terça-feira, 31 de maio de 2016

Movimento Brasil Livre (MBL), um engodo partidário

http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Movimento-Brasil-Livre-MBL-um-engodo-partidario/4/36209




Carta Maior, 31/05/2016 


Movimento Brasil Livre (MBL), um engodo partidário


 
PorTatiana Carlotti




Caiu por terra, na última semana, a farsa do apartidarismo do Movimento Brasil Livre (MBL). Áudios divulgados na última sexta-feira (27.05), pelo portal UOL, expuseram o uso, pelo Movimento, da máquina partidária do PMDB, Solidariedade (SD), PSDB e DEM, além da negociação de recursos para impressão de folhetos, compra de lanches e uso de carros de som (UOL, 27.05.2016).

O episódio levanta alguns questionamentos. O primeiro diz respeito ao uso do Fundo Partidário no financiamento das manifestações em prol do golpe. Como explica o advogado Alberto Moreira Rodrigues, a Lei 9096, que disciplina o uso dos recursos do Fundo, permite a colaboração em eventos, “mas desde que eles estejam dentro da finalidade do partido e, sobretudo, dentro da legalidade”.

Se houver aplicação direta do Fundo Partidário em instituições que defendem iniciativas contra a democracia, isso pode ser registrado como uma irregularidade, demandando iniciativas junto à Justiça Eleitoral e a Justiça comum, a ponto de suspender as cotas do Fundo Partidário”, complementa Rodrigues.

Ele cita, por exemplo, os movimentos e manifestantes que chegaram a pedir o retorno da intervenção militar no país, apontando que “o cerne de um partido político é defender o regime democrático, a democracia e os direitos humanos”.
O segundo questionamento, obviamente, é sobre o discurso do próprio MBL que se apresentou como um movimento espontâneo e independente de partidos. “Nenhum partido se identifica com o nosso movimento. Nosso movimento defende a República e o liberalismo econômico e, atualmente, não existe nenhum partido liberal no Brasil”, dizia em 15 de março de 2015 ao El País.

Sobre financiamentos, o MBL era categórico: “pedimos doações em nosso site e em nossa página” e, às vezes, “temos que tirar do nosso próprio bolso” (EL País, 15.03.2015). Um ano depois, porém, as gravações divulgadas pelo portal UOL contam outra história.

Parcerias

Em um dos áudios divulgados, referente a fevereiro deste ano, Renan Santos, liderança do MBL, comemora o fechamento de acordo para a utilização da máquina partidária do PSDB, DEM, PMDB e da Força Sindical, na divulgação da manifestação pró-golpe, no dia 13 de março de 2016.

Após a divulgação do áudio, Renan afirmou que os partidos faziam parte do Comitê de Impeachment, sendo, portanto, “natural” que “fossem convidados a usar suas redes de divulgação e militância para divulgar a data”. Renan também afirma não ter havido “nenhuma ajuda direcionada ao MBL”.

A reportagem contradiz a informação. Bruno Júlio, presidente da Juventude do PMDB, menciona um pedido a Moreira Franco, à frente da presidência da Fundação Ulysses Guimarães, para custear 20 mil panfletos na divulgação da manifestação do dia 13 de março. Atual secretário-executivo do Governo interino de Michel Temer, na pasta de Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), Franco nega ter trabalhado com o MBL. O pagamento, segundo Júlio, foi efetuado pelo partido.  

a assessoria de imprensa do Solidariedade (SD) confirmou a parceria na convocação da militância para “as manifestações do impeachment, carro de som nos eventos e divulgação dos atos em nossas redes”. O DEM não se manifestou.

A participação do PSDB, por sua vez, ficou explícita em outra gravação, de maio deste ano, na qual Ygor Oliveira, da Juventude do PSDB, explica os termos de uma parceria com o MBL durante a organização da passeata de 11 de maio. O Movimento se responsabilizaria pelo pagamento do ônibus e a JPSDB pelos custos de alimentação e hospedagem. Ao confirmar a autenticidade da gravação, o jovem tucano disse que havia sido a primeira iniciativa conjunta entre o partido e o MBL, e que se tratou de um “rascunho de parceria, que acabou não dando certo”.

Após a reportagem, o MBL divulgou uma nota afirmando que "não há em momento algum, declaração ou prova de 'financiamento' de partidos para o MBL” e que “não há relação programática entre o MBL e tais agremiações" (EM, 28.05.2016)

Proprietária da conta de doação é ré em dois processos

Vale destacar, também, uma outra reportagem do UOL, sobre uma das lideranças do MBL, Renan Santos, réu em 16 ações cíveis e com mais 45 processos trabalhistas em seu nome e no nome de empresas que é sócio. Renan nega as acusações de fraude contra credores, fechamento fraudulento de empresas, dívidas fiscais, danos morais e calote em pagamento de dívidas trabalhistas.

Stephanie Santos, irmã de Renan, é ré em dois processos de execução por dívidas. Ela é a dona da conta bancária que recebe as doações ao MBL. Também está em seu nome, o aluguel da sede da entidade, que sofre uma ação de despejo por se recusar a deixar o imóvel. Segundo a reportagem, em outubro do ano passado, a proprietária do imóvel Lrbo Adm de Imóveis Ltda pediu a devolução do local (UOL, 08.05.2016).

Independência?

Não apenas as gravações, mas alguns episódios expressam a estreita ligação entre o MBL e partidos políticos. Um deles foi o notório privilégio dado a suas lideranças para circularem, na madrugada da votação do impeachment, pela Câmara dos Deputados. Três dos seus principais líderes - Rubens Nunes, Renan Santos e Kim Kataguiri - tiveram acesso à Casa Legislativa, circulando com crachá de servidores públicos.

A irregularidade foi noticiada pela imprensa e os líderes do MBL foram defendidos pelo próprio presidente da Câmara, na época, o deputado Eduardo Cunha (PMDB). Disse Cunha: "A Mesa teve direito a distribuir a convidados uma cota da sua distribuição. Então houve distribuição (de credenciais) por membros da Mesa para convidados, dois ou três convidados, certamente quem está portando o crachá, foi concedido pela Mesa, não foi distribuição partidária". (HojeemDia, 16.04.2016).

O MBL esteve bastante atuante naquela semana. Dez dias antes da votação do impeachment, Rubens Nunes havia protocolado no Senado, em nome do MBL, um pedido de afastamento do ministro Marco Aurélio (STF) por conta da medida liminar que determinava uma comissão especial para analisar o pedido de impeachment do então vice-presidente Michel Temer. (VALOR, 06.04.2016)

Outro episódio curioso é o comportamento do Movimento diante do anúncio dos novos ministros do presidente interino – e ilegítimo – Michel Temer. Seguidores do MBL, obviamente, expressaram seu descontentamento frente a ficha dos titulares do Ministério Temer (PP, 24.05.2016). Em nota defensiva, dirigindo o tom belicista, agora, para a imprensa e para a “esquerda autoritária”, o MBL optou por diferenciar os ministros citados pela Lava Jato dos que já estão sob investigação da PF, em uma clara defesa do governo Temer. (Leia a nota)

As pretensões políticas do MBL já são de conhecimento público. A meta do Movimento é levar às urnas mais de 200 candidatos em 15 estados. Entre eles, Fernando Holiday que afirmou sobre o DEM (antigo PFL): “é o partido que mais tem se aberto para essa nova política” e para a defesa das ideias liberais do MBL (FSP, 20.01.2016).

Comentando a pretensão política do Movimento, Altamiro Borges, do Centro de Mídia Alternativa Barão de Itararé, ironizou: os partidos escolhidos para registrar as candidaturas [do movimento] são os mais ´éticos´ possíveis – o PSDB da privataria tucana e da fraude da merenda escolar e o DEM, do ex-senador Demóstenes Torres e do ex-governador José Roberto Arruda”.

Borges também chamou a atenção, na época: “até hoje, o MBL não teve qualquer transparência para explicar a origem dos recursos financeiros que viabilizaram os seus atos golpistas, com caminhões de som, viagens e outros gastos. Há quem afirme que o grupo ultraliberal recebe dinheiro do exterior” (Blog do Miro, 04.02.2016).

