Folha.com, 26/05/16
Cliente e empresa trocam poemas sobre reclamação em conta de água
Por Marina Estarque
Luiz Carlos Garcia, que recebeu contas de água abusivas e fez reclamação em forma de poema
Como dizia o poeta Castro Alves, "o livro, caindo n'alma, é chuva que faz o mar". Na alma da funcionária Aline Santos, o poema do cliente Luiz Carlos Garcia, 64, também fez desaguar: as lágrimas.
A carta de Garcia, com 160 versos rimados, era uma reclamação por cobranças indevidas à Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal, a Caesb.
Apesar de morar sozinho em uma casa em Brasília, o valor da conta mensal de água de Garcia atingiu R$ 1.150. Em vez de um telefonema raivoso ou de um e-mail malcriado, Garcia, que é consultor de projetos, escreveu: "O hidrômetro que marca e conta/a água que aqui consumo/é como fumaça que espalha/de um cigarro que não fumo."
Inspirado nos versos de Castro Alves, um dos seus escritores preferidos, e também na Terceira Lei de Newton (da ação e reação), Garcia quis fazer a queixa da forma mais "gentil e delicada" que podia. "Se você trata o outro com respeito e dignidade, é isso que você recebe de volta. É uma questão de posicionamento na vida", justifica.
CONSUMO MODESTO
Ao longo do texto, Garcia conta que mora sozinho, faz um consumo modesto do serviço e, mesmo assim, a cobrança teria sido muito alta. "Nem para beber uso água/que da rede aqui deságua/das minerais me abasteço/e disso não guardo mágoa."
Garcia descreve também que fizera uma obra para trocar o encanamento da casa e corrigir eventuais vazamentos. Entretanto, depois da reforma, a conta continuava muito superior à dos vizinhos.
Ele aponta então o responsável pelas falhas, "mui" respeitosamente: "A Caesb é empresa séria/não há dúvidas que eu levante então nessa minha história/o hidrômetro é o meliante". A carta, endereçada ao presidente da companhia, foi protocolada em março. Um dia depois, o cliente recebeu uma ligação do vice-presidente, que prometeu investigar o caso.
Passado cerca de um mês, a carta chegou às mãos de Aline Santos, 46, encarregada de redigir uma resposta à altura. A empresa havia identificado um vazamento na rede e pretendia devolver, por meio de descontos, o valor já pago pelo "consultor poeta".
Assim que leu o poema, na frente dos outros funcionários, Aline começou a chorar. "Todo mundo riu, eu sou frouxa mesmo", diz. Além de supervisora do escritório de atendimento ao cliente, ela é formada em letras e apaixonada por poesia. É conhecida na empresa por cobrar da equipe o uso correto da língua portuguesa.
ATÍPICO
"O poema foi algo totalmente atípico. Me tocou porque me senti respeitada como empregada e como pessoa. Geralmente o que a gente encontra aqui é o extremo oposto. As pessoas quando vêm reclamar já chegam com pedras nas mãos", conta.
Aline levou o texto de Garcia para casa e elaborou outro poema, como réplica oficial da empresa. "Vimos pelo presente documento/Apresentar os resultados apurados/Na esperança de que com esse intento/Encerremos seus desagrados."
A funcionária da companhia diz que costuma escrever prosa – contos que ainda não saíram da gaveta –, e não poemas, mas que se esforçou para manter o estilo de Garcia. "E eis que ficou constatado/A ocorrência de um vazamento/Comprovadamente sanado/No mais curto espaço de tempo", prosseguiu.
"Quis fazer uma homenagem. Ele humanizou uma relação comercial, e isso é fantástico", diz a supervisora. Garcia ficou surpreso com a resposta – "Uma gentileza maravilhosa"– e com as contas dos meses seguintes. Os valores caíram drasticamente até atingir R$ 127.
Ele aconselha: "Quando você tem um problema e a solução depende dos dois, é melhor tratar o outro como fonte de ajuda, e não como um obstáculo". Com a conta de água em seu preço justo e o desperdício interrompido, o consumidor poeta se permite um trocadilho: "A história desaguou em um final feliz".
Confira abaixo a troca de poemas.
Poema do cliente para a empresa
Senhor Presidente
Venho mui respeitosamente à presença de vossa senhoria para apresentar e requerer o que se segue:
Venho à vossa senhoria
externar o que me aborrece
se não pode perseverar
aquilo que me entristece
O hidrômetro que marca e conta
a água que aqui consumo
é como fumaça que espalha
de um cigarro que não fumo
Desde que foi instalado
o novo tecnológico instrumento
a cada leitura nele feito
perco até os movimentos
Preocupado com a conta
que sempre me mostra aumento
até contratei uma empresa
que se diz caça-vazamento
Na verdade o que queria
na lucidez do momento
era encontrar uma forma
para estancar o tormento
E um trabalho dedicado
puseram-se os homens a fazer
na busca de saber se o indicado
eles poderiam resolver
Depois de muito procurar
em canos, válvulas e torneiras
disseram-me algo encontrar
que explicasse d'água a peneira
Puseram-se então a falar
na rede, este trecho é o problema
se os canos daqui, for trocar
resolvemos o seu dilema
Cem metros de cano comprei
cola, lixa e conexões
depressa do comércio voltei
atendendo as orientações
Fizeram toda tarefa
da rede modificar
depois foram-se embora
p'ra outras casas visitar
Grande foi a minha surpresa
que nem sei como contar
fui consultar o hidrômetro
e ver o que ele estava a marcar
Quando o olhei atentamente
com tudo na casa fechado
lá estava o renitente
a se mover, desesperado
Acreditar? já não podia
naquilo que ali, eu via
restou-me naquela agonia
me apegar n'alguma magia
Aqui moro sozinho
sem filhos, mulher, empregado
não lavo roupas, nem cozinho
só no banho, o líquido é usado
Nem para beber uso água
que da rede aqui deságua
das minerais me abasteço
e disso não guardo mágoa
Também não recebo visitas
que a água pudessem consumir
por isso procurar respostas
é no que preciso insistir
Minha casa é bem pequena
apenas cem metros quadrados
nela só faço dormir
e preservar meus guardados
Não levo os jardins a regar
nem carros eu deixo lavar
calçadas com a água esfregar
por onde esta água escoar?
