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26 de março de 2011
Exclusivo: A pesquisadora que descobriu veneno no leite materno
A repórter Manuela Azenha esteve em Cuiabá, Mato Grosso, onde assistiu à defesa de tese da pesquisadora Danielly Palma. A ela coube pesquisar o impacto dos agrotóxicos em mães que estavam amamentando na cidade de Lucas do Rio Verde. A seguir, o relato:Lucas do Rio Verde é um dos maiores produtores de grãos do Mato Grosso, estado vitrine do agronegócio no Brasil. Apesar de apresentar alto IDH (índice de desenvolvimento humano), a exposição de um morador a agrotóxicos no município durante um ano é de aproximadamente 136 litros por habitante, quase 45 vezes maior que a média nacional — de 3,66 litros.
Desde 2006, ano em que ocorreu um acidente por pulverização aérea que contaminou toda a cidade, Lucas do Rio Verde passou a fazer parte de um projeto de pesquisa coordenado pelo médico e doutor em toxicologia, Wanderlei Pignatti, em parceria com a Fiocruz. A pesquisa avaliou os resíduos de agrotóxicos em amostras de água de chuva, de poços artesianos, de sangue e urina humanos, de anfíbios, e do leite materno de 62 mães. A pesquisa referente às mães coube à mestranda da Universidade Federal do Mato Grosso, Danielly Palma.
A pesquisa revelou que 100% das amostras indicam a contaminação do leite por pelo menos um agrotóxico. Em todas as mães foram encontrados resíduos de DDE, um metabólico do DDT, agrotóxico proibido no Brasil há mais de dez anos. Dos resíduos encontrados, a maioria são organoclorados, substâncias de alta toxicidade, capacidade de dispersão e resistência tanto no ambiente quanto no corpo humano.
No dia seguinte à defesa de sua tese, Danielly concedeu uma entrevista ao Viomundo.
Viomundo – A sua pesquisa faz parte de um projeto maior?
Danielly Palma – Minha pesquisa foi um subprojeto de uma avaliação que foi realizada em Lucas do Rio Verde e eu fiquei responsável pelo indicador leite materno. Mas a pesquisa maior analisou o ar, água de chuva, sedimentos, água de poço artesiano, água superficial, sangue e urina humanos, alguns dados epidemológicos, má formação em anfíbios.
Viomundo – E essas pesquisas começaram quando e por que?
Danielly Palma – Começamos em 2007. A minha parte foi no ano passado, de fevereiro a junho. Lucas do Rio Verde foi escolhido porque é um dos grandes municípios produtores matogrossenses, tanto de soja quanto de milho e, consequentemente, também é um dos maiores consumidores de agrotóxicos. Em 2006, quando houve um acidente com um desses aviões que fazem pulverização aérea em Lucas, o professor Pignati, que foi o coordenador regional do projeto, foi chamado para fazer uma perícia no local junto com outros professores aqui da Universidade Federal do Mato Grosso. Então, começaram a entrar em contato com o pessoal e viram a necessidade de desenvolver projetos para ver a que nível estava a contaminação do ambiente e da população de Lucas.
Viomundo – E qual é o nível de contaminação que a população de Lucas se encontra hoje? O que sua pesquisa aponta?
Danielly Palma – Quanto ao leite materno, 100% das amostras indicaram contaminação por pelo menos um tipo de substância. O DDE, que é um metabólico do DDT, esteve presente em 100%, mas isso indica uma exposição passada porque o DDT não é utilizada desde 1998, quando teve seu uso proibido. Mas 44% das amostras indicaram o beta-endossulfam, que é um isômero do agrotóxico endossulfam, ainda hoje utilizado. Ele teve seu uso cassado, mas até 2013 tem que ir diminuindo, que é quando a proibição será definitiva. É preocupante, porque é um organoclorado que ainda está sendo utilizado e está sendo excretado no leite materno.
Viomundo – Foram essas duas substâncias as registradas?