As origens do MBL

Em A nova roupa da direita”, reportagem de Marina Amaral, publicada na Agência Pública, Juliano Torres, diretor executivo do movimento Estudantes Pela Liberdade (EPL), braço brasileiro da Students for Liberty norte-americana, conta que o MBL começou como uma marca, não uma organização, para que o EPL – leia-se Students for Liberty - pudesse participar dos protestos de 2013, driblando a receita norte-americana. Diz Torres:

“Quanto teve os protestos em 2013 pelo Passe Livre, vários membros dos Estudantes pela Liberdade queriam participar, só que, como a gente recebe recursos de organizações como a Atlas e a Students for Liberty, por uma questão de imposto de renda lá, eles não podem desenvolver atividades políticas. Então, a gente falou: `os membros do EPL podem participar como pessoas físicas, mas não como organização para evitar problemas. Aí a gente resolveu criar uma marca, não era uma organização, era só uma marca para a gente se vender nas manifestações como Movimento Brasil Livre (MBL)´”.

Quando acabaram os protestos, aponta Torres, o MBL contava com mais de 10 mil likes no Facebook. “Aí acabaram as manifestações, acabou o projeto. E a gente estava procurando alguém para assumir (...) E aí a gente encontrou o Kim [Kataguiri] e o Renan [Hass], que afinal deram uma guinada incrível no movimento com as passeatas contra a Dilma e coisas do tipo”. Ele conta, também, que boa parte dos organizadores locais são membros do EPL que “atuam como integrantes do MBL, mas foram treinados pela gente, em cursos de liderança” (Agência Pública, 23.06.2015).

E março de 2015, reportagem de Antonio Carlos, na Carta Capital, alertava não apenas sobre os vínculos entre o MBL e a Students for Liberty, quanto para o fato da entidade norte-americana ser financiada pelos irmãos Koch. Além da Students for Liberty, eles também atuam na “Atlas Economic Research Foundation, que patrocina a Leadership Academy, e o Institute for Humane Studies, às quais os integrantes do MBL estão ligados” (CC, 13.03.2015).

As principais atividades da Koch Industries? Exploração de óleo e gás, oleodutos, refinação e produção de produtos químicos derivados e fertilizantes. Os métodos? Um roubo de 5 milhões em barris de petróleo em uma reserva indígena, por exemplo. Não é preciso ser expert em geopolítica para imaginar o que significa a Petrobras neste contexto.

Tampouco estranha a defesa do MBL pela privatização do maior patrimônio público do Brasil: “o escândalo do Petrolão só foi possível porque a Petrobras é uma empresa estatal”, afinal, “quando uma empresa estatal dá lucro, quem embolsa são os burocratas, e quando dá prejuízo, o povo é quem paga a conta. Isso sem falar que quando a gestão é feita pelo Estado ela é notadamente menos eficiente”, afirma o Movimento (EL País, 15.03.2015).

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Estudo analisa discursos sobre a realidade cubana


http://www.unicamp.br/unicamp/ju/657/estudo-analisa-discursos-sobre-realidade-cubana




Jornal da Unicamp, 30 de maio de 2016 a 05 de junho de 2016 – ANO 2016 – Nº 657
 


Estudo analisa discursos sobre a realidade cubana



Por Luiz Sugimoto




Os Estados Unidos diziam o que era Cuba antes da Revolução, diziam o que era Cuba com o triunfo da Revolução e dizem o que está sendo Cuba agora, quando a ilha promove atualizações em seu modelo econômico. É uma recolonização discursiva”, afirma a jornalista Amanda Cotrim, autora de dissertação de mestrado em que analisou os discursos construídos sobre Cuba por jornais estrangeiros (inclusive um brasileiro) e também pelos próprios cidadãos cubanos. Intitulada “Os discursos sobre Cuba: imprensa, vozes e memória (da atualização do modelo econômico à retomada das relações diplomáticas com os EUA: 2011/2015), a dissertação foi orientada pela professora Maria Graça Caldas e apresentada junto ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor). 

Amanda Cotrim avaliou, na perspectiva da análise de discurso materialista, com referência em Michel Pêcheux e Eni Orlandi, como os jornais The New York Times (EUA), El País (Espanha), Granma (Cuba) e O Estado de S. Paulo (Brasil) constroem saberes sobre Cuba, além de entrevistar um grupo de moradores para observar os sentidos da Ilha para esses cubanos. A autora adotou como referência a atualização do modelo econômico do país, em três momentos específicos: a II Celac (Cúpula de Estados Latino-americanos e Caribenhos), em janeiro de 2014; o reatamento das relações diplomáticas com os Estados Unidos, em dezembro de 2014; e a primeira reunião diplomática entre Cuba e EUA, que aconteceu em Havana em janeiro de 2015.

A jornalista esclarece que no trabalho considera-se a ideologia como um fato de linguagem, sendo no discurso, portanto, que se consegue identificá-la. Segundo ela, a mídia participa da produção discursiva e, desse modo, organiza certo imaginário. “Quando pensamos em Cuba, esse imaginário geralmente é polarizado: ou o país é idealizado ou é demonizado. A metodologia utilizada visa analisar a produção dos sentidos, levando em consideração as condições em que os discursos foram produzidos (quem fala, como fala), além de aspectos históricos, ideológicos e cotidianos. Quis saber por que o jornalista falou de um jeito e não de outro e quais os efeitos de sentidos que o seu texto produziu. Para dizer que Cuba é uma ‘ditadura’, o jornal não precisa usar esta palavra; ele diz que no país ‘não existe democracia’, ou que ali ‘falta liberdade política’, ou só ouve a oposição”.

Procurando entender a construção deste imaginário, Amanda Cotrin pesquisou os arquivos dos jornais e recuperou aspectos importantes, como no período entre o começo da guerrilha cubana em 1957 até o triunfo da Revolução em 1959. “São dois anos em que os guerrilheiros descem de Sierra Maestra em colunas e vão tomando as principais cidades: vitórias bastante noticiadas no exterior, principalmente pelo The New York Times, que tratava Fidel Castro e seus guerrilheiros como heróis. Do ponto de vista discursivo, o líder cubano torna-se uma figura muito forte – ‘Tropas de Castro avançam’, ‘Fidel ganha Havana’. Porém, ao se dizer que a Revolução é obra de Fidel, outros aspectos desse acontecimento, como a conjuntura favorável e sobretudo o apoio da população cubana, foram silenciados. Não por acaso, ainda hoje há um discurso de que, se Fidel morrer, a Revolução (ou a ditadura) acaba”.

A autora da dissertação aponta que há um corte incisivo no discurso do NYT (e, por influência, nos outros jornais estrangeiros) quando o governo revolucionário começa a se esquerdizar, nacionalizando empresas privadas, promovendo a reforma agrária e, principalmente, deixando clara a não submissão aos EUA. “Cuba teve a sua independência da Espanha no final do século 19, mas permaneceu como colônia norte-americana enquanto lugar de lazer, prostituição e de grande desigualdade social. ‘Aqui vocês não mandam mais’, foi o recado da Revolução. São esses acontecimentos históricos que transformam os revolucionários em vilões. Essa transformação discursiva se deu, principalmente, porque os jornais da grande imprensa se alinharam ao discurso institucional do governo estadunidense de que Cuba era uma ameaça por ser comunista, como mostram os documentos de Estado. A imprensa, por já ter um [conceito] pré-construído sobre o que era o comunismo, ‘comprou’ e propagou esse discurso: a relação de sentido entre Cuba e a União Soviética foi imediata”.

No Brasil, segundo a pesquisadora, a ditadura civil militar é muito importante para a compreensão da memória sobre Cuba, visto que a linguagem é constituída pelo que é dito e pelo que não é dito. “O silêncio constitui linguagem e produz memória. Um advogado do jornal O Estado de S. Paulo diz em um documentário: ‘Se fosse música [norte-]americana, a rádio tocava; se fosse latino-americana, podia ser que não; se fosse cubana, nem tocava’. Esse silêncio imposto pela ditadura à grande imprensa organizou uma memória: Cuba virou um ‘não lugar’, não no sentido de inexistente, mas de negação. Logo depois que termina a ditadura, há a desintegração da União Soviética e um discurso apostando que Cuba também deixaria de ser socialista, o que não aconteceu. Cuba passou por sua pior crise econômica, conhecida como Período Especial, mas por outro lado vivenciou uma conjuntura favorável de governos mais à esquerda na América Latina, com [Hugo] Chávez na Venezuela, [Evo] Morales na Bolívia, Cristina Kirchner na Argentina, [Rafael] Correa no Equador e o próprio Lula no Brasil.”

