terça-feira, 12 de abril de 2011

A vergonhosa reviravolta de Goldstone


12 de abril de 2011

 

A vergonhosa reviravolta de Goldstone


Ilan Pappé
Tradução de Jair de Souza

Se eu tivesse sabido naquele momento o que sei agora, o informe Goldstone teria sido um documento diferente”. É assim como inicia o muito discutido artigo do juiz Richard Goldstone no Washington Post. Tenho a forte sensação de que talvez o editor tenha mudado o texto e que a frase original devesse ser lida da seguinte maneira: “Se tivesse sabido que o informe ia me converter no judeu que odeia a si mesmo perante os olhos de meu Israel amado e de minha própria comunidadem judaica na África do Sul, o informe Goldstone nem teria sido escrito”. E se esta não foi a frase original, ela é certamente o subtexto do artigo de Goldstone.
Esta virada vergonhosa não ocorreu esta semana. Chega depois de mais de um ano e meio de uma perseverante campanha de intimidação e difamação contra o juiz, uma campanha cuja índole, no passado, destruiu gente poderosa como o senador estadunidense Willian Fulbright, a quem assassinaram politicamente por sua valente tentativa de revelar os negócios ilegais do AIPAC (Comite de Assuntos Públicos Estados Unidos- Israel) com o Estado de Israel.
Já em outubro de 2009, Goldstone declarou a CNN: “tenho um grande amor por Israel” e “trabalhei em favor de muitas causas israelenses e continuo fazendo-o (Vídeo: “http://www.cnn.com/video/#/video/world/2009/10/04/gps.richard.goldstone.cnn”, 4 de outubro de 2009).
Levando em conta que no momento de fazer esta declaração de amor ele não dispunha de novas provas, como ele agora alega ter, poderíamos lhe perguntar como pôde este amor não ter ficado mais fraco com aquilo que tinha descoberto ao redigir, juntamente com os outros membros da comissão da ONU, seu informe original.
O juiz Richard Goldstone na Faixa de Gaza em junho de 2009
Mas coisa pior estava por vir. E exatamente há um ano, em abril de 2010, a campanha contra Goldstone atingiu os patamares mais altos, ou melhor, mais baixos. Ela foi conduzida pelo presidente da Federação Sionista da África do Sul, Avrom Krengel, que tentou impedir que Goldstone participasse do bar mitzvah de seu neto, em Johannesburg, porque “Golstone causou danos irreparáveis ao povo judeu em geral”.
A Federação Sionista da África do Sul ameaçou montar um piquete na entrada da sinagoga durante a cerimônia. Mas pior foi a interferência do rabino chefe da África do Sul, Warren Goldstein, quem repreendeu Goldstone por “causar um grande dano ao estado de Israel”. Em fevereiro passado, numa entrevista que não foi trasmitida, Goldstone disse que “O Hamás perpetrou crimes de guerra, mas Israel não”, de acordo com um informe de 3 de abril de 2010 do portal na Internet do Canal 2 de Israel. Isso não foi suficiente: os israelenses exigiam muito mais.
Os leitores poderiam se perguntar: E daí? Por que Goldstone não foi capaz de aguentar a pressão? Boas perguntas, mas acontece que a sionização das comunidades judaicas e a falsa identificação do judaísmo com o sionismo são ainda um poderoso empecilho para dissuadir os judeus liberais de encarar com audácia os crimes de Israel.
Vez por outra, muitos judeus liberais parecem se libertar e permitir que seja sua consciência, ao invés de seu medo, que lhes guie. No entanto, muitos se mostram incapazes de manter por muito tempo suas inclinações mais universalistas quando se trata de Israel. O risco de ser definido como “judeu que odeia a si mesmo”, com tudo o que isto implica, constitui para eles uma perspectiva real e aterradora. É preciso estar nesta posição para entender o poder deste terror.
Há apenas algumas semanas, a inteligência militar israelense anunciou que havia criado uma unidade especial para controlar, confrontar e, possivelmente, perseguir a indivíduos e organismos suspeitos de “deslegitimar” Israel no exterior. Assim as coisas, talvez os mais vacilantes pensem que enfrentar Israel não compensa.
Deveríamos ter reconhecido que Goldstone fazia parte deles quando afirmou que, a pesar de seu informe, continua sendo sionista. Este adjetivo, “sionista”, tem muito mais sentido e carga do que costumamos lhe atribuir. Não é possível reivindicar-se sionista se você se opõe a ideologia do apartheid do Estado de Israel. Você pode continuar sendo sionista se você somente recrimina o Estado por uma certa política criminosa mas não vê a conexão entre a ideologia e essa política. “Sou sionista” é uma declaração de lealdade a uma forma de pensar que não pode aceitar o informe Goldstone de 2009. Ou você é sionista, ou você culpa Israel por crimes de guerra e contra a humanidade. Se fizer as duas coisas, você vai explodir mais cedo do que tarde.
