Intervozes, 25/05/16
Intervenção de Temer sinaliza desmonte da EBC
Por Mariana Martins*
Como tudo na nossa recente
e frágil democracia – aliás, como a própria democracia - a Empresa
Brasil de Comunicação (EBC) se construiu e vinha se consolidando, nos
últimos anos, eivada de contradições. Inerentes a qualquer processo que
pretenda transformar paradigmas – como é o caso do sistema de
comunicações no Brasil –, essas contradições foram criticadas diversas
vezes neste blog. Porém, o ataque que a EBC sofreu na última semana, com
a violação explícita do estatuto legal do mandato de seu presidente,
instituído pela Lei nº 11.652/2008, como forma de garantir a autonomia
da empresa frente ao governo federal, é inadmissível.
As exonerações
do diretor-presidente e do diretor-geral da EBC, bem como a nomeação de
duas outras pessoas relacionadas ao governo interino - sem projeto
eleito e legitimado pelas urnas - é uma afronta à democracia e à lei que
versa sobre a comunicação pública e que criou a EBC para liderar o
sistema público de radiodifusão no país. Nos últimos dias, os ataques
continuam, com o afastamento sumário de funcionários e demissões de
cargos comissionados, bem como o anúncio da retirada do ar de programas e
de pautas culturais, numa clara prática de censura.
Tão grave
quanto as afrontas citadas são as que se desenham no curto prazo. Michel
Temer prepara, através de uma medida provisória que não cumpre os
requisitos constitucionais de urgência e relevância para ser editada,
mudanças na lei de criação da Empresa. Na MP, além de alterar a regra
sobre o que já foi atropelado – o estatuto do mandato para o cargo de
diretor presidente –, notícias na imprensa veiculam (e nada foi negado
na reunião dos funcionários da EBC com membros do Palácio do Planalto)
que também pretende-se acabar com o Conselho Curador.
O Conselho é o
principal órgão de controle social da Empresa, que tem como obrigação
zelar pelos princípios e objetivos estabelecidos na Lei em questão, para
garantir a missão da EBC como empresa de comunicação pública. Tanto o
estatuto do mandato, que existe para garantir a autonomia do presidente
frente ao governo que o nomeou, quanto a existência Conselho como órgão
de controle, fiscalização e participação social são condições sine qua non para
existência de uma comunicação pública. E isso não é uma invenção da Lei
nº 11.652, de 2008, mas um pressuposto que encontra paralelo em
praticamente todas as emissoras públicas de comunicação – reconhecidas
como tal – no mundo.
Não era de se
estranhar que um governo que sucedesse os governos que criaram a EBC
viesse a fazer mudanças na empresa, como já se vê em exemplos das
emissoras educativas estaduais. Mas nada parecido com o possível
desmonte da EBC, anunciado por essa esperada medida provisória, ocorreu
até agora.
Os limites de um governo interino
Antes de
aprofundar a análise sobre as consequências da intervenção de Michel
Temer na EBC, cabe debater uma questão primordial: as atribuições de um
governo interino. Não faz o menor sentido um governo provisório fazer
mudanças da magnitude da extinção de Ministérios, alterações de leis por
MP, implementação de ações que criam e alteram políticas e instalação
de um programa político derrotado nas urnas. Mudanças deste nível
durante o período de um governo interino são inaceitáveis na democracia.
Afora a legalidade, que a essa altura vale no Brasil tanto quanto a
palavra de Eduardo Cunha, um governo provisório não tem legitimidade
para fazer qualquer coisa que não seja manter a ordem até o julgamento
final do motivo que o colocou interinamente no poder.
Iniciar as
suas mudanças afrontando a comunicação pública tem, portanto, um sentido
na atual conjuntura. Por ser um espaço de expressão de uma sociedade
democrática, um governo autoritário – que extinguiu pastas como a
Cultura, os Direitos Humanos, a Igualdade Racial e a defesa dos direitos
das Mulheres – é incapaz de deixá-la sobreviver. Ao contrário do que
alegam, não é o “traço” de audiência da TV Brasil (apenas um dos
veículos da EBC) que incomoda. Nem o que a empresa é. O que incomoda é o
que a EBC pode vir a ser no país.
A comunicação
pública incomoda também os veículos tradicionais, historicamente
beneficiados por diferentes governos, que passaram a publicar artigos e
editoriais repletos de erros sobre a EBC. A comunicação pública no
Brasil é nova, é cheia de problemas, foi mal gerida, foi mal tratada.
Mas tem potencial de ser algo transformador e revolucionário no campo da
construção democrática. E é isso o que incomoda tais setores.
