quarta-feira, 25 de maio de 2016

O governo golpista contra a saúde pública


http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Declaracoes-de-Ricardo-Barros-mostram-desconhecimento-da-saude/4/36132



Carta Maior, 19/05/2016
 

Declarações de Ricardo Barros mostram desconhecimento da saúde


PorRute Pina e José Eduardo Bernardes - Saúde Popular



Com frases como “a fé move montanhas” [sobre medicamentos que não possuem eficácia comprovada], “quanto mais gente puder ter, melhor” [sobre os planos de saúde] e defendendo a participação das Igrejas no debate sobre aborto,Ricardo Barros, em sua primeira semana à frente do Ministério da Saúde do governo interino de Michel Temer, já coleciona uma série de declarações polêmicas.

Para especialistas da área ouvidos pelo Saúde Popular, a nova gestão representa a concretização de um projeto de desmonte e privatização do Sistema Único de Saúde (SUS).

Barros é o primeiro ministro da Saúde, desde 2003, que ocupa o cargo, sem ter nenhuma relação formal com o setor. Engenheiro civil por formação, ele apresentou poucos projetos ligados à área na Câmara dos Deputados. O maior doador individual de sua campanha para deputado federal em 2014 foi Elon Gomes de Almeida, presidente e fundador do Grupo Aliança, empresa que oferece a contratação coletiva de planos de assistência médica e odontológica. O grupo doou R$100 mil à campanha do atual ministro.

Ele, no entanto, afirma que sua falta de experiência na Saúde não será uma falha, pois contribuirá para a pasta como “gestor e especialista em orçamento”.​

Hêider Pinto, no entanto, médico mestre em Saúde Coletiva e ex-secretário de gestão do trabalho e da educação na saúde (pasta responsável pelo Programa Mais Médicos no Ministério da Saúde), acredita que Barros entra para poder privatizar e ampliar as parcerias com o setor privado.

“Não pelo fato dele ser engenheiro, mas pelo fato de representar um governo sem legalidade, legitimidade e que assume com uma pauta de colocar nas costas do cidadão a conta da crise. Os documentos Ponte para o Futuro e Travessia Social [como foi batizado o plano de governo de Temer] mostram que o objetivo é privatizar tudo o que for possível, reduzir o gasto com Saúde – como a desvinculação do orçamento. Isso significa tentar fazer com que o SUS seja segmentado e focado em algumas populações”, afirmou o médico.

A professora de Medicina Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Heloísa Mendonça, seguiu na mesma linha, ao dizer que o ministro deu declarações claras de que “não entende a saúde como direito universal”. “A gente não tem como reconhecer esse senhor como ministro, porque ele se opõe ao direito constitucional da saúde universal”, disse.


Menos médicos estrangeiros

Em sua primeira coletiva de imprensa, Ricardo Barros afirmou que uma das ações para o Programa Mais Médicos,símbolo do governo de Dilma Rousseff na área da Saúde, seria incentivar a presença dos médicos brasileiros no programa para “prestigiar nossa academia, a Associação Brasileira dos Médicos e demais representantes”.

Para Hêider Pinto, a alegação do ministro demonstra que ele “está preocupado em prestar conta a estes grupos que desde 2013 tem um discurso xenófobo, conservador e corporativo”.

“Por ele ser engenheiro e não um super-especialista ligado às entidades, a tendência seria que fosse menos corporativista. Mas temos o pior das duas coisas: uma pessoa que não conhece a Saúde, e onde ela poderia ter alguma coisa positiva, que seria se preocupar mais com a população e menos com a corporação, ela tem uma atitude totalmente corporativa”.

O ex-secretário da pasta responsável pelo programa diz que o ministro “deu declarações genéricas” e desconhece informações básicas sobre o tema. “A lei já garante prioridade aos médicos brasileiros. O fato de aproximadamente 70% dos médicos do programa serem estrangeiros, é porque os brasileiros não se dispuseram a ocupar as vagas do programa, em especial, nas comunidades e municípios mais vulneráveis, pontuou.

Segundo Hêider, mesmo com um aumento de brasileiros que aderiram ao programa nas duas últimas chamadas, eles continuam se dirigindo aos municípios com menos dificuldades.Ao reduzir o número de médicos estrangeiros, ele [Barros] está falando em reduzir de 45 milhões para 12 milhões de pessoas que seriam assitencializadas pelos estrangeiros. A grande pergunta é se esses 33 milhões continuarão sendo atendidos com regularidade pelos brasileiros nestes lugares”, questionou.

Segundo a professora da UFPE, o ministro quer se reconciliar com a corporação médica, que tem interesses “muitos escusos da corporação, travestido de zelo”.O Conselho Regional de Medicina e a Associação Médica Brasileira estão fazendo looby contra o Mais Médicos. A ideia do Conselho é carreira para os médicos brasileiros. Mas isso é blefe, porque eles sabem perfeitamente que, se até hoje, decorrido 27 anos da Constituição, nós não tivemos ainda uma carreira implantada para o SUS, não vai ser agora que ela será implantada”, disse.