O discurso de agora

Amanda Cotrim analisou o contexto do VI Congresso do Partido Comunista Cubano, ocorrido em abril de 2011 e que oficializou as chamadas “atualizações” no modelo econômico do país. “Houve participação intensa da população, que contribuiu com a formulação de projetos e decidiu por atualizações em todas as áreas: transporte, agricultura, educação, saúde, etc. ‘Atualização’ é uma palavra usada pelo governo, pela população e pelo jornal Granma, ao passo que os jornais internacionais falam em reforma ou mudanças; são sentidos diferentes. Os outros momentos analisados são da segunda Celac, um bloco diplomático recente, e o de retomada das relações com os Estados Unidos”.

No que diz respeito ao reatamento das relações diplomáticas, a pesquisadora ressalta que as demandas dos EUA sempre se sobrepõem às de Cuba na imprensa internacional. “Em se tratando de dois países que romperam relações há mais de 50 anos, a imprensa parece dizer que apenas os estadunidenses têm contas a receber, com suas reivindicações aparecendo sempre em primeiro plano, como se Cuba estivesse sujeita à Casa Branca. Impressiona o poder dos Estados Unidos no imaginário dos jornais, que deixam evidente quem vai protagonizar este processo. Outro ponto importante é que os jornais internacionais não falam sobre o fim do bloqueio estadunidense, o que torna a reivindicação de Cuba quase algo abstrato”.

A pesquisadora acrescenta que as reportagens dos jornais brasileiro e espanhol, de modo geral, não apresentam controvérsias e são imprecisas, o que considera um grave problema jornalístico. “Essas ‘imprecisões’ acontecem porque os jornalistas estão trancados nas suas evidências. Eles não precisam ouvir o outro lado, porque esse outro lado não existe no seu imaginário. O jornalista não diz por que Cuba é uma ditadura, uma vez que isso para ele é algo claro – o problema está em achar que é uma evidência para o leitor. Os jornais brasileiros, principalmente, limitam-se a entrevistar pessoas nas ruas, sem buscar outras fontes importantes, o que implica apuração parcial e falta de conteúdo.The New York Times pelo menos procura empresários, especialistas e, ainda que dentro da sua pauta ideológica, procura sair do lugar comum”.

Os jornais analisados na dissertação, observa a autora, não investem no sentido político que tem o povo cubano. “A população aparece sempre meio alheia politicamente, descrente, quase desanimada, o que produz uma contradição: se a palavra revolução é carregada de sentidos políticos, como os cubanos podem ser tão alienados? Esse tipo de cobertura enfraquece a própria Revolução Cubana ao apresentar para o leitor uma massa de resignados. Então, o sentido de ditadura faz ainda mais sentido”.

O discurso do “nós”
 

Amanda Cotrim mostra que o Granma (do Partido Comunista), por outro lado, produz os cubanos como pessoas altamente politizadas. “O jornal desafia os padrões jornalísticos porque não tem a preocupação de ser isento e imparcial e investe nos adjetivos. Para mim, foi surpreendente me deparar com textos escritos na primeira pessoa do plural, ‘nós’ – é uma forma de se apropriar da identidade das pessoas e assumir a posição de porta-voz dos leitores. Já no cenário do reatamento das relações diplomáticas, o jornal cubano se mostrou o mais ponderado, publicando as reivindicações e condições de ambos os países. Mas se o reatamento das relações foi a grande notícia para a imprensa mundial, o destaque de capa do Granma foi a volta de três cubanos que estavam presos há mais de 15 anos nos Estados Unidos, numa troca de prisioneiros entre os dois países”.


De acordo com a jornalista, a história dos três cubanos está no livro Os últimos soldados da Guerra Fria, de Fernando Morais. “Eles integravam uma organização denominada Vespa, que no final dos 1990 se infiltrou nos EUA, notadamente na CIA, para antecipar as ações de organizações anticastristas que detonavam bombas em pontos turísticos de Cuba, como hotéis e restaurantes. O propósito era minar o turismo, válvula de escape da economia cubana depois da desintegração da União Soviética. Os infiltrados pregavam o fim de Fidel e do governo cubano, conseguindo muitas informações importantes, até serem descobertos pelo FBI – de cinco presos, dois foram libertados na primeira década de 2000, restando os três. A prisão motivou intensa campanha em Cuba por sua libertação, tornando 17 de dezembro de 2014 um dia peculiarmente especial na ilha”.

Os cubanos que entrevistou, diz a autora da dissertação, filiam-se a uma “formação discursiva patriota”, que mais do que defender a Revolução, defendem a soberania de Cuba, e não negam que a atualização do modelo econômico melhorará seu socialismo. “Eles brigam com a imagem que o estrangeiro faz de Cuba. Um deles ressalta que a Revolução não aconteceu em 1959, que ela está acontecendo. Ao dizer que ‘estão em revolução’, os cubanos deslocam o sentido do tempo, que deixa de ser cronológico e se torna político. Daí, também, o termo ‘atualização econômica’, que nos é estranho porque não estamos acostumados com a maneira como enxergam o reatamento das relações com os Estados Unidos”.

Amanda Cotrim considera, finalmente, que persiste a submissão da imprensa à agenda da Casa Branca e que o reatamento das relações diplomáticas pode significar “uma recolonização discursiva dos sentidos sobre Cuba”. Na ilha, há uma clareza política em relação aos EUA que é histórica e não vem da Revolução, vem de antes, da época em que Cuba era uma neocolônia estadunidense. Quando os cubanos dizem ‘não vamos retroceder’, esse ‘nós’ é o próprio sentido de união que aparece na linguagem, podendo ser interpretado como a própria reafirmação da Revolução”.


Publicação 

Dissertação: “Os discursos sobre Cuba: imprensa, vozes e memória (da atualização do modelo econômico à retomada das relações diplomáticas com os EUA: 2011/2015)”
Autor: Amanda Cotrim 
Orientadora: Maria Graça Caldas 
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)

A aversão do governo golpista à Cultura


http://rogeriocerqueiraleite.com.br/a-aversao-do-governo-interino-a-cultura/




Blog do RCL, 30 de maio de 2016



A aversão do governo golpista à Cultura


Por Jéferson Assumção



Não por acaso, uma das primeiras ações do governo provisório de Michel Temer foi acabar com o Ministério da Cultura (MinC). Por trás desta simples “canetada” está cada vez mais clara a “ideia de país” que não apenas Temer e seus ministros têm, mas também a elite brasileira e seu poder político-econômico-midiático-judicial. O sumiço da Ciência e Tecnologia, das Comunicações, a diminuição do espaço das políticas para as mulheres, para a igualdade racial e os direitos humanos também faz parte de uma ideia de cultura que a arcaica elite brasileira quer voltar a implementar. A verdade, por trás deste suposto ato de economia promovido pelo Estado, é que a cultura, com suas redes, sua possibilidade de gerar empoderamento e autonomia, sua perspectiva ampliadora de repertórios, incomoda Temer & aliados: a elite, as igrejas, os meios de comunicação e seus rebanhos.

Durante o período de ascensão das políticas culturais no País, nas gestões Gilberto Gil e Juca Ferreira, parte do Brasil começou a perceber a importância da cultura não apenas para o mundo dos artistas. Passou a ver que todo o restante da ideia de desenvolvimento passa pela cultura, que educação sem cultura é ensino, que saúde sem cultura é remediação, segurança sem cultura é repressão, economia sem cultura é acumulação, comunicação sem cultura é manipulação etc etc. Daí que ao fechar o MinC e as pastas que mais transversalizam com ele, Temer & cia mostram o que entendem não só por cultura, mas também por educação, saúde, segurança, direitos humanos, igualdade de gênero, racial, comunicação etc. E deixam claro seu projeto: um país sem autoestima, manipulável, sem criatividade, com o mínimo de espírito crítico possível.