Danielly Palma – Não, tem mais. Foi o DDE em 100% das mães [que estão amamentando]; beta-endossulfam em 44%; deltametrina, que é um piretróide, em 37%; o aldrin em 32%; o alpha-endossulfam, que é outro isômero do endossulfam, em 32%; alpha-HCH, em 18% das mães, o DDT em 13%; trifularina, que é um herbicida, em 11%; o lindano, em 6%.
Viomundo – E o que essas susbstâncias podem causar no corpo humano?
Danielly Palma – Todas essas substâncias tem o potencial de causar má formação fetal, indução ao aborto, desregulamento do sistema endócrino — que é o sistema que controla todos os hormônios do corpo — então pode induzir a vários distúrbios. Podem causar câncer, também. Esses são os piores problemas.
Viomundo – Você disse que as mães foram expostas há mais de dez anos. As substâncias permanecem no corpo por muito tempo?
Danielly Palma – Permanecem. No caso dos organoclorados, de todas as substâncias analisadas, o endossulfam é o único que ainda está sendo utilizado. Desde 1998 os organoclorados foram proibidos, a pesquisa foi realizada em 2010, e a gente encontrou níveis que podem ser considerados altos. Mesmo tendo sido uma exposição passada, como as substâncias ficam muito tempo no corpo, esses sintomas podem vir a longo prazo.
Viomundo – Durante a sua defesa de mestrado, em que essa pesquisa foi apresentada, os membros da banca ressaltaram o quanto você sofreu para realizar a pesquisa. Quais foram as maiores dificuldades?
Danielly Palma – A minha maior dificuldade foi em relação à validação do método. Porque, quando você vai pesquisar agrotóxicos, tem de ter uma precisão muito grande. Como são dez substâncias com características diferentes, quando acertava a validação para uma, não dava certo para outra. Então, para ter um método com precisão suficiente para a gente confiar nos resultados, para todas as substâncias, foi um trabalho que exigiu muita força de vontade e tempo. Foi praticamente um ano só para validar o método.
Viomundo – Essas mães que foram contaminadas exercem ou exerceram que tipo de atividade? Como elas foram expostas ao agrotóxico?
Danielly Palma – Das 62 mulheres que eu entrevistei, apenas uma declarou ter contato direto com o agrotóxico. Ela é engenheira agrônoma e é responsável por um armazém de grãos. Três mães residem na zona rural, trabalhando como domésticas nas casas dos donos das fazendas. É difícil dizer que quem está longe da lavoura não está exposto em Lucas do Rio Verde, pela localização da cidade, com as lavouras ao redor. Mas a maioria das entrevistadas trabalham com comércio, são professoras do município, algumas donas de casa, mas não são expostas ocupacionalmente. A questão é o ambiente do município.
Viomundo – Mas a contaminação se dá pelo ar, pela alimentação?
Danielly Palma - A alimentação é uma das principais vias de exposição. Mas, por se tratar de clorados, que já tiveram seu uso proibido, então eu posso dizer que o ambiente é o que está expondo, porque também se acumulam no ambiente. No caso da deltametrina e do endossulfam, que ainda são utilizados, o uso atual deles é que está causando a contaminação. Mas, nos usos passados [dos agrotóxicos agora proibidos], a causa provavelmente foi a exposição à alimentação — na época em que eram utilizados — e o próprio meio ambiente contaminado.
Viomundo – Quais são as principais propriedades dessas substâncias encontradas?
Danielly Palma – Os organoclorados têm em comum entre si os átomos de cloro na sua estrutura, o que dá uma grande toxicidade a eles. Eles têm alta capacidade de se armazenar na gordura, alta pressão no vapor e o tempo de meia-vida deles é muito longo, por isso que para se degradar demora muito tempo. São altamente persistentes no ambiente, tanto nos sedimentos, solo, corpo humano, e têm a capacidade de se dispersar. Tanto que no Ártico, onde eles nunca foram aplicados, são encontrados resíduos de organoclorados.
Viomundo – O professor Pignati comentou que a Secretaria da Saúde dificultou um pouco a pesquisa de vocês, mas que vocês fizeram questão da participação do governo. Por que?