Orçamento

Em outro ponto prioritário de seu discurso inaugural da pasta, o ministro disse que deseja otimizar os gastos do SUS e implantar um sistema integrado de informações e conhecer iniciativas de municípios, que com “poucos recursos fazem trabalhos excelentes” já que a pasta não pode “pensar agora em aumentar recursos”.

Heloísa Mendonça, no entanto, afirma que o debate não está atrelado apenas aos poucos recursos do Ministério. Ela argumenta que a verba destinada à Saúde está vinculada ao orçamento da Seguridade Social, área na qual “se instalou uma ofensiva nos últimos dias” e que “a falta de recursos com a previdência não está descolado das questões da saúde”.

Foi por esta linha que Barros tentou argumentar em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo nesta terça-feira (17), após dizer que o Estado não tem como assumir todas as garantias previstas na Constituição, incluindo o acesso universal à saúde. Horas depois, ele recuou dizendo que o SUS “está estabelecido”. “Enquanto a previdência continuar crescendo nos gastos públicos, não haverá recursos para ampliar em outras áreas. O presidente [interino, Michel Temer] já garantiu que não mexerá em direitos adquiridos. Não falei em rever o tamanho do SUS”, se desdisse Barros à Folha.

Segundo Hêider, o ministro fez um comentário “superficial e precipitado de alguém que não discute e não tem aprofundamento no tema da saúde”.É um chavão que pode ser usado em qualquer setor, ‘vou integrar o sistema e vai haver um choque de gestão’”, acusou o especialista. “Esta é uma visão equivocada. Poderíamos até fazer um debate sobre aumento de eficiência, mas independente disso, o Brasil gasta pouco e precisa elevar o percentual de gastos com a saúde em relação ao PIB [Produto Interno Bruto], porque, dessa forma, não conseguiremos cumprir a Constituição de 1988 e ter a saúde como direito universal”, acredita.

Atualmente, o Brasil tem um gasto com saúde de 3,8% em relação ao PIB do país. A taxa ainda está bem distante de países que aspiram a um sistema amplamente público, como Reino Unido, um dos modelos que inspiraram a implatação do SUS, que compromete 7,6% de seu orçamento em relação ao PIB, ou ao Canadá, que tem um índice de 7,4%, ou mesmo de países que tem uma despesa pública com saúde da ordem de 10%, como Cuba e Suécia.


Planos de saúde

Barros não parou por aí em relação as declarações polêmicas. Ele lembrou que propostas em trâmite no Congresso Nacional, caso aprovadas, poderiam “aliviar” o SUS, como a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 451, proposta pelo deputado Eduardo Cunha. O texto pretende incluir como garantia fundamental o plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador.

Hêider Pinto acredita, porém, que tal projeto que a princípio parece positivo, se alinha ao programa de desmonte do SUS e à privatização da saúde, representados pelo Governo Temer.

Esta medida é um super negócio para os planos de saúde. Em uma tacada só se triplica o mercado deles. E também desfinancia o sistema público, através da isenção de impostos para os empregadores e empregados, e joga essas pessoas no mercado livre para que elas tentem ter saúde, passando a funcionar pela regra de mercado”.

“Os temas da Ponte Para o Futuro só têm conexão quando lembramos desta PEC e do que está colocado na Agenda Brasil, pelo PMDB”, disse. Para ele, o momento de retrocesso “é absolutamente preocupante” e só se equivale ao momento que Collor vetou o financiamento da Lei Orgânica da Saúde, em 1990. “É um momento crítico e eu comparo só estes dois momentos. Por isso, mais do que nunca, lutar por saúde, neste momento, está associado à luta pela democracia”, finalizou.

Na mesma linha, a professora Heloísa Mendonça espera que o desmonte da saúde pública seja detido pela luta organizada do setor. “Com esse governo, a universalização da saúde só se dará no campo da luta política. É uma ofensa um ministro afirmar que não adianta lutar por direitos que não poderão ser entregues pelo Estado. O que tem sido a história da humanidade e dos trabalhadores do mundo, a não ser lutar pela conquista de direitos sociais, direitos civis, direitos políticos?”, questiona.



http://plataformapoliticasocial.com.br/entrevista-jose-gomes-temporao/


Plataforma Política Social, 17/05/16



Entrevista com José Gomes Temporão,
atual diretor-executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), ex-ministro da saúde (2007-2010) e professor da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).



Por Davi Carvalho*



Plataforma Política Social – Como você recebeu a declaração do Ministro interino de que o SUS Universal e integral é inviável para o Brasil e que seria necessário rever a Constituição?

José Gomes Temporão: Com perplexidade e muita preocupação. Os direitos duramente conquistados após décadas de intensa luta política e sintetizados no capítulo saúde da nossa constituição- “saúde é um direito de todos e dever do estado”- estão sob ameaça real. Mas também recebi a notícia sem surpresa. E isso porque não acredito que seja uma opinião pessoal do ministro interino. Ele verbalizou uma opinião que é compartilhada por muitas forças políticas no congresso que ao longo das últimas décadas no discurso explicitaram apoio incondicional ao SUS mas na prática legislativa sempre colocaram obstáculos ao seu pleno desenvolvimento.


