Folha.com, 17/05/16
Bruzundanga brasileira
Por Marcelo Freixo
O Brasil vive dias de realismo fantástico. Na semana em que o golpe foi desferido, o imponderável assumiu papel de destaque no enredo da farsa. Personagem sorrateiro, ele se esgueira pelas beiradas do palco até que surja o momento propício para saltar ao centro da cena e revelar o absurdo.
Então, eis que o dente de Renan Calheiros cai durante entrevista coletiva no dia em que o Senado votaria a admissibilidade do impeachment. Michel Temer incorpora Darth Vader no seu primeiro discurso como representante do lado negro da força e precisa de uma pastilha para a rouquidão. E um governo ilegítimo assume em plena sexta-feira 13.
Mas o imponderável não caminha somente às brutas, ele também tem suas sutilezas. Pouca gente lembrou que na sexta-feira dos horrores comemoramos os 135 anos de nascimento do genial Lima Barreto, autor de "Os Bruzundangas", nação fantasia alter ego do Brasil.
No capítulo em que tratou da democracia bruzundanguense, Lima escreveu: "dentre as muitas superstições políticas do nosso tempo, uma das mais curiosas é sem dúvida a das eleições".
Diante da ascensão de um governo golpista, sem legitimidade eleitoral e com um antiprojeto de país que não foi submetido ao voto, a máxima é assustadoramente atual. Na Bruzundanga de 1922 e no Brasil de 2016, a vontade de 54 milhões de eleitores não passa de superstição.
O governo Temer, com a agenda que representa, jamais ganharia uma disputa eleitoral. Só poderia chegar ao poder através de um terceiro turno ilegal, unindo o apetite do PSDB, que não ganhou a eleição, com a fome do PMDB, que não levou o governo como pretendia.
O fim do Ministério da Cultura e o rebaixamento das secretarias das Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade Racial mostram o que será a gestão do bruzundanguense Michel Temer.
Um governo com espírito de casa-grande, formado por patriarcas brancos e seus herdeiros, de Sarneys a Barbalhos, representantes do autoritarismo, clientelismo, de ideias velhas e velhacas. Um museu de grandes novidades.
Para horror dos ingênuos, nem o discurso moralista sobreviveu à farsa. Aliás, não há farsas sem ingenuidade. A Controladoria Geral da União, órgão fundamental ao combate à corrupção, perdeu a independência. Onze ministros envolvidos na Lava Jato. Braço direito de Temer, Romero Jucá, que compôs os governos FHC, Lula e Dilma, responde a dois inquéritos no STF.
Lutar contra o governo ilegítimo do PMDB não é somente se opor à sua agenda para o país. É defender os princípios do regime democrático. Na Bruzundanga brasileira, Temer é o absurdo que se esgueira nas sombras até se lançar ao centro do palco através de um golpe.
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