Danielly Palma – Nós vimos a importância da participação deles porque, quando a exposição da população está num nível elevado e está tendo uma incidência maior de certas doenças, é lá na ponta que isso vai estourar, é no PSF (Programa Saúde da Família). Então, a gente queria que a Secretaria da Saúde acompanhasse para ver em que nível de exposição essa população está e para que tome medidas. Para que recebam essas pessoas com algum problema de saúde e saibam diagnosticar, saibam de onde está vindo e o porquê de tantas incidências de doenças no município.
Viomundo – Se a maioria dessas substâncias não está mais sendo utilizada, o que pode ser feito daqui para frente para diminuir o impacto delas sobre o ambiente e a saúde?
Danielly Palma – Em relação a essas substâncias que não estão sendo mais utilizadas, infelizmente, não temos mais nada a fazer. Já foram lançadas no ambiente e nos organismos das pessoas. A gente pode parar e pensar no modelo de desenvolvimento que está sendo posto, com esse alto consumo de agrotóxico e devemos tomar cuidado com as substâncias que ainda estão sendo utilizadas para tentar evitar um mal maior.
Viomundo – Como que o agrotóxico pode afetar o bebê?
Danielly Palma – Esses agrotóxicos são lipofílicos e se acumulam no tecido gorduroso, então ficam no organismo e passam para o sangue da mãe. Através da placenta, como há troca de sangue entre mãe e feto, acaba atingindo o feto. E alguns tem a capacidade de passar a barreira da placenta e atingir o feto. Durante a lactação, o agrotóxico acaba sendo excretado pelo leite humano.
Viomundo – Então, mesmo que não amamente o filho, ele pode nascer com resíduo de agrotóxico?
Danielly Palma – Sim, isso se a contaminação da mãe for muito elevada.
Viomundo – Foi o caso nas mães [pesquisadas] de Lucas do Rio Verde?
Danielly Palma – Alguns níveis [encontrados] consideramos altos, até porque o leite humano deveria ser isento de todas essas substâncias. Deveria ser o alimento mais puro do mundo. E a gente vê que isso não ocorre, tanto nos meus resultados quanto em trabalhos realizados no mundo inteiro que evidenciaram essa contaminação. A criança acaba sendo afetada desde a vida uterina e depois na amamentação é mais uma quantidade de agrotóxicos que ela vai receber. Mas é sempre bom lembrar do risco-benefício do aleitamento materno. Nunca se deve incentivar a mãe a parar de amamentar porque seu leite está contaminado. As vantagens do aleitamento materno são muito maiores do que os riscos da carga contaminante que o leite pode vir a ter.
Viomundo – Quais os riscos dessa contaminação?
Danielly Palma – Os riscos saberemos somente com um acompanhamento a longo prazo dessas crianças. O que pode acontecer são problemas no desenvolvimento cognitivo e, dependendo da carga que o bebê receba desde a gestação, pode causar má formação, que pode só ser percebida mais tarde.
Viomundo – Essa acompanhamento dos efeitos dos agrotóxicos no corpo humano já foi feito ou ainda é uma coisa a fazer?
Danielly Palma – Quanto ao sistema endócrino, existem evidências. Estudos comprovaram a interferência dos agrotóxicos. Quanto a câncer, má formação e ações teratogênicas (anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal), estudos realizados em animais apontam para uma possivel ação dos agrotóxicos nesse sentido. Mas no ser humano não tem como você testar uma única substância. Quando fazem pesquisas, sempre são encontradas mais de uma substância no organismo e, portanto, não se sabe se é uma ação conjunta dessas substâncias que elevou aquele efeito ou se foi a ação de uma substância apenas.
Viomundo – Os resultados da pesquisa são alarmentes?
Danielly Palma – Foram alarmantes, mas ao mesmo tempo já esperávamos por esse resultado, até porque já tínhamos em mãos resutados da parte ambiental. Vimos que a exposição da população estava muito alta. Com o ambiente contaminado daquela forma, já era esperado encontrar a contaminação do leite, uma vez que o ambiente influencia na contaminação humana também.
Viomundo – O que será feito com esses resultados?