Plataforma – O SUS representa um importante processo civilizatório da sociedade brasileira. Você já disse que sem ele viveríamos numa barbárie. Qual o impacto para o Brasil e seu povo caso uma proposta como essa avance?

Temporão: Temos hoje uma reforma inconclusa onde ao lado de evidentes avanços temos fragilidades e precariedades. O SUS não precisa que lhe retirem direitos, princípios, recursos. É o oposto. Precisamos de mais direitos, mais recursos, mais acesso, mais cidadania. Reaparece aqui o fantasma de um SUS empobrecido para os mais pobres, focalizado, fragmentado. Da forma como foi colocado é uma defesa de extinção do conceito de saúde ampliada inscrito na constituição na forma como ele foi concebido, pensado e vem sendo implementado ao longo dos últimos 26 anos. Seria o fim do SUS.


Plataforma: A partir da experiência adquirida como médico, sanitarista, professor e ministro qual avaliação você faz do Sistema Único de Saúde? E qual o papel do SUS dentro da democracia brasileira?

Temporão: Nosso Sistema Único de Saúde (SUS) é produto de um longo e complexo processo histórico de luta pela construção de cidadania e da saúde como um direito. O ideário que move os princípios da chamada Reforma Sanitária Brasileira pode ser sintetizada em uma frase do saudoso Sérgio Arouca: “Trata-se de um processo civilizatório”. Esse movimento político e ideológico encontra sua maturidade durante o processo constituinte e consegue inscrever na constituição brasileira que a saúde é um direito de todos e dever do estado. Importante lembrar que esse movimento político desde seu início colocava para a sociedade uma visão ampliada de saúde centrada na questão de que a saúde é social e politicamente determinada. Ou seja, não se tratava (e continua sendo assim) apenas de construir um sistema de atenção à saúde. Nesses mais de 20 anos, a saúde brasileira sofreu profundas transformações para melhor. A dimensão de Saúde Pública do SUS avançou bastante. Programa de Imunizações, erradicação e controle de doenças infecciosas, nosso Programa de AIDS, Políticas de Prevenção e Promoção, tabagismo, política de transplantes, redução da mortalidade infantil e aumento da expectativa de vida, programa de saúde da família que já cobre 50% da população, política de saúde bucal, assistência farmacêutica para doenças crônicas; são exemplos desse sucesso. Os problemas se concentram na desigualdade do acesso entre regiões e classes sociais e na qualidade da assistência. O SUS tem cumprido um papel central na qualificação da democracia brasileira através do trabalho dos Conselhos Municipais, estaduais e nacional de saúde; além das conferências de saúde realizadas a cada quatro anos. É um modo de exercitar a democracia direta que tem sido copiado por outras dimensões das políticas públicas.Há outra dimensão referente ao processo de desenvolvimento do país e da sociedade brasileira. Em minha opinião, a existência do SUS é fator fundamental no processo de construção de um país efetivamente desenvolvido e obstáculo à implantação, no Brasil, da barbárie disfarçada de modernidade que é a disseminação de uma visão da saúde vista como mercadoria ou bem a ser comprado no mercado de acordo com a capacidade de gasto de famílias ou empresas.


Plataforma: Nos últimos 13 anos o combate à fome, miséria e pobreza entraram na agenda política e econômica nacional e, devido à complexidade intrínseca aos temas, o Estado brasileiro passou a empregar políticas transversais, que unem esforços de inúmeras áreas dos governos federal, estaduais e municipais, empresas, sociedade civil e movimentos sociais. Dentro deste contexto, qual o papel que cabe ao setor da saúde, em especial ao Sistema Único de Saúde?

Temporão: A saúde talvez seja a mais transversal e transdisciplinar dentre todas as políticas. De um lado, ela se beneficia de políticas voltadas para a redução de desigualdades e para a proteção dos mais vulneráveis.De outro, acolhe em suas múltiplas dimensões estratégias e políticas do campo da educação, da ação social, da cultura, da política habitacional, da nutrição, do saneamento básico e ambiental, do desenvolvimento em seu sentido mais amplo, como produtor de saúde e bem estar. O SUS trata apenas de algumas dessas dimensões no campo da promoção, prevenção e atenção. A saúde em seu sentido mais amplo precisa dialogar com o conjunto de políticas econômicas e sociais, já que ela é socialmente e politicamente determinada. Do ponto de vista prático as maiores aproximações ocorreram com as áreas da educação e do programa Bolsa Família. Mas é importante lembrar também a dimensão cultural da saúde, a da disseminação na sociedade da saúde como um bem público, as questões relacionadas ao preconceito e à discriminação, à luta contra quaisquer formas de violência e a defesa da paz.


Plataforma: O SUS tem passado por constante processo de ampliação e consolidação. Entretanto, mantém-se uma desigualdade regional significativa na qualidade do atendimento e dos demais serviços prestados aos cidadãos. Em algumas regiões o SUS funciona bem, em outras muito mal. Quais as principais barreiras para que haja uma maior homogeneidade na qualidade dos serviços públicos de saúde?