No entanto, um erro do interino foi subestimar o tamanho e a importância da cultura para o país, gerando a, atualmente, principal frente de luta contra o provisório governo. Nas ruas, nas redes e nas ocupações da Funarte e outros órgãos do MinC, escolas e centros culturais, não se quer apenas a devolução do status de ministério à cultura, mas a volta de uma ideia de país em que a cultura seja estratégica, vista como vetor de desenvolvimento social e econômico. É óbvio que o atual governo não tem nenhuma condição, nem legitimidade popular, de realizar esta ideia, nem de compreendê-la em sua totalidade – seja pelo perfil de seu ministério, seja pela mentalidade de seus aliados na mídia e no mercado.

A postura de, no primeiro dia, não apenas apagá-la do mapa dos ministérios mas fazer desaparecer qualquer ideia progressista, crítica, ampliadora de repertórios nas demais áreas com ela transversais – basta ver o perfil dos indicados a ministros – mostra uma mistura de obtusidade, ignorância, envelhecimento e distanciamento, dos atuais donos do poder, em relação à nova realidade política do país. Uma realidade que conta agora também com novos atores e sujeitos capazes de fazer muito mais que anteriores massas caladas, seja pelos jornais, seja pelos coturnos.


O projeto óbvio da elite não é apenas acabar com o Ministério da Cultura, mas tirar a cultura de todo lugar e fazer retroceder ao que ela sempre foi nesses 500 anos de dominação branca do país.
Trata-se de um período em que, como diz Renato Ortiz em
A Moderna Tradição Brasileira, nossa elite desenvolveu-se dentro de uma ideia de cultura como ornamento e ostentação, como adereço e verniz de distinção social. No fundo nossa elite conservadora – representada em gênero, números e graus no ministério atual – sempre teve vergonha da cultura brasileira, dos modos de ser e fazer de negros, indígenas, sertanejos, caipiras, amazônicos, suburbanos.

Pois foi exatamente a diversidade cultural que veio, aos trancos, à tona no Brasil dos últimos dez anos, num movimento que se deve a três grandes elementos: 1) o desenvolvimento social e econômico do Brasil no período; 2) a aplicação de políticas culturais mais democráticas e abrangentes e 3) a liberação da informalidade das periferias – e o poder da diversidade cultural brasileira – pela expansão da internet e a consequente diminuição do poder zumbizista televisivo, ainda predominante, mas decadente.

Isso incomoda muita gente, claro. Gente que preferiria que o Brasil fosse uma Miami, uma Dubai ou qualquer outro parque de diversões do consumo, cercado por muros a garantir uma cada vez mais difícil paz burguesa. Gente que fica triste com a imensa alegria que vem das periferias e de lugares antes calados e invisibilizados pela indústria cultural tradicional-homogeneizante, mas que já não é suficiente para segurar todo o poder da informalidade que o uso cultural da internet vem trazendo à tona.

Quer queiram ou não, do meio para baixo cresce o reconhecimento de que a cultura é importante fator de qualificação do ambiente social, de desenvolvimento coletivo e individual, gerador de oportunidades ao ampliar repertórios, de emprego e de renda, principalmente quando focado nos mais jovens. Jovens que estão dando todos os sinais de que entenderam a potência da cultura e da expressão simbólica e que enchem o Brasil de otimismo, mesmo nesses tempos obscuros. Eles incomodam principalmente quem está no camarote ou no andar de cima e que pretende seguir a controlar direitos, incutir valores e empacotar o gosto para o consumo da rapaziada lá embaixo.

Agora, como esta mesma elite não percebe que o mundo moderno passa pelo fenômeno da valorização de sua diversidade cultural, recombinando-a em produtos de uma economia da cultura diversa, potente, colaborativa, horizontal e que vem incluindo milhões de pessoas criativas? Porque ela é arcaica, cafona, obtusa, bocó. Para ela e seus cordeiros o criativo incomoda.

Acabar com o MinC é tentar atacar a dimensão criativa de uma sociedade, vetar o acesso e a transformação individual e social possibilitada pelo consumo e produção de bens e serviços culturais diversos. É atacar o direito à fruição e à expressão simbólicas, fundamentais para ampliar repertórios e apontar vias de superação das mazelas vividas pelas populações que mais precisam. É impedir de se qualificar o ambiente social via ações que gerem cultura de paz e de discernimento, ambientes de vivência lúdica, afetiva e criativa capazes de dar sentido à vida social para além do prosaico conjunto de sobrevivência diária. É tirar o foco dos territórios com menor acesso a bens e serviços desta natureza, embaixo da eterna cantilena falaciosa e economicista, cuja conta é paga pelo que não tem e não pelo que tem. Claro que se já era pouco, com este rebaixamento do Minc vão faltar ainda mais recursos administrativos, institucionais e financeiros para implantar e reestruturar centros culturais, casas de cultura, pontos de cultura, bibliotecas, pontos de leitura, pontos de difusão audiovisual, estúdios comunitários, brinquedotecas. Obviamente que tudo isso de caso (mal)pensado, pois os usuários e fazedores nesses espaços incomodam muita gente.

Sem o MinC, é fácil prever alguns resultados. A transversalidade das ações da cultura será duramente afetada e com ela a consciência de que nossa cultura é híbrida, de fronteira, aberta, antropofágica, de forte presença das tradições rurais e populares, periféricas, urbanas. O patrimônio cultural vai correr ainda mais riscos. Ante uma enorme pressão do mercado, que só vai aumentar sem o poder do MinC como ministério, o patrimônio arquitetônico vai sofrer enormemente, mas também as festas populares, as culturas populares poderão se transformar cada vez mais em para-folclore mercantilizado pela força da mídia e sua indústria cultural, altamente concentrada no Brasil e sem interesse no seu desenvolvimento.

Num discurso de crise, claro que vai ser barrada qualquer discussão sobre financiamento da cultura (fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura, reforma da Lei Rouanet, orçamento de 1,5% do total), mas também devem minguar – não tem por que não – os espaços de participação, como CNPC (Conselho Nacional de Política Cultural), colegiados setoriais, conferências regionais de cultura, os planos setoriais discutidos entre os diferentes setores e linguagens artísticas, ou seja, o espaço da cidadania, da participação na gestão. Uma volta, com enormes consequências, e que precisa ser barrada. Não se trata de negociar com o governo interino, não, mas de exatamente mostrar as diferenças de visão de país e de seu povo que dividem as velhas e encasteladas elites e o Brasil real, profundo, vivo. É por isso que o povo está na rua, nos prédios ocupados, nas redes. É um vespeiro que foi cutucado por alguém que não conhecia bem seu tamanho nem o do vespeiro.

Por baixo, anestesiados (sem sensação autônoma, sem sensibilidade própria, mas apenas a introjetada de fora), dando suposta sustentação, veremos os últimos homens-massas zumbizados pelos meios de comunicação e entretenimento; agressivos uns, infantilizados pela lutinha, pelo jornalismo salafrário e por filósofos de araque; outros, rebanhos conduzidos por ricos pastores suspeitos. Alguns, simples ingênuos (fechados, obtusos, com a cabeça entre os joelhos), adoradores do poder dos outros. Todos só mostrarão que não entenderam nada do que aconteceu no Brasil nos últimos anos, se não porque incomodados com o que está emergindo com a cultura, porque mantidos ignorantes por aqueles que a temem.

Livro: 'Mon frère le Che'


http://www.cartacapital.com.br/revista/902/che-guevara-o-cacula-humaniza-o-mito



CartaCapital, 30/05/16



Entrevista - Juan Martin Guevara
​*​

O caçula humaniza o mito



Por Leneide Duarte-Plon
​, de Paris



O irmão caçula de Ernesto Che Guevara esteve em Paris, em abril, para lançar a biografia do herói. O Che é um ícone mundial, mas seu pensamento e seus textos são menos conhecidos. Por isso, a missão do irmão, autor de Mon Frère le Che, em parceria com a jornalista francesa Armelle Vincent, é divulgar “um dos pensadores mais importantes do marxismo”, inspirador de revoluções anticolonialistas por todo o mundo. Grande leitor de Marx, o Che escreveu mais de 3 mil páginas publicadas em sete volumes.

No fim de sua vida, o Che tornou-se muito crítico dos desvios do comunismo soviético. “A URSS não o via com bons olhos, tanto quanto os Estados Unidos. Ele era um agitador que fomentava revoluções e incomodava a ordem estabelecida.

