terça-feira, 3 de maio de 2016

A prática ideológica do cinismo


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CartaCapital, 03/05/16



Estamos mergulhados no cinismo



Por Amanda Cotrim




Vivemos um momento peculiarmente delicado, em que, apesar de não haver uma censura declarada como na ditadura civil militar brasileira, há um silêncio institucional para que algumas ideias não circulem.

Vemos isso quando a Justiça proíbe que universitários debatam o momento político, protestos são violentamente reprimidos pela polícia, ou quando a imprensa tenta nomear manifestações como sendo “a favor de Dilma”, silenciando o sentido delas serem pela democracia. Além do silêncio institucional, o momento também revela certo modo cínico da sociedade contemporânea.

Nesta semana um conhecido disse, de forma convicta: “eu sei que Eduardo Cunha é bandido mas, mesmo assim, primeiro temos que derrubar a presidente”, justificando o porquê dele não estar interessado em participar de manifestações pela cassação de Cunha.

A fala dele não está sozinha, pelo contrário, ela “conversa” com outras falas que produzem exatamente o mesmo efeito, um discurso que, mesmo sabendo de uma coisa, defende outra.

O mesmo ocorre quando as pessoas dizem: “Bolsonaro não presta, mas Jean Wyllys e esses esquerdopatas também não” ou “não duvido que houve tortura na ditadura, mas há muita mentira por parte dos revolucionários”.

Discursos que começam criticando a corrupção e a violência mas terminam defendendo torturadores e corruptos.

Outro exemplo recente é a reação de internautas à performance do grupo Desvio Coletivo que, em parceria com o Laboratório Performático da USP (Universidade de São Paulo), realizou a intervenção urbana MÁFIA, no vão livre do Masp, na capital paulista, no dia 23 de abril.

Na performance, os artistas cuspiram em 38 fotos de políticos que respondem a processos judiciais. Horas depois, um vídeo que relacionava a performance a um “ato repugnante de petistas” viralizou na internet.

Imediatamente foi possível ler frases como “em ato no MASP, petistas cospem e vomitam sobre fotos de políticos (não tinha Lula nem Dilma, é claro), ou “São “artistas”....kkkkk é para rir mesmo” ou “Eu sei que é uma ação artística, mas é um absurdo cuspir em políticos. Cadê os petistas?”.

“Eu sei, mas...” Essa relação entre o que se sabe e o que se acredita tem se apresentado como uma nova forma de laço social contemporâneo, um funcionamento cínico do discurso que vem sendo estudado por pesquisadores das áreas da linguagem, filosofia e psicanálise.

Nesses exemplos citados, o saber não invalidou a crença pois, ainda que se saiba que Cunha é réu no Supremo Tribunal Federal, ainda que se saiba que a performance é um ato artístico, ainda que se saiba que Dilma não é acusada de corrupção no processo de impeachment, esse saber não é capaz de impedir a crença das pessoas.

Essa relação entre o que se sabe e o que se acredita pode revelar, ainda, que a sociedade não estaria mal informada, ou desinformada. Ao contrário, essa relação seria o próprio funcionamento da ideologia que, na contemporaneidade, está se apresentando de maneira cínica. E é na linguagem que identificamos esse funcionamento, quando o sujeito diz "eu sei, mas”.

O cinismo se revela como um sintoma social que chegou a um nível moral que não esclarece nada e estimula a ignorância e a violência. Integrantes do Desvio Coletivo denunciaram que estão sofrendo ameaças e intimidações por causa do vídeo que insiste em dizer que a performance era um ato de petistas.

Diante disso, o mais assustador é que, pelo cinismo ter se tornado recorrente, por esse discurso “eu sei, mas mesmo assim” estar se repetindo, estamos naturalizando-o. Qual é o perigo de se estabilizar o cinismo?

Marx dizia que “eles não o sabem, mas o fazem”. Agora podemos dizer que eles sabem, mas isso não impede que eles façam ou digam.

As pessoas sabem que Cunha deveria ser cassado, mesmo assim continuam a agir como se não soubessem. As pessoas sabem que a performance do Desvio Coletivo é um ato artístico, mesmo assim fingem que não sabem e continuam a dizer que os performers são “petistas”. As pessoas sabem que a ditadura civil militar brasileira foi um regime de repressão e tortura, mas amenizam a história.