Temporão: A desigualdade regional na oferta e qualidade dos serviços de saúde expressa a desigualdade histórica entre essas regiões. É preciso lembrar que, no caso da saúde, saímos em 1988 de um sistema fortemente centralizado, para uma descentralização radical que trouxe novos problemas considerando a heterogeneidade do perfil dos municípios brasileiros. Para enfrentar esse perfil, e respeitando a questão do federalismo, da autonomia de estados e municípios, o SUS inovou através da construção de câmaras voltadas para a obtenção de consensos e a pactuação de políticas: as bipartites e a tripartite.A dinâmica econômica que estabelece padrões diferenciados de oferta, concentração de tecnologias e especialistas, na maioria das vezes, encontra-se fora da governabilidade dos gestores do setor. Veja o exemplo da alocação de médicos. Esta é uma questão não resolvida e que desafia os governos há décadas. Como garantir a presença de generalistas e especialistas nas regiões e municípios onde eles por diversas razões resistem a se instalar?


Plataforma:O volume de recursos destinados à saúde pública (mais de R$ 105 bilhões em 2015) pelo governo federal é significativo, mas permite pouco investimento. Essa realidade cria condições para que ainda se mantenha a concentração geográfica de equipamentos (leitos, hospitais, médicos) de antes do SUS. É possível reverter essa situação sem novas fontes de financiamento para a saúde?

Temporão: Na realidade a saúde brasileira é subfinanciada. Dados do IBGE revelam que do total de gastos públicos e privados apenas 40% são gastos públicos. Ou seja, a maior parte dos gastos recai sobre as famílias. Quando comparamos os gastos em saúde do Brasil com países de mesmo nível de desenvolvimento econômico e social, nossos gastos são proporcionalmente inferiores. A manutenção desse quadro crônico é o principal fator da dificuldade de ampliação do acesso e qualificação da atenção. Um sistema de saúde subfinanciado acaba se transformando em agente perpetuador de iniquidades. O quadro abaixo ilustra a dramaticidade da situação. O orçamento da União para 2011 destinou 45% dos recursos para o financiamento da dívida interna e apenas 4% para a saúde.


Plataforma: O que é necessário para que o debate sobre o financiamento da saúde de 204 milhões de cidadãos evolua para um padrão de discussão civilizada, republicana e democrática? Qual os papeis dos governos e da sociedade nesse processo?

Temporão: Através da ampliação do grau de consciência politica da sociedade sobre o papel da saúde na construção de cidadania plena e o enfrentamento corajoso das contradições que enfrentamos. Comecemos pela política de subsídios e da renúncia fiscal referente aos gastos privados em saúde. Em nosso país, famílias e empresas podem abater do imposto de renda devido os gastos com médicos, clínicas, exames e procedimentos realizados na rede privada com contribuintes e dependentes, sem limites de gastos. Permitimos inclusive que custos com cirurgias estéticas sejam integralmente abatidos. Essa renúncia é um subsídio direto do Estado ao segmento de planos e seguros saúde. Estima-se que algo entre 10 e 15 bilhões de reais por ano deixem de ser arrecadados a partir dessa política. Ou seja, com uma mão se subsidia o mercado e com a outra se retiram recursos vultosos do SUS. Da mesma forma, o conjunto do funcionalismo dos três poderes e os funcionários das estatais goza do privilégio de dispor de planos e seguros subsidiados, em parte, pela União e pelas empresas públicas. Uma situação contraditória onde o sistema público acaba não atendendo as demandas e necessidades cotidianas de seus funcionários que usam o sistema privado, em parte pago pelos impostos de todos os brasileiros.


Plataforma: A herança da ditadura militar foi um sistema de saúde privatizado. O SUS pretendia romper com esse modelo. Mas os governos democráticos não foram capazes de enfrentar essa tarefa. Desde os anos de 1990 cresce a influência das chamadas “organizações sociais” na saúde. Terceirizações de serviços e PPP para a construção de hospitais estão sendo incentivadas pela União e governos estaduais. Desonerações de impostos para seguradoras e operadoras de planos de saúde estão em estudo no âmbito federal. Essas ofensivas não corroem o caráter público do SUS? Quais as consequências disso para o desenvolvimento social do país?

Temporão: Estamos assistindo a progressiva consolidação de um conceito contra o qual nós sanitaristas lutamos toda a vida: de que o acesso à saúde deve ser resultado do processo de inserção dos cidadãos no mercado formal de trabalho. Garantido através da conquista coletiva ou individual a um plano ou seguro saúde, ou seja, uma visão que traz embutida uma ideia objetivo para o futuro do SUS: cuidar dos pobres. Esse processo vai se consolidando de modo lento, mas firme e, seus vetores político-ideológicos são a manutenção do sub-financiamento crônico do SUS e a crescente percepção, fortemente disseminada, de que o processo de ascensão social está centrado na tríade: acesso ao carro, à casa própria e ao plano de saúde.


Plataforma: Novas demandas aumentarão a carga sobre o SUS nas próximas décadas. O envelhecimento populacional, o amadurecimento de uma geração atual de crianças obesas e portadores de doenças correlatas, aumento do número de diagnóstico de cânceres (apenas em 2016 o INCA estima que 596 mil novos casos) são alguns dos componentes da carga futura. É possível enfrentar esses problemas desde já de forma a minimizar o impacto futuro? 