A URSS não amava os revolucionários. Penso que alguns agentes do KGB podem ter colaborado com a CIA para eliminar o Che na Bolívia”, escreve Juan Martin. Provável, mas difícil de provar.


CartaCapital: Por que o senhor decidiu quebrar o silêncio depois de muitos anos?

Juan Martin Guevara: Em 2009, a Secretaria de Turismo da Argentina (depois ministério) lançou um programa chamado “Pelos passos do Che”, que vincula os museus dedicados ao meu irmão na Argentina: Alta Gracia (Córdoba), La Pastera (San Martín de los Andes) e Hogar misionero Che Guevara (Caraguatay, Misiones).

No lançamento desse programa, fui convidado a participar pelos dirigentes de cada museu. A partir de então, comecei a realizar palestras em público, cada vez com maior frequência e convenci-me da necessidade de revelar o Che como ser humano, difundir seu pensamento, sua obra e colocá-la em seu contexto.


CC: O mundo inteiro conhece a imagem de Che Guevara. Poucos conhecem o pensamento.

JMG: Daquele programa turístico surgiu a ideia de criar uma fundação, tendo em conta que mais de quatro décadas depois seguimos as marcas deixadas pelo Che, convencidos de que o permanente renascer de suas ideias e ações obedece a razões que, de uma maneira ou de outra, expressam a necessidade dessa referência para enfrentar um mundo cheio de iniquidades, contradições e injustiças.


CC: Os aventureiros da família foram numerosos. O senhor escreve: “A história provaria que ele era mais louco, mais temerário, determinado e idealista que qualquer um deles”.

JMG: O termo “loucura” é uma forma que uso para descrever os que numa sociedade conservadora e mercantilista rompiam com os moldes. Assim era nossa família. E por isso digo que quem melhor rompeu com esses limites foi Ernesto. Era o menos normal de uma família não muito normal.

Num discurso de 1965 em Argel, ele definia uma posição crítica em relação à União Soviética e também o fez nas Notas Críticas, que escreveu sobre um Manual de Economia Política publicado na própria URSS. Nelas, ela já vaticina o regresso ao capitalismo daquele “socialismo real”.


CC: Como foi viver à sombra de um mito?

JMG: Em princípio, um dos meus objetivos de comunicação é desmitificar o Che. Humanizá-lo, colocá-lo com os pés nesta terra, falar do contexto familiar. E contar como se vivia na Argentina e no mundo nos anos de sua formação. Claro que ser irmão de alguém que vai crescendo cada vez mais como imagem até se converter em um personagem quase mítico é algo muito especial.

Para mim ele continua a ser meu irmão Ernesto e, além disso, meu companheiro e minha referência nas lutas por um mundo mais justo. Formei-me em três ambientes. Nossa casa era muito politizada e líamos muito. Depois teve a escola e a rua. Isso foi muito importante para mim. 


CC: A captura e a morte de Che Guevara ficaram envoltas em mistério. De fato, ele foi executado dia 9, depois de ter sido preso e desarmado. Como a família recebeu a notícia da morte e o que fez para recuperar o corpo?

JMG: Eu trabalhava como ajudante de caminhoneiro na distribuição de leite e derivados, e muito cedo, no dia 10 de outubro, vi a foto do corpo de Ernesto em um jornal. Não tive dúvidas de que era ele. Em reunião de família decidimos que Roberto viajaria para a Bolívia.

Ele foi com dois jornalistas da revista Gente, que fretou um avião para ir a Vallegrande e a La Paz. Os militares disseram: “Não tem corpo”. Roberto voltou. De Cuba nos confirmam a morte do Che e Roberto foi a Cuba. Muitos anos depois, em 1997, os restos foram recuperados e levados juntamente com outros para o Mausoléu de Santa Clara, em Cuba.



CC: Qual a influência da mãe na formação de Ernesto?

JMG: Sempre se fala da influência da mãe como algo determinante em sua formação. Creio que a formação dele, como de nós todos, foi um resultado da influência de nossa mãe, mas também de um contexto no qual meu pai teve um papel muito importante por seu temperamento inquieto, de ruptura com os padrões, por seu talento de grande caricaturista, por sua inclinação pela poesia e por seus sonhos de grandeza e seus recomeços. Também por sua capacidade de adaptar-se a todas as situações.

Minha mãe, ao contrário, era firme, disciplinada e tinha conceitos éticos com clara inclinação social para a diversidade. Mas também tiveram importante papel o tio Jorge, a tia Carmen e seu marido, e o ambiente de casa aberta a todos e muita leitura, muitos livros.


CC: O senhor sempre quis ser proletário, apesar de ter feito um ano de universidade. Foi caminhoneiro, proprietário de uma livraria de publicações de esquerda, importador de charutos Havana. Ficou preso 8 anos, 3 meses e 23 dias, por seu engajamento político no Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Como milita politicamente hoje?

JMG: O fato de querer ser proletário não foi uma aspiração, um desejo. Os trabalhos que exerci foram se apresentando com a vida. Aos 19 anos me casei e aos 24 tinha três filhos. Em 1974 fui preso por deter propagandas consideradas ilegais pelo governo da época. Depois de três meses, voltei à liberdade. Em 1975 fui preso novamente, até 1983.


CC: Como vê a Argentina sob um governo de direita?

JMG: Penso que esquerda, direita, progressismo, conservadorismo, são apenas palavras. Não se conhecem bem os limites de cada conceito e tudo fica meio difuso. Não penso que se possa diferenciar um capitalismo humano de outro inumano. Ambos são mercantilistas e a tudo impõem um preço. O lucro é o objetivo máximo. A propaganda nos estimula a ficar correndo atrás do consumo.


CC: Os valores humanos e sociais caros aos cubanos correm o risco de se perder com o retorno dos Estados Unidos à ilha”, diz o livro. Fidel é o último guardião desses valores de igualdade e solidariedade?

JMG: Hoje, não se pode resolver essa questão em um país isolado. A globalização é um fato. E o capitalismo global vai consumindo de maneira rápida a natureza, que não é renovável. A exploração humana sempre se renova, mas os mares, os glaciares, os bosques e o oxigênio não são renováveis.

E a irracionalidade da luta dos “mercados” leva a um consumismo com um único sentido de vender e acumu­lar em grandes monopólios a riqueza que se produz. Por isso penso que a solução para Cuba é igual à de todos os habitantes do planeta.


CC: Que chance há de dar continuidade, ou de retomar, a luta do Che a favor da verdadeira independência da América Latina?

JMG: Digo no livro. Sou otimista a longo prazo, mas pessimista a curto prazo. Nada vai ser resolvido de hoje para amanhã. A luta é longa e difícil. Mas o legado do Che e de outros atores de nossa história será fundamental para que tenhamos um projeto para o futuro. 


*Entrevista publicada originalmente na edição 902 de CartaCapital.

Por unanimidade, Raduan Nassar é o vencedor do Prêmio Camões 2016


http://publico.uol.com.br/culturaipsilon/noticia/-e-o-vencedor-do-premio-camoes-1733550



Público, 30/05/2016



Raduan Nassar é o vencedor do Prémio Camões



Por Isabel Lucas e Luís Miguel Queirós



O Prémio Camões 2016 foi esta segunda-feira atribuído por unanimidade ao escritor Raduan Nassar, de 80 anos, o 12.º brasileiro a receber aquele que é considerado o mais importante prémio literário destinado a autores de língua portuguesa. O júri sublinhou "a extraordinária qualidade da sua linguagem" e a "força poética da sua prosa".

"Através da ficção, o autor revela, no universo da sua obra, a complexidade das relações humanas em planos dificilmente acessíveis a outros modos do discurso", justificou o júri, acrescentando que "muitas vezes essa revelação é agreste e incómoda, e não é raro que aborde temas considerados tabu". O júri realçou ainda "o uso rigoroso de uma linguagem cuja plasticidade se imprime em diferentes registos discursivos verificáveis numa obra que privilegia a densidade acima da extensão".


Com apenas três livros publicadosos romances Lavoura Arcaica (1975) e Um Copo de Cólera (1978) e o livro de contos Menina a Caminho (1994) –, a exiguidade da obra não impede que Raduan Nassar seja há muito considerado pela crítica um dos grandes nomes da literatura brasileira, ao nível de um Guimarães Rosa ou de uma Clarice Lispector.


