da economia, 97% das exportações e 90% da renda do governo. Sarkozy – além de todo o ocidente – teme guerra muito longa. A França quer que termine logo. Diferente de Alemanha, Grã-Bretanha e Itália – que já estão lá –, a França saliva à espera de um gordo pedaço da carniça-petróleo.
Nada há, absolutamente nada, de humanitário, no atual cassino em que se converteram a União Europeia e a OTAN. A única coisa que conta é garantir posição certa na era pós-Gaddafi – bonança de energia, primazia geoestratégica no Mediterrâneo e no espaço do Sahara-Sahel, gordos, sumarentos contratos no negócios da “reconstrução”.
Mudança de regime ou balkanização?
E a correção moral do ocidente somar-se-á a isso. Se você vende petróleo, compra armas e dedica-se a esmagar a al-Qaeda, moralmente, no ocidente, está tudo bem. Se matar seu próprio povo, não aos milhares, só às dúzias, também, tudo bem.
Assim a Arábia Saudita se safará, praticamente sem escoriações, no clima de contrarrevolução atual: a Casa de Saud está movendo todos os cordões para esmagar todas as medidas de aspiração democrática em todo o Golfo Persa.
Quanto aos regimes que matam talvez milhares de seu próprio povo – e têm petróleo, e ameaçam vender seu petróleo aos russos ou aos chineses –, seu destino é guerrear contra uma resolução-Tomahawk da ONU.
As forças da contrarrevolução estão unidas ao ocidente, como gêmeos xifópagos ligados pelo quadril. Os militares da Arábia Saudita continuarão dentro do Bahrain. O Conselho de Cooperação do Golfo legitima a guerra do ocidente contra a Líbia. Na Líbia, o ocidente dividirá para governar e escapará carregando o petróleo. A grande revolta árabe de 2011 estará acabando, em grande crash, derrubada nas areias do deserto?
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