Temporão: Os sistemas de saúde em todo o mundo passam por profundas transformações que impactam seu desempenho e ameaçam sua sustentabilidade. Podemos chamar esses processos complexos de transições no campo da saúde pública. As mais conhecidas são as transições epidemiológica e demográfica. O perfil predominante das doenças que atingem os brasileiros é muito semelhante a dos países desenvolvidos. As doenças cardiovasculares e cerebrovasculares, o câncer, hipertensão e diabetes predominam como principais causas de morbidade e mortalidade. Mas aqui com uma particularidade: a da tripla carga de doenças. Ao lado das doenças crônicas somam-se uma ainda uma forte presença das doenças infectocontagiosas e as causas externas que englobam homicídios, acidentes de transito e de trabalho. Ao lado disso, nosso país envelhece em um ritmo acelerado. Caem as taxas de mortalidade, reduz-se a taxa de natalidade e aumenta a expectativa de vida ao nascer. Teremos 35 milhões de pessoas com mais de 60 anos em 2025. Crescerá o impacto das demências, Alzheimer e distúrbios psíquicos. Todos esses processos trazem grande impacto sobre os sistemas de saúde que deve se transformar para atender a essa nova realidade. E isso não se fará sem que se encontre uma medida para garantir o equilíbrio econômico-financeiro-tecnológico e organizacional dos sistemas.


Plataforma: A geração de empregos nos últimos anos e a crescente formalização dos trabalhadores tem levado milhões de usuários a comprar planos de saúde. Simultaneamente, prolifera o número de empresas que entram nesse mercado vendendo planos. Esse processo de diminuição de pressão sobre o atendimento básico do SUS deve ser visto como um problema, pela diminuição da pressão social, ou como uma oportunidade?

Temporão: Na realidade a ampliação da presença de planos e seguros no mercado brasileiro é capitaneada pelos planos coletivos e expressa, também, no crescimento do emprego formal nos últimos anos. Mas o que estamos assistindo são situações típicas do sistema público (tempo de espera, filas, etc.) presentes também no setor de planos e seguros. Não vejo também como esse processo possa “diminuir a pressão” sobre o SUS dada a situação crônica de suboferta e a demanda crescente por serviços e novas tecnologias presente tanto no SUS como no segmento suplementar.


Plataforma: Então, o processo de privatização da saúde em curso, que leva 60 milhões de brasileiros a terem planos de saúde, não minimiza as dificuldades enfrentadas pelo SUS? O mercado não pode ser aliado em um movimento de reestruturação qualitativa do sistema público brasileiro?

Temporão: Essa é uma visão pobre e equivocada do processo através do qual se constrói o melhor caminho para se garantir saúde e bem-estar para todos sem distinção. Apostar no caminho da ampliação do acesso aos planos e seguros é investir na diferenciação do acesso a partir da renda, ou seja, de aprofundar as desigualdades e iniquidades.


Plataforma: Durante décadas perduraram no Brasil modelos pouco democráticos no atendimento à saúde dos cidadãos. Tinha direito quem pagava. O SUS veio para transformar isso. Na sua gestão houve avanços na integração do setor privado ao SUS, com isenções para grandes hospitais e aumento das formas de gestão privadas no setor público. Esta opção mostra que um SUS essencialmente público já seria uma visão ultrapassada para alguns gestores?

Temporão: Há aqui uma confusão entre público e estatal. O que defendi (e infelizmente não consegui implantar) foi a criação de uma nova abordagem para a gestão em instituições públicas baseada na profissionalização, na eficiência, em carreiras estruturadas com metas a cumprir e indicadores de desempenho, e através da contratação de funcionários pela CLT. Isso nada tem de privatização. Mas como esta proposta não prosperou, estamos assistindo a uma proliferação desordenada de modelos de terceirização e contratação de entidades privadas no campo da oferta de serviços públicos. Isso tem criado sérios problemas de planejamento, coordenação e controle das atividades realizadas por essas entidades em todo o país. Ou seja, hoje existe uma polaridade entre posições extremas. De um lado, os que defendem a gestão pública dentro do atual arcabouço jurídico-institucional, de outro os que defendem uma mais radical flexibilização com a ampliação da participação do terceiro setor ou de empresas na gestão de serviços e programas públicos. Creio que as duas posições embutem riscos consideráveis. A primeira pela ausência de uma visão moderna de gestão e a segunda pelos riscos de falta de controle, quebra do processo de construção da cultura institucional (dado que os gestores do serviço público passam a responder ao controlador da empresa gestora).


Plataforma: Mais de 45% dos atendimentos SUS são prestados por entidades filantrópicas, como as Santas Casas, que sofrem com a “defasagem da tabela do SUS”. Esse problema de fato existe? Quais as perspectivas para solucioná-lo, visto que quase metade dos atendimentos é prestada por esses hospitais?

Temporão: Na verdade a “defasagem da tabela do SUS” nada mais é do que uma das muitas faces perversas do subfinanciamento crônico do SUS. Sem essa solução macro não teremos como resolver questões referentes à adequada remuneração dos serviços prestados pelas entidades filantrópicas e pelas demais entidades que prestam serviços ao SUS.