Se a singularidade de Nassar lhe garantiu desde cedo um círculo de admiradores fiéis, e se os seus romances alcançaram algum sucesso internacional já na primeira metade dos anos 80, quando foram traduzidos para francês, espanhol e alemão, a popularidade da sua obra aumentou significativamente com a adaptação cinematográfica de Um Copo de Cólera, em 1999, numa realização de Aluizio Abranches, e de Lavoura Arcaica, em 2001, num filme de Luiz Fernando Carvalho.

Já este ano, Raduar Nassar foi um dos 13 escritores escolhidos para a longlist do Man Booker International Prize, com a tradução inglesa de Um Copo de Cólera, mas não chegou à lista de seis finalistas, que incluiu o angolano José Eduardo Agualusa.

Em Portugal, Raduan Nassar só começou a ser publicado em 1998, quando Um Copo de Cólera saiu na Relógio D'Água, que logo no ano seguinte editou também Lavoura Arcaica. No ano 2000, a Cotovia publicou Menina a Caminho e outros Contos.

Mas se a sua obra só chegou no final dos anos 90, o escritor visitou Portugal pouco após o 25 de Abril. Almeida Faria contou a história em 2014, na Festa Literária Internacional de Paraty. Corria o conturbado ano de 1975, quando o romancista português ouviu tocar a campainha da sua casa de Lisboa. À porta estava um jovem casal desconhecido. Perguntaram se podiam entrar e ele apresentou-se como escritor brasileiro. Trazia na mão um livro, Lavoura Arcaica, e disse ao escritor português: “Este meu livro saiu agora no Brasil, e como eu acho que ele deve muito ao seu livro A Paixão, quis vir oferecer-lhe o livro pessoalmente”. Faria e Nassar tornaram-se amigos desde então.

Nassar é conhecido pela extrema raridade das suas aparições públicas, o que veio conferir um peso particular à sua presença, junto de Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto em Brasília, a 31 de Março, num Encontro com Artistas e Intelectuais em Defesa da Democracia. "Os que tentam promover a saída de Dilma arrogam-se hoje, sem pudor, como detentores da ética mas serão execrados amanhã", afirmou então, citado pela Folha de S. Paulo. Embora o reconhecimento da qualidade do autor seja francamente consensual, esta sua recente intervenção vem também dar à sua escolha para o prémio Camões deste ano uma inevitável dimensão política.

Com um valor pecuniário de cem mil euros, o prémio foi anunciado ao fim da tarde no Hotel Tivoli pelo secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, após a reunião do júri, que este ano incluiu a professora e ensaísta Paula Morão e o poeta e colunista Pedro Mexia, os professores universitários, críticos e escritores brasileiros Flora Süssekind e Sérgio Alcides do Amaral, e ainda o autor moçambicano Lourenço do Rosário, reitor da Universidade Politécnica de Maputo, e a ensaísta são-tomense Inocência Mata, actualmente radicada em Macau.

 

Um lado secreto

Raduan Nassar foi informado de que lhe tinha sito atribuído o prémio no valor de cem mil euros por Miguel Honrado. Ao telefone, ter-se-á mostrado “surpreendido e satisfeito”, contou ao PÚBLICO o presidente do júri, Sérgio Alcides do Amaral.Ele é muito recluso, mas uma pessoa simples. Não é recluso por arrogância. Espero que possa ter um público maior agora”, sublinhou.

O papel de divulgação que um prémio como este pode ter foi destacado por Pedro Mexia, o representante português do júri. Para Mexia, o Camões tem uma vertente de consagração, mas muitas vezes a consagração também é uma revelação. É este o caso. “Isso aconteceu em Portugal no caso do Manuel António Pina, que quase toda a gente conhecia dos jornais, pelas crónicas, ou da literatura infanto-juvenil, mas era um poeta pouco lido, e que até ser editada a Poesia Completa (Assírio & Alvim), não estava no cânone. O Prémio deu-lhe uma visibilidade maior. Claro que é sempre difícil falar de uma revelação num autor de 80 anos, como é Raduan Nassar, mas revelação fora do meio estrito da literatura.”

Estamos perante uma obra curta de um escritor pouco conhecido que já deixou de escrever há uns anos, desde Menina a Caminho, em 1997. “O prémio revela-o a um espaço público ampliado, importante”, referiu, por sua vez Sérgio Alcides do Amaral ao PÚBLICO, salientando que no Brasil Nassar é muito conhecido nos meios literários, mas admirado sobretudo à distância devido à sua rejeição da exposição mediática. Mas sublinha: “A importância pública de Raduan Nassar revelou-se de uma maneira bem explícita recentemente, considerando o que se está a passar no Brasil um golpe de Estado. Ele saiu do seu hábito de recolhimento e declarou-se contrário à quebra da legalidade na nossa República. Isso teve um impacto cívico forte na cultura brasileira. Foi um alento." Negando qualquer tipo de politização do prémio, Alcides do Amaral disse que se trata apenas de uma forma de evidenciar o papel que um intelectual pode ter na sociedade. “Tivemos a preocupação de não comprometer politicamente o prémio, mas é impossível deixar de reconhecer que a literatura, sendo um fenómeno público, tem uma revelação política. Mas, sublinho, não foi esse o critério.”

Para Mexia, “não são as opiniões políticas de Raduan Nassar que estão a ser discutidas, mas é evidente que dar um prémio a um escritor brasileiro neste momento é falar do Brasil, é falar da situação política". E um prémio destes, admite, "pode ser um pequeno conforto para a situação complicada que o Brasil vive". Sublinhando que "a literatura não é uma realidade estanque da política, mas este é um prémio literário”, Pedro Mexia referiu que o nome de Raduan Nassar estava, como possibilidade, na lista de todos os membros do júri. Mas havia uma interrogação: ele aceitaria prémios?O facto de ter estado entre os finalistas do Man Booker deste ano e não ter retirado o livro de concurso, indiciava que pelo menos não era hostil. No telefonema, quando lhe foi comunicado o prémio, não mostrou qualquer espécie de relutância”, conta Pedro Mexia

Para o escritor português, Nassar faz parte de uma “grande família de escritores agrestes” de que fazem parte outros nomes já distinguidos com o Prémio Camões, como Rubem Fonseca ou Dalton Trevisan. Nele há “uma visão das relações humanas e uma linguagem que são ásperas e muitos distantes de um certo cliché da alegria de viver e de suavidade tantas vezes associada aos brasileiros.” Apesar de muito escassa, a obra é suficientemente ampla para ser considerada diversa. Mexia vê em Lavoura Arcaica “um livro quase bíblico”. “É um livro terrível sobre uma relação, enquanto Um Copo de Cólera é mais coloquial, uma espécie de longa discussão conjugal. Mas são ambos livros em que é a linguagem que vai revelando todas as camadas problemáticas das relações entre as pessoas, dos não-ditos ou do que só se diz para ferir alguém. Há um lado de facto muito agreste que também tem a ver com a literatura da Clarice Lispector, todo o outro lado que não é o Brasil do cartão postal.”

O facto de os três livros de Nassar terem edição portuguesa não o impede de ser pouco conhecido em Portugal fora dos meios literários. “A conjugação entre uma obra escassa e dura, a falta de presença midiática e estar há décadas sem escrever fazem com que seja um autor de uns happy few, mas foi um nome que nos pôs todos de acordo e essa é uma boa indicação”, adianta Pedro Mexia, que quis deixar uma nota pessoal nesta conversa. “Esta não é uma consideração do júri, mas é minha: gostava de ver nisto uma tentativa para que a literatura brasileira contemporânea seja lida com mais atenção em Portugal. Há editoras que têm dado muito espaço a autores brasileiros, como a Cotovia, que há uns anos até lançou uma colecção a que chamou o Curso Prático de Literatura Brasileira [dirigida por Abel Barros Baptista], mas há uma relutância por parte dos leitores que não consigo explicar.”

André Jorge é o editor dessa colecção e publicou Menina a Caminho. Ao saber da notícia, disse ser um prémio “muito merecido” para um “grande autor”, que conheceu há cerca de dez anos. “Foi em S. Paulo, em casa de Milton Hatoum, e lembro-me de que conversámos enquanto bebíamos bom vinho português. Um homem muito inteligente, afável, mas com um lado secreto.”  