Que este mea culpa nada tem a ver com “novos” fatos fica claro quando examinamos a “evidência” fornecida por Goldstone para explicar sua retratação. Honestamente, não é preciso ser um expert mundial em direito internacional para saber que Israel cometeu crimes de guerra em Gaza em 2009. Os informes de organismos tais como Breaking the Silence e os representantes da ONU no terreno deram conta disso, antes e depois do informe Goldstone. Não foram as únicas provas.
As fotografias e imagens que vimos em nossas telas e sobre o terreno apenas contaram uma história da política criminosa que pretendia matar, ferir e mutilar como castigo coletivo. “Os palestinos vão conseguir seu holocausto”, prometeu Matan Vilnai, viceministro de defesa de Israel, ao povo de Gaza em 20 de fevereiro de 2008.
Goldstone somente aporta um prova nova, a de um investigador militar israelense que afirma que um dos casos suspeitos de crime de guerra deveu-se a um erro por parte do exército israelense, e que ainda está sendo investigado. Isto sim que é um ás na manga: a pretensão por parte do exército israelense de que as matanças massivas foram um “erro”.
Desde a criação do Estado de Israel, as dezenas de milhares de palestinos mortos por Israel foram ou terroristas, ou assassinados por “erro”. Somente um compromisso ideológico poderia basear sua revisão do informe em uma investigação interna do exército israelense que se centraliza em apenas um das dezenas de exemplos de matanças e massacres. Portanto, não pode ser a nova evidência o que motivou Goldstone a escrever este artigo. É, muito mais, seu desejo de voltar à comodidade o que o levou a escrever este artigo raro e falido.
Isto fica claro também pela forma como ele endurece sua linguagem contra o Hamás no artigo, ao mesmo tempo que suaviza suas palavras contra Israel, esperando desta maneira livrar-se de sua fúria justiceira. Mas ele está enganado, muito enganado. Poucas horas depois da publicação do artigo, o Ministro da Defesa Ehud Barak, o Primeiro Ministro Nenjamin Netanyahu e, logicamente, o Prêmio Nobel da Paz Shimon Peres encomendaram a Goldstone um novo papel: espera-se que ele vá de campus em campus e de acontecimento a acontecimento a serviço do novo e casto Israel. Ele pode escolher não fazê-lo, mas também pode ser que, em represália, não o deixem assistir ao bar mitzvah de seu neto.
Goldstone e seus colegas redigiram um informe muito detalhado, mas foram bastante comedidos em suas conclusões. O retrato que se desprendia das organizações de direitos humanos palestinas e israelenses era muito mais horrendo, e escrito com uma linguagem muito menos cínica e legalista, o que com frequência não transmite a magnitude do horror. Foi a opinião pública ocidental que melhor compreendeu em primeiro lugar as implicações de seu informe. A legitimidade internacional de Israel sofreu um outro golpe sem precedentes. Ele ficou chocado de verdade por ter sido este o resultado.
Já passamos por isso antes. Em fins dos anos 1980 o historiador israelense Benny Morris escreveu um relato estéril similar sobre a limpeza étnica da Palestina em 1948. Os acadêmicos palestinos Edward Said, Nur Masalha e Walid Khalidi foram os que sinalizaram as implicações significativas do material que Morris desenterrou para a identidade e imagem própria de Israel.
Morris também se acovardou diante da pressão e pediu para der readmitido na tribo. Ele foi muito longe com seu mea culpa e ressurgiu como um extremista racista antiárabe e anti-islâmico que sugeria enjaular os árabes e promovia a ideia de outra limpeza étnica. Goldstone poderá ir por este caminho também; ou, pelo menos, é o que os israelenses esperam que ele faça.
Profissionaalmente, tanto Morris como Goldstone tentaram retroceder à posição que alegava, como o faz Goldstone em seu artigo no Washington Post, que Israel somente pode ser julgado por suas intenções e não pelas consequências de suas ações. Em consequência, apenas o exército israelense, em ambos os casos, pode saber quais eram tais intenções. Muito pouca gente decente e inteligente aceitaria uma análise e uma explicação tão extravagantes.
Goldstone ainda não entrou na faixa lunática do ultrassionismo, como fez Morris. Mas, se não tiver cuidado, o futuro promete ser uma agradável viagem em companhia dos assemelhados a Morris, Alan Dershowitz (que já disse que Goldstone é um “judeu arrependido”) pelas reuniões anuais dos rottweilers do AIPAC e as convenções excêntricas dos sionistas cristãos. Ele logo descubriria que, uma vez que você se acovarda diante do sionismo, se espera que você recorra todo o caminho ou então que você se encontre no mesmo ponto que acreditava já ter exitosamente deixado para trás.
Conquistar o amor dos sionistas a curto prazo é muito menos importante que perder o respeito do mundo a longo prazo. A Palestina de veria escolher seus amigos com cuidado: estes não podem ser pusilânimes nem pretender ser sionistas ao mesmo tempo que defensores da paz, da justiça e dos direitos humanos na Palestina.

Fonte: http://electronicintifada.net/v2/article11895.shtml

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