Plataforma: A principal proposta de trabalho de sua gestão foi o PAC da saúde. Para muitos, ele não teve os resultados esperados. Para outros, pelo menos na área de produção de fármacos houve avanços, já que os interesses empresariais foram mobilizados. Como avalia os avanços e os obstáculos do PAC da saúde?

Temporão: O divisor de águas foi a não aprovação da CPMF pelo Senado. Uma decisão política mesquinha da oposição que impediu a aplicação de recursos substantivos ampliando o orçamento do Ministério da Saúde para os anos subsequentes. Isto restringiu o escopo do PAC Saúde e tivemos que reduzir metas de ampliação de cobertura, do acesso, obras e reformas etc. Evidente que isso impactou o desempenho do programa, mas não impediu que avanços ocorressem. No campo do estabelecimento de uma estratégia de ampliação da capacidade nacional, na produção de genéricos através de parcerias entre laboratórios públicos e privados, os avanços foram importantes e estão tendo continuidade no governo da Presidenta Dilma.


Plataforma: O SUS é um dos maiores direitos sociais de cidadania conquistados em 1988. Devido a sua complexidade e magnitude diferentes olhares são apresentados sobre o sistema. Para alguns é oneroso, para outros, essencial. Como a sociedade brasileira deve olhar e entender o SUS?

Temporão: Um fato recente pode nos ajudar a refletir sobre esta questão. Na cerimônia de abertura dos jogos olímpicos de Londres (2012) muitos ficaram surpresos com uma longa apresentação do NHS – o sistema público de saúde da Inglaterra- como um patrimônio da sociedade inglesa que eles fizeram questão de ressaltar na cerimônia como uma das grandes contribuições dessa nação para o mundo. A questão é: em 2016 teremos como apresentar o nosso SUS como resultado do esforço de uma nação em busca da equidade e da saúde como um direito?


Plataforma: Qual a visão dos governos sobre o SUS?

Temporão: A visão sobre o SUS também não é homogênea no interior do governo. O fato dos principais governantes, legisladores e juízes do país não usarem o SUS para suas demandas cotidianas, e terem seus tratamentos privados subsidiados pelos contribuintes, cria uma situação no mínimo curiosa. Todos defendem o SUS como política pública universal, desde que a elite da nação não seja obrigada a utilizá-lo. É preciso aqui uma mudança radical cuja essência é a seguinte: o SUS não pode ser um sistema para atender aos pobres. Um sistema concebido para atender apenas aos pobres acaba se transformando em um sistema pobre; o SUS é componente fundamental para o processo que vai nos levar ao desenvolvimento o seu sentido mais pleno; o SUS é componente central para a consolidação da democracia no país; e o SUS deve ser olhado como fator importante para o desenvolvimento da ciência, da inovação e de uma base produtiva nacional voltada para atender os principais problemas de saúde do país.


Plataforma: Um sério problema é configurado quando a sociedade abre mão de um direito, ainda que inadvertidamente. É comum vermos o SUS com toda a sua infraestrutura e magnitude ser reduzido a filas e outros problemas que são inegáveis, mas que não podem sobrepor toda a estrutura do SUS. Jornalismo que informa pela metade, desinforma e cria preconceito e demanda por serviços privados. É possível protegermos os cidadãos desse tipo de abordagem. Qual a sua opinião sobre isso?

Temporão: Existe um evidente viés por parte da grande mídia em expor, principalmente, as mazelas do SUS, que, aliás, estão presentes em qualquer sistema de saúde do mundo, ou do próprio setor privado. Esse é um processo ideológico que faz parte de uma cultura que vê o SUS como sistema para os pobres e que cria uma falsa consciência de que o setor privado, ou o “mercado”, oferecem produtos de melhor qualidade. Em relação à saúde, e de uma maneira geral, o que é publicado são as grandes conquistas – como transplantes e novas terapêuticas – e os grandes fracassos, como as filas de atendimento, as fraudes, as mortes, etc. O dia a dia, a rotina do salvamento de milhares de vidas e de milhares de curas não é objeto de atenção e, portanto, de publicação. Compete a nós modificar o foco desta atenção, gerando os fatos políticos. Transformando em fatos políticos ou em fatos de interesse para a mídia e para o público o que hoje não tem esse espaço.

Viomundo, 25 de maio de 2016



Ministério da Saúde reúne-se com entidades médicas e grupos que apoiaram a derrubada de Dilma e anti-SUS. A troco de quê?



Por Conceição Lemes



Nesta quarta-feira, 25 de maio, o Ministério da Saúde realiza a partir das 14h, em Brasília, reunião, para “discutir reivindicações de entidades e grupos médicos”.
Participantes convidados: Conselho Federal de Medicina (CFM), Ordem dos Médicos do Brasil, Vem Pra Rua-Saúde e Movimento Brasil Livre.
Além de nenhuma entidade de saúde coletiva ter sido convidada, chama-nos a atenção a pauta, que é claramente voltada para os interesses do setor de medicina privada.