 

Coelhos e galinhas

Nascido em 1935 em Pindorama, no interior do estado de S. Paulo, sétimo filho de um casal de emigrantes libaneses que ali abrira uma venda depois convertida em loja de tecidos, a Casa Nassar, Raduan frequentou a escola primária local a partir dos oito anos, e recordará mais tarde como "uma das melhores alegrias da infância" o dia em o pai lhe ofereceu um casal de galinhas-de-angola. Quando decide, nos anos 80, que o sucesso literário não lhe convém e se retira para a sua fazenda, uma das actividades a que se dedica será justamente criar galinhas, arte que herdou da mãe, Chafika Cassis.

Em 1947, iniciou os estudos liceais na vizinha cidade Catanduva em 1947, para onde a família se muda pouco depois. Em Lavoura Arcaica fala da colecção de pombas que teve de deixar para trás, em Pindorama. Aos 15 anos, durante uma aula, sofreu a primeira de várias convulsões, que se prolongam por dois dias. Tratado por um neurologista em S. Paulo, sai da crise com uma amnésia parcial e não consegue terminar o ano lectivo.  

No ano seguinte retomou os estudos, tendo como professora de português a sua irmã Rosa, que o instiga a ler os clássicos brasileiros. Para facilitar a instrução dos filhos, o casal Nassar voltou a mudar-se, desta vez para S. Paulo, onde o pai, João, abre um bazar. Raduan trabalha na loja e estuda à noite. Em 1955, matriculou-se simultaneamente em Direito e no curso de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo, mas abandonaria Letras no segundo semestre. E em 1957, ingressou ainda no curso de Filosofia, que interrompe em 1959, abandonando também Direito no ano seguinte.

Por esta altura, a literatura era já um interesse central, e em 1960 – o ano da morte do pai – escreve o seu primeiro conto, Menina a Caminho, que só viria a ter edição comercial nos anos 90, juntamente com outros dois textos dos anos 70 e um conto inédito.

Viaja pelo Canadá e Estados Unidos, regressando ao Brasil em 1962. Retoma e termina o curso de Filosofia. Viaja para a Alemanha em 1964, estuda alemão, e passa ainda pela aldeia dos pais, no Líbano, antes de, novamente em S. Paulo, se dedicar, em 1965, à criação de coelhos. Com o empenho necessário para, logo em 1966, ter passado a presidir à Associação Brasileira de Criadores de Coelho. O que não o impede de encerrar a criação no ano seguinte para fundar, com alguns irmãos, o Jornal do Bairro. É por esta altura que começa a tomar notas para o que será Lavoura Arcaica.

Em 1973 conhece uma professora de Germânicas da USP, Heidrun Brückner, que viria a tornar-se sua companheira. E em 1974, em desacordo com mudanças editoriais promovidas no Jornal do Bairro, que tirava então 160 mil exemplares, abandona também este projecto. Começa então a escrever intensivamente, e termina Lavoura Arcaica. Sem que Raduan o saiba, o seu irmão Raja tira duas cópias do romance, e uma  delas acaba na Livraria José Olympio Editora, do Rio de Janeiro, onde o livro é publicado em 1975, ganhando o prémio Coelho Neto para romance da Academia Brasileira de Letras. Três anos depois, sai Um copo de cólera, que vence o prémio de Ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte.

Nos anos 80, quando começa a ter algum sucesso editorial, no Brasil e no estrangeiro, decide deixar a literatura e passa a cuidar da sua fazenda, a Lagoa do Sino, no município de Buri, criando galinha e outras aves. Foi esse, durante décadas, o seu modo de vida, que só deixou em 2011, doando então a fazenda à Universidade Federal de S. Carlos, depois de já ter distribuído terras aos seus funcionários.

Depois dos romances que o celebrizaram nos anos 70, Nassar, que hoje mora hoje em S. Paulo, só publicou o ensaio A Corrente do Esforço Humano, originalmente editado na Alemanha, e o conto inédito Mãozinhas de Seda, incluído em Menina a Caminho.

 

Brasil-12; Portugal-11

Instituído em 1988 pelos governos de Portugal e do Brasil, o prémio Camões é atribuído a “um autor de língua portuguesa que tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum”, diz o respectivo protocolo, na sua versão revista de 1999. O acordo obriga a que o prémio seja alternadamente atribuído em território português e brasileiro, e a sua história sugere que tem também prevalecido a intenção de equilibrar o número de vencedores portugueses e brasileiros, bem como a preocupação de fazer representar as várias literaturas africanas.

Antes do prémio agora atribuído a Nassar, Portugal e Brasil estavam empatados com 11 autores de cada país. Miguel Torga foi o primeiro escritor a receber o Camões, em 1989, e o prémio voltou a ficar em Portugal mais dez vezes: Vergílio Ferreira recebeu-o em 1992, José Saramago em 1995, Eduardo Lourenço em 1996, Sophia de Mello Breyner Andresen em 1999, Eugénio de Andrade em 2001, Maria Velho da Costa em 2002, Agustina Bessa-Luís em 2004, António Lobo Antunes em 2007, Manuel António Pina em 2011 e Hélia Correia em 2015.

A lista de premiados brasileiros começa com João Cabral de Melo Neto, em 1990, e inclui Rachel de Queiroz (1993), Jorge Amado (1994), António Cândido (1998), Autran Dourado (2000), Rubem Fonseca (2003), Lygia Fagundes Telles (2005), João Ubaldo Ribeiro (2008), Ferreira Gullar (2010), Dalton Trevisan (2012) e Alberto da Costa e Silva (2014).

O poeta moçambicano José Craveirinha foi o primeiro autor africano a receber o Camões, em 1991. Em 1997, Pepetela, então com 56 anos, tornava-se simultaneamente o primeiro angolano e o mais jovem autor de sempre – ainda o é – a ser galardoado com este prémio, que só voltaria à literatura africana em 2006 para reconhecer a obra do angolano Luandino Vieira, que recusou o galardão. Em 2009, venceu o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, e em 2013 o escolhido foi o romancista moçambicano Mia Couto.

domingo, 29 de maio de 2016

Anatomia do golpe: as pegadas norteamericanas


http://www.brasil247.com/pt/blog/terezacruvinel/234933/Anatomia-do-golpe-as-pegadas-americanas.htm


Brasil 247, 29/05/16



Anatomia do golpe: as pegadas norteamericanas


Por Tereza Cruvinel





O golpe em curso no Brasil é sofisticada operação político-financeira-jurídico-midiática , tipo guerra híbrida. E será muito difícil deslindá-la", diz o jornalista Pepe Escobar.   E mais difícil fica na medida em que surgem contradições entre seus próprios artífices. A enxurrada de conversas que Sergio Machado, ex-presidente da Transpetro e um dos operadores do Petrolão,  teve e gravou com cardeais do PMDB, induz à ilusória percepção de que o impeachment da presidente Dilma Rousseff foi apenas um golpe tupuniquim, armado pela elite política carcomida para deter a Lava Jato e lograr a impunidade. O procedimento “legal” que garantiu a troca de Dilma por Temer, para que ela faça o que está fazendo, foi peça de operação maior e mais poderosa desencadeada ainda em 2013 para atender a interesses internos e internacionais. E nela ficaram pegadas da ação norteamericana.
Interesses internos: remover Dilma, criminalizar o PT, inviabilizar Lula como candidato a 2018 e implantar uma política econômica ultra-liberal, encerrando o ciclo inclusivo e distributivista. Interesses externos: alterar a regra do pré-sal e inverter a política externa multilateralista que resultou nos BRICS, na integração sul-americana e em outros alinhamentos Sul-Sul.

As gravações de Machado desmoralizam o processo e seus agentes e complicam a evolução do governo Temer mas nem por isso o inteiro teor da trama pode ser reduzido à confissão de Romero Jucá, de que uma reunião de caciques do PMDB, PSDB, DEM e partidos conservadores menores, em reuniões noturnas, decidiram que era hora de afastar  Dilma para se salvarem. E daí vieram  a votação de 17 de abril na Câmara, a farsa da comissão especial e a votação do dia 11 de maio no Senado.

