CartaCapital, Ed. 638 - 19/03/2011
O apetite chinês
Delfim Netto Uma disputa entre a China e os EUA ocorrida há 30 anos prova como o Estado indutor faz diferença quando o mercado não vê além dos interesses mais imediatos. Foto: AP
O mercado interno de consumo chinês é hoje o mais apetitoso do mundo e, provavelmente, continuará nessa condição por toda a presente década e, quiçá, pelos 20 anos adiante. As decisões de política econômica e da geopolítica chinesas têm demonstrado agilidade em aproveitar as possibilidades de competição que uma economia “de mercado” (assim mesmo, entre aspas) oferece e as vantagens que a centralização do poder permite em certas escolhas estratégicas.
Num comentário recente, lembrei o resultado de uma disputa com os Estados Unidos há mais de 30 anos, quando a China soube usar aquelas vantagens para dominar a produção de terras raras e a comercialização mundial desse insumo, fundamental nas pesquisas de novas tecnologias da comunicação e de desenvolvimento dos processos para produção de energia alternativa ao petróleo.
Não importa qual o modelo que organiza nossas economias, o desenvolvimento é basicamente alimentado pelas inovações, e todos devem poder apropriar-se dos benefícios resultantes do seu trabalho. As regras dentro das quais o jogo se realiza são definidas pela Constituição do Estado onde ele ocorre. Elas devem propiciar um ambiente institucionalmente amigável para atender às condições anteriores.
O problema é que, como inúmeros exemplos históricos comprovam, as decisões tomadas pelo setor privado apenas olhando as condições presentes tendem, frequentemente, quando não estimuladas por um Estado-Indutor adequado, a ignorar os benefícios futuros de atividades que não parecem eficientes no curto prazo. Os mercados e seus agentes costumam ser míopes e oportunistas, por conta da própria opacidade do futuro. É claro que as inovações não podem ser antecipadas nem por eles nem pelo Estado-Indutor. Essa incerteza explica por que é difícil para o mercado coordenar com eficácia as decisões de longo prazo.
Um dos exemplos mais marcantes dessa falha, quando o mercado é deixado a si mesmo para escolher o futuro, talvez seja o que aconteceu na questão das terras raras. Há 30 anos, os EUA eram os maiores produtores do mundo, mas não havia mercado para acolher a produção e, logo, estímulos a novos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Os chineses, usando mão de obra barata, métodos primitivos e incentivos apropriados, aproveitaram a oportunidade.
Aumentaram a sua oferta a preços que eliminaram a produção americana. O mercado revelou sua miopia e oportunismo: transferiu toda a sua demanda para a China! Os chineses aperfeiçoaram a tecnologia da sua produção, organizaram-na e mantiveram seus incentivos. Hoje, representam 97% da oferta mundial. Controlam a sua exportação, reservando-as para uso doméstico, o que lhes dá vantagem competitiva nas tecnologias de última geração.
Olhado superficialmente, o fato parece sugerir que os dois (os agentes competitivos nos EUA e o Estado chinês) agiram racionalmente. Os primeiros reduziram seus custos. O segundo deu emprego à sua mão de obra excedente. Logo, tudo parece ter terminado no melhor dos mundos. A não ser que, entre seus inegáveis talentos, Deng Xiao Ping tivesse, também, o de conhecer o futuro, é difícil explicar por que ele disse, em plena crise do petróleo nos anos 80, “os senhores têm o petróleo, mas a China tem as terras raras”…
Não há dúvida sobre as virtudes da competição e dos mercados (a história mostra que elas existem e são imensas) nas economias fechadas. Quando se trata de economias abertas, o mínimo que se exige para a sobrevivência daquelas virtudes, é que o comércio se faça em condições isonômicas. É absolutamente legítimo e economicamente correto estimular atividades em que a dimensão do mercado interno permite ou permitirá a absorção de tecnologia capaz de, usando na margem o mercado externo, construir num prazo razoável vantagens comparativas para que seus produtos possam competir no exterior sem a ajuda do Estado-Indutor.
O fundamental é a existência da capacidade para absorver a tecnologia, de ambientá-la no estado da arte e, principalmente, ter a perspectiva de segura demanda interna futura. Sem essa última, o incentivo necessário para o início do processo tem pouca probabilidade de sobreviver. Deveria ser óbvio que os estímulos chineses (taxa de câmbio desvalorizada, taxa de juros muito baixa e amplo crédito para exportação), oferecidos a quem investir localmente e transferir tecnologia, têm funcionado com sucesso porque eles são o mais apetitoso mercado interno do mundo.
Delfim Netto é economista, formado pela USP e professor de Economia, foi ministro de Estado e deputado federal.
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