Daí esta entrevista com o médico Hêider Pinto, ex-coordenador do Programa Mais Médicos do Ministério da Saúde.

Viomundo – O que acha de o ministro interino da Saúde só ter chamado entidades médicas, movimentos que apoiaram o golpe contra a presidenta Dilma, como o Vem Pra Rua e o Movimento Brasil Livre, e nenhuma instituição da área de saúde coletiva, como os respeitadíssimos Cebes e Abrasco?

Hêider Pinto – Eu acho bem estranho. Ele ainda não conversou com o Conselho Nacional de Saúde, maior instância de deliberação do SUS e prevista em nossa legislação. Não conversou com nenhuma das instituições da saúde coletiva e da reforma sanitária brasileira. Não conversou com entidades representativas dos trabalhadores.

De um lado, ele escolheu se aconselhar com o Conselho Federal de Medicina (CFM), o que era esperado.  De outro, com a Ordem dos Médicos do Brasil. É um grupo virtual que reúne médicos extremamente conservadores e é conhecido por sua intolerância, preconceito e visão absurdamente corporativa e privatista.  Isso sem falar de outros grupos sem nenhuma tradição na saúde, que têm em comum o apoio raivoso ao golpe contra a presidenta Dilma. Esses grupos, é bom que a sociedade saiba, não têm qualquer relação com as políticas de saúde pública.


Viomundo – Como o senhor interpreta essa postura?

Hêider Pinto — De dois jeitos. Ou esses grupos estão cobrando agora a fatura do apoio ao golpe. E não nos enganemos, a fatura será paga com a subtração de direitos da população. Ou o governo interino já está convencido de que o caminho é reduzir o tamanho do SUS e desmontá-lo e está em busca de quem apoie esse rumo.


Viomundo – Pelo documento ao qual eu tive acesso (no topo, ao lado da foto do ministro interino), eles vão tratar de onze pautas com o ministério. Uma delas é a maior participação das entidades médicas no planejamento das ações de saúde.  É impressão ou o ministro interino está privilegiando os médicos em detrimento dos demais profissionais da saúde?

Hêider Pinto – Olha, acho que não é impressão, é real. Logo que ele foi indicado havia a preocupação de ele não ter qualquer formação na área de saúde. Hoje, pelas declarações e agendas, para mim fica claro que ele combina o desconhecimento específico sobre a saúde e a intenção de se apoiar no setor mais conservador da medicina.

Esse setor defende a redução do sistema público de saúde e a ampliação do setor privado. Tem uma visão absolutamente centrada nos médicos e com prejuízos para as demais profissões da saúde e para a população.

Aliás, a grande imprensa noticiou que o ministro interino teria criado um grupo de WhatsApp com notáveis da medicina privada. Pelo visto, agora foram mais além: estamos vendo a primeira reunião do que poderá vir a ser um fórum permanente de discussão das políticas de saúde e com esses setores.

Um desrespeito às instâncias legais e consolidadas de gestão compartilhada do SUS, como a Comissão Intergestores Tripartite (inclui representantes dos municípios e estados) e o Conselho Nacional de Saúde, que agrega também representantes dos usuários e dos trabalhadores.


Viomundo – Outro item da pauta é a “obrigatoriedade de todos os médicos formados no exterior fazerem revalidação de diploma para poderem sem exceções como ocorre no Mais Médicos”. É o fim do Programa Mais Médicos?

Hêider Pinto – As entidades médicas mais conservadoras foram e continuam sendo contra o Mais Médicos, apesar do amplo apoio da população e dos próprios médicos que participam do Programa ou que são docentes das formações oferecidas nele.

Ao incluir este item na pauta, as entidades médicas tentam mais uma vez emplacar a pauta que mistura xenofobia e reserva de mercado: o fim dos estrangeiros no Mais Médicos.

O discurso da reserva de mercado é um absurdo, porque esses 13 mil médicos atuam justamente nos lugares nos quais 45 milhões de brasileiros estavam sem atendimento médico regular justamente porque nenhum médico brasileiro formado no Brasil se dispôs a atuar lá.
Mas há o receio de qualquer abertura maior do Brasil à atuação de médicos formados no exterior, brasileiros ou não. Para você ter uma ideia, no Brasil, em 2013, apenas 1,8% dos quase 400 mil médicos em atuação eram estrangeiros. No mesmo ano, nos EUA e Reino Unido esses números chegavam, respectivamente, a 25% e 37%.

Acompanhamos na imprensa que o ministro interino havia prometido a saída dos estrangeiros às entidades médicas. Depois disse que não sairiam todos, mas 10 mil de 13 mil. Depois recuou mais um pouco ante a forte pressão de vários setores da sociedade, inclusive prefeitos apontando que não haveria redução antes das eleições. O que já merece forte crítica porque a saúde da população não pode ficar subordinada ao calendário eleitoral. Agora, parece que as entidades reagem e vêm cobrar os compromissos assumidos anteriormente.


Viomundo – As entidades médicas também querem o “fim da abertura indiscriminada de Escolas Médicas”.