A essencialidade da autonomia
Uma das
essências da comunicação pública é sua autonomia frente ao mercado e aos
governos. Autonomia não é algo dado. Nem mesmo o PT, que conduziu o
processo de criou a EBC, foi capaz disso. Autonomia se conquista. E em
dez anos como pesquisadora da comunicação pública, dos quais quatro
dentro da Empresa como funcionária, vi, dia após dia, em movimentos
crescentes, que os funcionários se apropriavam do espírito público da
comunicação. Isso põe medo em qualquer gestão. Mas põe mais medo ainda a
gestões autoritárias.
Infelizmente,
não foram poucos os episódios em que uma gama de funcionários e
comissionados da EBC, alinhados com as políticas das gestões anteriores,
fizeram vista grossa diante de problemas e ameaças ao espírito público
da comunicação. Também nos deparamos agora com funcionários - estes em
sua maioria sem plano de carreira e sem visão de futuro na Empresa,
desvalorizados nas últimas gestões - defendendo abertamente a
ilegalidade dos atos de Michel Temer, por eles representarem ganhos
pontuais.
Mais uma vez, a
importância de uma comunicação pública forte se faz presente, pois as
disputas dentro da própria EBC hoje remetem a falsas dicotomias criadas
pelo modelo de mídia tradicional e mercadológica que temos: o poder de
resumir toda e qualquer questão complexa a uma disputa entre “petistas” e
o “resto da sociedade”. Sem falar na sede de vingança, pela qual vale
mais ver um “petista” cair que zelar pelas instituições e pela
legalidade.
Gestões anteriores erraram com a EBC. Tiveram
medo de ouvir, de ousar. Contudo, o que temos hoje não é mais a
contradição de quem não consegue lidar com as críticas a uma gestão com
problemas. O horizonte no curtíssimo prazo é o fim da possibilidade da
crítica, da própria construção da comunicação pública. O que temos hoje é
a diferença entre o difícil e o impossível. O que se desenha é o fim da
comunicação pública.
Se com um
governo eleito estava difícil fortalecer a comunicação pública, com um
governo interino, que começa ultrapassando os limites da legalidade e da
legitimidade, qualquer construção que fortaleça a democracia torna-se
incoerente com seus propósitos e, logo, uma ameaça à sua existência.
O impacto para a cidadania
Fechar a EBC
não é se vingar do PT, derrubar os cargos comissionados. Fechar a EBC é
acabar com o pouco do contraditório que ela consegue estabelecer no
sistema de comunicação brasileiro como um todo. É acabar com o único
modelo de radiodifusão aberta, em nível federal, diferente dos demais,
que não funciona sob a lógica do financiamento privado e da audiência.
Acabar com o
espírito público da EBC – pois é isso o que pretende a intervenção de
Michel Temer – é acabar com nove rádios públicas, sendo duas delas (a
Rádio Nacional da Amazônia e a Rádio Nacional Alto Solimões) emissoras
que chegam a lugares que nenhuma rádio comercial alcança, já que ali não
há consumo suficiente para “justificar” o direito de acesso à
informação desta população. Acabar com a EBC é acabar com a
Radioagência, que produz notícias que podem ser baixadas gratuitamente
por rádios de todo o Brasil e que produz jornalismo, cultura e
entretenimento.
Acabar com a
EBC é acabar com a Agência Brasil, replicada gratuitamente por milhares
de jornais pelo pais e mundo afora. Acabar com a EBC é acabar com o
“Caminhos da Reportagem”, um dos programas jornalísticos mais premiados
do Brasil. Com o “Estação Plural”, primeiro programa em TV aberta
apresentado por um transexual. É acabar com o “Arte do Artista”, e com o
encontro inusitado do teatro com a TV. É acabar com “Guilhermina e
Candelário”, primeira animação infantil protagonizada por crianças
negras. E “Igarapé Mágico”, que tem como personagens animais da fauna
brasileira, do norte do país, dos igarapés, da Amazônia.
Acabar com a
EBC é acabar com a esperança de fugir das amarras do mercado e da
audiência do cidadão consumidor, que é alimentada pelo modelo dominante
de mídia comercial.
A EBC é um
patrimônio da sociedade brasileira e uma das principais conquistas do
movimento pela democratização da comunicação em tempos recentes. Nenhum
erro de gestão até aqui pode justificar o fim deste projeto de
comunicação pública. Cassar a autonomia e os órgãos de controle da
empresa são expressões do autoritarismo. E nada que se construiu no
mundo sob este estigma deu certo. No Brasil não será diferente. Na EBC,
tampouco.
* Jornalista, doutora em Comunicação pela UnB, trabalhadora da EBC e integrante do Intervozes.
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