Faxino a casa com balde
e um pano p'ra no chão passar
diz minha consciência em alarde
a água é p'ra se economizar
Uma coisa é verdade
que aqui preciso indagar
como pode uma só pessoa
tanta água no mês gastar?
Um mistério se formou
se esta água aqui entrou
se dela pouco se usou
a maior parte evaporou?
A vários vizinhos perguntei
e a pessoas que conheço:
da água que consomem por mês
na conta vem qual o preço?
Quando minha conta os mostrei
consternação demonstraram
_ao sentir o quanto assuste,_
procure a Caesb, falaram
Até mesmo em casas grandes
de famílias numerosas
os valores lançados nas contas
não são de montas onerosas
Em outros tempos diria
quando a rede era antiga
mesmo achando água cara
a conta era bem mais amiga
Depois dessa rede mudada
p'ra outra que diferença não vi
me chega a conta inusitada
a cobrar o que não consumi
Recibos passados eu junto
para sustentar o que escrevo
pois como um bom cidadão
sempre pago o que devo
A Caesb é empresa séria
não há dúvidas que eu levante
então nesta minha história
o hidrômetro é o meliante
Sei que não posso acusar
se provas me estão a faltar
mais se a suspeição está no ar
é preciso investigar
Peço a vossa senhoria
que mande me socorrer
pois se a conta assim ficar
de infarto posso morrer
Com licença, peço aos peritos
dessa Companhia honrada
para o indivíduo estudar
e esta situação aclarar
Com suas técnicas e instrumentos
sobre o dito cujo, aplicados
saberemos se seu trabalho
é correto ou é viciado
Se inocente estiver
desculpas já devo pedir
mais recolhido deverá ser
se nele a culpa recair
Se comprovado, o erro for
de quem o consumo media
devolva-me com prontidão
o que paguei e não devia
Ou se preferir modo outro
proponho a vossa senhoria
descontar o tal valor
quando faturar a Companhia
Pois se assim não for feito
outro caminho não há
se não o de ir a justiça
o meu direito reclamar
Rogo vossa senhoria
uma providência tomar
pois não é justo essa conta
eu ter que continuar a pagar
Assim, deixo o meu pedido
em forma de poesia
se escrever é uma arte
que me enche de alegria
E, antes que se faça tarde
neste tempo, o que pronuncia
antecipo meus agradecimentos
junto a vossa senhoria
Como nos ensina a lição
que nos vem d'antigamente
despeço-me no último verso
com um gentil, cordialmente.
Poema da funcionária da empresa para o cliente
Sr. Luiz Carlos
Em resposta à sua manifestação
Sob o n.º 1.723/2016 protocolada
Na qual nos chamou atenção
O brilhante uso da nossa língua falada
Vimos pelo presente documento
Apresentar os resultados apurados
Na esperança de que com esse intento
Encerremos os seus desagrados
A fim de verificar
A situação apresentada
Pusemo-nos a vistoriar
As instalações internas afetadas
E eis que ficou constatado
A ocorrência de um vazamento
Comprovadamente sanado
No mais curto espaço de tempo
Para assegurar um fornecimento
Contínuo, lhano e escorreito
Fora instalado um equipamento
De precisão, em seu conceito
E ao fim de 58h constantes
Registrou o importante instrumento
Não haver na rede pressões variantes
Que provocassem um derramamento
Desta forma, concluímos que o vazamento
Ocorrido em sua residência
Tratou-se de um fortuito acontecimento
Lamentável em sua essência
E, atendendo a Resolução da Adasa
Que norteia os procedimentos desta Casa
Foram concedidos os descontos possíveis
Aos casos de vazamentos imperceptíveis
Estão creditados para os próximos faturamentos
Valores resultantes das revisões das contas
Limitadas a dois consecutivos eventos
Com prazo de 12 meses para nova remonta
Mas sabendo dos hábitos conscientes
Por V. Sª praticados
Certamente não será recorrente
O evento outrora cessado
Pessoalmente quero aqui registrar
Minha admiração e meu mais profundo respeito
Posto que, lamentavelmente, não é comum encontrar
Quem faz do uso da palavra um belo feito
Compartilhando da mesma paixão
Me despeço com leniência
E digo com admiração
Receba minha reverência
Nenhum comentário:
Postar um comentário