Danielly Palma – Os resultados já foram encaminhados para as mães e, no início do projeto, assumimos o compromisso de, no final, nos reunirmos com elas e explicarmos os resultados. Esperamos que as autoridades do município e de todas as regiões produtoras acordem para o modelo de desenvolvimento que eles estão adotando, porque não adianta ter um IDH alto, ter boa educação e sistema de saúde, se a qualidade de vida em termos de exposição ambiental é péssima.
Para ler entrevista com o professor Wanderlei Pignati, que coordenou toda a pesquisa, clique aqui.
Para ler entrevista com a professora Raquel Rigotto, que pesquisa o mesmo assunto no Ceará, clique aqui.
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27 de março de 2011
A nota da Prefeitura de Lucas do Rio Verde
Saúde
Prefeitura de Lucas do Rio Verde questiona pesquisa da UFMT sobre a presença de agrotóxicos no leite materno
Segundo o secretário municipal de Agricultura e Meio Ambiente, Edu Pascoski, o município é um polo regional na revenda de agrotóxicos e por isso existe uma grande diferença entre o valor comercializado e o valor consumido
Apesar de oferecer todas as condições para a realização do trabalho, a Prefeitura de Lucas do Rio Verde afirma que ainda não recebeu uma cópia da dissertação de mestrado em Saúde Coletiva da bióloga Danielly de Andrade Palma. A pesquisa foi apresentada no dia 15 de março a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e aponta a presença de agrotóxicos no leite materno.
De acordo com o secretário municipal de Agricultura e Meio Ambiente, Edu Pascoski, a Prefeitura de Lucas do Rio Verde tem todo o interesse nos resultados do trabalho e diz estranhar o fato da pesquisa ter ganho repercussão nacional, sem que a parte mais interessada tenha sido comunicada.
“A prefeitura não tem nada a esconder, muito pelo contrário, esta disposta a aprofundar o trabalho e buscar as soluções necessárias”.
Segundo o secretário, a intenção é propor junto aos responsáveis a criação de um grupo de trabalho para que possa avaliar melhor alguns aspectos da pesquisa, principalmente no que diz respeito a metodologia e ao histórico das mulheres avaliadas, para que a partir dos resultados, possam ser estabelecidas outras ações de controle.
Pascoski explica que o estudo está relacionado a um fato isolado, a revoada de agrotóxicos que ocorreu em 2007 e atingiu o perímetro urbano. Porém, segundo ele, desde o incidente, o poder público tem tomado as providências necessárias para conter o avanço da agricultura nas áreas urbanas, com a fiscalização e a elaboração de leis que limitam o uso de defensivos e estabelecem o isolamento entre as áreas do município.
O secretário ressalta ainda os equívocos existentes a respeito do volume de agrotóxicos divulgado pela pesquisa, uma vez que existem particularidades na produção agrícola do município que devem ser consideradas. “Diferente de outras regiões, Lucas do Rio Verde possui duas e até três safras anuais, o que aumenta a média de uso de defensivos, se comparada a outros municípios”.
Segundo ele, o que não significa que os produtores rurais utilizam mais do que o necessário, muito pelo contrário, o objetivo é utilizar cada vez menos, uma vez que, o uso de defensivos agrícolas representa aproximadamente 30% do valor da safra.
Pascoski ressalta também o fato de que Lucas do Rio Verde é um polo regional na distribuição de agrotóxicos e que a pesquisa foi realizada com base nos números obtidos nas revendas agrícolas pelo Instituto de Defesa Agropecuária (Indea) de Mato Grosso. “Nem tudo que é revendido é aplicado nas lavouras de Lucas do Rio Verde, agricultores de seis municípios da região compram os defensivos aqui e aplicam em suas propriedades”.
O secretário lembra ainda que o município não é somente conhecido em todo o País como um dos maiores produtores de grãos do Estado de Mato Grosso, mas também, por meio do projeto Lucas do Rio Verde Legal, que busca o desenvolvimento da agricultura aliada a preservação do meio ambiente.
Ascom/Marcello Paulino
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