Um longo caminho, entretanto, foi percorrido até que estes atos “legais” fossem consumados.  Para ele contribuíram a Lava Jato e suas estrelas, a Fiesp com seu suporte a grupos pró-impeachment e o aliciamento de deputados, o mercado com seus jogos especulativos na bolsa e no câmbio para acirrar a crise, Eduardo Cunha e seus asseclas com as pautas bombas na Câmara.  E também as obscuras mas perceptíveis ações da NSA, Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos,  e da CIA,  na pavimentação do caminho e na fermentação do clima propício ao desfecho. Os grampos contra Dilma, autoridades do governo e da Petrobrás, os protestos contra o governo, o desmanche econômico e a dissolução da base parlamentar,  tudo se entrecruzou entre 2013 e 2016.

Se os que aparecem agora nas conversas gravadas buscaram poder, impunidade e retrocesso ao país de poucos e para poucos, os agentes externos miraram o projeto de soberania nacional e o controle de recursos estratégicos, em particular o petróleo do Pré-Sal. Não por acaso, a aprovação do projeto Serra, que suprime a participação mínima obrigatória da Petrobrás, em 30%, na exploração de todos os campos licitados, entrou na agenda de prioridades legislativas do novo governo.

Muito já se falou da coincidente chegada ao Brasil,  em agosto de 2013, de Liliana Ayalde como embaixadora dos Estados Unidos, depois de ter servido no Paraguai entre 2008 e 2011, saindo pouco antes do golpe parlamentar contra o ex-presidente Fernando Lugo.  Num telegrama ao Departamento de Estado, em 2009, vazado por Wikileaks, ela disse:. “Temos sido cuidadosos em expressar nosso apoio público às instituições democráticas do Paraguai – não a Lugo pessoalmente”. E num outro, mais tarde : “nossa influência aqui é muito maior que as nossas pegadas”. 

O que nunca se falou foi que a própria presidente Dilma, tomando conhecimento dos encontros que Ayalde vinha tendo com expoentes da oposição no Congresso, mandou um emissário avisá-la de que via com preocupação tais movimentos. Eles cessaram, pelo menos ostensivamente. Ayalde havia chegado pouco antes da Lava Jato esquentar e no curso da crise diplomática entre o Brasil e os Estados Unidos,  detonada pela denúncia do Wikleaks de que a NSA havia grampeado Dilma, Petrobrás e outros tantos. Segundo Edward Snowden, o ex-agente da NSA que denunciou a bibilhotagem, “em 2013 o Brasil foi o país mais espionado do mundo”. Em  Brasília funcionou uma das 16 bases americanas de coleta de informações, uma das maiores.

A regra de exploração do pré-sal e a participação do Brasil nos BRICS (grupo formado por Brasil, Rússia, India. Chia e Africa do Sul),  especialmente depois da criação, pelo bloco, de um banco de desenvolvimento com capital inicial de US 100 bilhões, encabeçaram as contrariedades americanas com o governo Dilma.
Recuemos um pouco. Em dezembro de 2012, as jornalistas Cátia Seabra e Juliana Rocha publicaram na Folha de São Paulo telegrama diplomático vazado por Wikileaks, relatando a promessa do candidato José Serra a uma executiva da Chevron, de que uma vez eleito mudaria o modelo de partilha da exploração do pré-sal fixado pelo governo Lula: a Petrobrás como exploradora única, a participação obrigatória de 30% em cada campo de extração e o conteúdo nacional dos equipamentos. Estas regras, as petroleiras americanas nunca aceitaram. Elas querem um campo livre como o Iraque pós-Saddam. A Folha teve acesso a seis telegramas relatando o inconformismo delas com o modelo e até reclamando da “falta de senso de urgência do PSDB”.   Serra perdeu para Dilma em 2010 mas como senador eleito em 2014,  apresentou o projeto agora encampado pelo governo Temer.

No primeiro mandato, Dilma surfava em altos índices de popularidade até que, de repente, a pretexto de um aumento de R$ 0,20 nas tarifas de ônibus de São Paulo, estouraram as manifestações de junho de 2013. Iniciadas por um grupo com atuação legítima, o Movimento Passe Livre, elas ganham adesão espontânea da classe média (que o governo não compreendeu bem como anseio de participação) e passam a ser dominadas por grupos de direita que, pela primeira vez,  davam as caras nas ruas. Alguns, usando máscaras. Outros, praticando o vandalismo. Muitos inocentes úteis entraram no jogo. Mais tarde é que se soube que pelo menos um dos grupos, o MBL, era financiado por uma organização de direita norte-americana da família Coch.  E só recentemente um áudio revelou que o grupo (e certamente outros) receberam recursos também do PMDB, PSDB, DEM e SD. 

Aparentemente a ferida em Dilma foi pequena. Mas o pequeno filete de sangue atiçou os tubarões. Começava a corrida para devorá-la. A popularidade despencou, a situação econômica desandou, veio a campanha de 2014 e tudo o que se seguiu.

Mas nesta altura, a espionagem da NSA já havia acontecido, tendo talvez como motivação inicial a guerra do pré-sal. Escutando e gravando, encontraram outra coisa, o esquema de corrupção.  E aqui entram os sinais de que as informações recolhidas foram decisivas para a decolagem da Lava Jato. Foi logo depois do Junho de 2013 que as investigações avançaram. A partir da prisão do doleiro Alberto Yousseff, numa operação que não tinha conexão com a Petrobrás, o juiz federal Sergio Moro consegue  levar para sua alçada em Curitiba as investigações sobre corrupção na empresa que tem sede no Rio, devendo ter ali o juiz natural do caso. Moro havia participado, em 2009,  segundo informe diplomático também vazado por Wikileaks, de seminário de cooperação promovido pelo Departamento de Estado, o Projeto Pontes, destinado a treinar juízes, procuradores e policiais federais no combate à lavagem de dinheiro e contraterrorismo. Participaram também agentes do México, Costa Rica, Panamá, Argentina, Uruguai e Paraguai.  Teria também muitas conexões com procuradores norte-americanos.

Com a prisão de Yousseff, a Lava Jato deslancha como um foguete. Os primeiros presos já se defrontam com uma força tarefa que detinha um mundo de informações sobre o esquema na Petrobrás. Executivos e sócios de empreiteiras rendiam-se às ofertas de delação premiada diante da evidência de que negar era  inútil, só agravaria suas penas. O estilo espetaculoso das operações e uma bem sucedida tática de comunicação dos procuradores e delegados federais semeou a indignação popular. Vazamentos seletivos adubaram o ódio ao PT como “cérebro” do esquema.

As coisas foram caminhando juntas, na Lava Jato, na economia e na política. A partir do início do segundo mandato de Dilma, ganharam sincronia fina. Na Câmara, Eduardo Cunha massacrava o governo e a cada derrota o mercado reagia negativamente. A Lava Jato, com a ajuda da mídia, envenenava corações e mentes contra o governo. Os movimentos de direita e pró-impeachment ganharam recursos e músculos para organizar as manifestações que culminaram na de 15 de março.  A Fiesp entrou de cabeça na conspiração e a Lava Jato perdeu todo o pudor em exibir sua face política com a  perseguição a Lula, a coerção para depor no aeroporto de Congonhas e finalmente, quando ele vira ministro, a detonação da última chance que Dilma teria de rearticular a coalizão, com o vazamento da conversa entre os dois.

No percurso, Dilma e o PT cometeram muitos erros. Erros que não teriam sido fatais para outro governo, não para um que já estava jurado de morte. Mas este não é o assunto agora, nesta revisitação em busca da anatomia do golpe.

Em março, a ajuda externa já fizera sua parte mas as pegadas ficaram pelo caminho. O governo já não conseguia respirar. Mas, pela lei das contradições, a Lava Jato continuou assustando a classe política, sabedora de que poderia “não sobrar ninguém”.  É quando os caciques se reúnem, como contou Jucá, e decidiram que era hora de tirar Dilma “para estancar a sangria”.

Desvendar a engrenagem que joga com o destino do Brasil desde 2013 é uma tentação frustrante. Faltam sempre algumas peças no xadrez.  Mas é certo que, ainda que incompleta, a narrativa do golpe não é produto de mentes paranoicas. No futuro, os historiadores vão contar a história inteira de 2016, assim como já contaram tudo ou quase tudo sobre 1964.