O discurso cínico se revela nas redes sociais, na mesa do bar e, também, nas instituições. Como escreve o analista de discurso e pesquisador do discurso cínico Lauro Baldini, o cinismo é uma prática ideológica que dá forma a nossa realidade social. Por ser uma prática, os discursos cínicos se repetem e se relacionam. E, às vezes, parece que dominam.

Junto com o cinismo também vem um certo sadismo. Um gozo que se realiza sempre que o outro - aquele que na maioria das vezes não pensa como você - é humilhado, derrotado ou ignorado por essas instituições.

Na votação da admissibilidade do processo de impeachment de Dilma na Câmara as formulações “Tchau, querida” e “Bom Dilma” mostraram como o objeto do gozo é a fantasia em que a sociedade se agarra na crença e ignora o saber.

E por que isso acontece? Porque as instituições também gozam dessa fantasia. É um sintoma compartilhado. Uma prática. E quando as instituições (o poder) participam, o gozo é legitimado: é a garantia existencial de que eles não estão sós.


 *Amanda Cotrim é jornalista, mestre pela Unicamp e pesquisadora na área de Análise de Discurso.




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Carta Maior, 20/04/16



Da democracia à teocracia



Por Carlos Juliano Barros



A votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, transmitida em cadeia nacional com requintes de final de Copa do Mundo, abriu os olhos de muita gente que ainda não havia se dado conta de um fato tristemente consumado na cena política nacional: a corrosão da laicidade do Estado.

Centenas de deputados – dos mais diversos partidos, de Norte a Sul do país – usaram o nome de “Deus” e os valores da “família tradicional” para justificar o voto pelo “sim”. Tudo vigiado de perto pelo crucifixo católico pregado na parede do plenário da Câmara, um singelo adorno para o trono do evangélico Eduardo Cunha.

Na narrativa que martela o afastamento do PT como solução única da crise econômica e política, um capítulo crucial tem sido relegado à periferia do debate político: as forças ultraconservadoras – formadas por fundamentalistas religiosos e fanáticos militaristas – talvez sejam as grandes vitoriosas desse processo.

Consumado o impeachment, não há dúvidas de que seus representantes vão cobrar a fatura, pautando retrocessos que afetam direta e cotidianamente a vida de milhões de brasileiros. E não se trata apenas de temas “polêmicos”, como o direito ao aborto.

Até mesmo campanhas de prevenção aos vírus da Aids e do HPV já enfrentam a oposição cerrada de religiosos que não acreditam na camisinha, mas na castidade, como política pública de prevenção a DSTs.

A queda de Dilma Roussef vem sendo patrocinada por um amplo leque de forças que vai das tendências centristas à extrema direita.

Porém, num sistema político completamente apodrecido por legendas de aluguel, em que a coalização e o fisiologismo são imperativos em nome da governabilidade, a derrubada de um governo ainda identificado com valores de esquerda traz um componente simbólico que não pode ser subestimado.

Na baciada das reformas econômicas liberalizantes também estão embutidas reações a “ideologias esquerdistas”, o que representa um grave retrocesso na pauta dos direitos humanos e das liberdades individuais.

As principais vítimas são os movimentos sociais de negros, de mulheres e de LGBTs. Não à toa, os ministérios construídos pelo governo do PT para cuidar especificamente dessas causas devem ser os primeiros a sumir do novo mapa do Planalto.

Os advogados do diabo podem até rebater: o PSC de Marco Feliciano já fez parte da base aliada do primeiro governo Dilma. Aliás, a presidenta até renegou a discussão sobre direito ao aborto – bandeira histórica das esquerdas – para se eleger em 2010. De fato, tudo isso é verdade. A era petista nem de longe foi o paraíso prometido aos movimentos sociais que sempre lhe deram sustentação.

Porém, ao mesmo tempo, não é segredo para ninguém que o PT jamais se bicou com Bolsonaro, Feliciano e companhia limitada. No frigir dos ovos, as gestões de Lula e Dilma foram mais simpáticas aos movimentos progressistas do que aos conservadores.

O sequestro do debate político por dogmas religiosos e valores conversadores é um efeito colateral inevitável do impeachment – queiram ou não os defensores mais bem intencionados do impeachment da presidenta.

Talvez, num futuro não muito distante, eles se deem conta de que a vida não se resume a um extrato de conta bancária. Ela é vivida no dia-a-dia das escolas que silenciam sobre a homofobia, nos hospitais que não salvam a vida de mulheres vítimas de abortos clandestinos, nas batidas policiais e nas penitenciárias superlotadas que têm cota preferencial para negros.

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