Hêider Pinto – Em primeiro lugar, não há abertura indiscriminada de escolas, esse é um argumento falso. O Brasil tinha menos de uma vaga de medicina para cada 10 mil habitantes no ano de lançamento do Mais Médicos. Número bem menor que a média dos 33 países da OCDE.  Também quatro vezes menor que a vizinha Argentina.

A lei do Mais Médicos determinou que só podem ser abertas escolas nos locais em que o número de médicos é menor que 2,7 médicos por mil habitantes e o de vagas de graduação menor que 1,3 médicos por 10 mil.  Essas são as metas que o Programa planejou chegar em 2026.

Ou seja, não há abertura indiscriminada, há planejamento da abertura. E isso tem desagradado médicos, que querem poucos profissionais no mercado. Também tem desagradado o setor privado de educação que quer abrir escola à vontade, mais precisamente onde as pessoas podem pagar mensalidades independentemente de lá ter ou não necessidade social.

Fato é que as escolas do Brasil só formam 66% das novas vagas de emprego para médicos criadas a cada ano. E só abrindo 11,5 mil vagas nos locais que mais precisam, no interior, é que o objetivo de se ter 600 mil médicos no Brasil em 2026 será cumprido.

Essas duas pautas – fim da abertura de novas escolas e a eliminação dos estrangeiros no Mais Médicos — mostram que, embora o discurso seja o da qualidade, a preocupação, na realidade, é outra: a reserva de mercado e protegê-lo dos médicos formados fora ou mesmo aqui no Brasil.


Viomundo – Outra pauta da reunião é “garantir prerrogativa ao médico para diagnosticar, tratar, fazer procedimentos invasivos e emitir atestados de óbito”.

Hêider Pinto –  Nada mais é do que retomar a ideia de derrubar os vetos da presidenta Dilma à lei do Ato Médico. A Lei original previa que só médicos fizessem procedimentos que hoje são realizados também por outros profissionais, como fisioterapeutas, enfermeiros, nutricionistas, professores de educação física e psicólogos. Acupuntura, por exemplo, só poderia ser praticada por médicos.

Mais uma vez o discurso é o da qualidade, mas o objetivo é reservar procedimentos para que sejam comercializados exclusivamente por médicos.

O conjunto da obra: deixar o Brasil com um mercado de trabalho bem favorável aos médicos (poucos e só os médicos podendo fazer diversos procedimentos), mas completamente insalubre à população.

Afinal, resultaria em menos profissionais para cuidar das pessoas. Ou seja, mais desassistência. É colocar o interesse específico de uma categoria sobre o interesse maior da saúde da população, o contrário do juramento que os médicos fazem quando se formam. Mas eu reforço: muitos e cada vez mais médios discordam dessas posições dos grupos mais conservadores.


Viomundo – O que acha da carreira nacional para médicos similar a dos juízes?

Hêider Pinto – É no mínimo curiosa e contraditória. De um lado, as pautas apontam para a redução do SUS e aumento da fatia do mercado. Uma pauta privatizante. De outro, se propõe uma faceta que eles próprios desqualificariam como “estatista”, mas somente para os médicos e nenhum outro profissional de saúde. E com lógica de funcionamento e remuneração similar a dos juízes. Ora, o judiciário é um poder de Estado. Não há carreira desse tipo para a profissão de advogado. A medicina é uma profissão, não um poder de Estado. Não é uma comparação razoável comparar com a carreira de juiz.


Viomundo – Mas a criação de uma carreira para todos os profissionais que atuam no SUS é fundamental para assegurar qualidade.

Hêider Pinto – Para assegurar qualidade, estabilidade e valorizar os trabalhadores. Mas, você disse-o bem: para todos os trabalhadores que atuam no SUS e não apenas para os médicos. E uma carreira que respeite a lógica tripartite do SUS. Com financiamento tripartite, sim. De Estado, sim. Mas, não necessariamente da União.

Esse debate é fundamental e será importante construir uma solução que dê conta da diversidade do Brasil. Mas receio que o interesse maior nesta reunião não seja com a saúde ou com o SUS. Diria que a síntese do que se pretende é: muita oferta no mercado e pouco médico para quem quiser atuar no privado e a proteção de uma carreira de juiz para quem quiser ficar ou atuar também no público.


Viomundo – E qual a intenção das pautas “parcerias público-privadas na Saúde”, “reajuste da tabela SUS e planos de saúde” e “reavaliação da capacidade da ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] de intervenção nos planos de saúde”?

Hêider Pinto – Temos o encontro da agenda mercadológica e liberal dos grupos médicos mais conservadoras com a agenda privatista e anti-SUS do governo golpista.
A pauta das parcerias segue a máxima do documento 'Ponte para o Futuro': “privatizar tudo o que for possível”.

Se combinada ao reajuste da tabela para remunerar mais um procedimento do SUS com recursos do Estado, ter-se-ia a oportunidade de uma grande expansão para o setor privado por meio da terceirização. Ou seja, se passaria para a iniciativa privada vários serviços que hoje são públicos, mas ainda custeados pelo setor público e com valores de repasse maiores.

Para os usuários que “podem pagar” ou os que “poderia fazer com que pagassem” a ideia seria aquilo que próprio ministro interino já antecipou a intenção. De um lado, estimular a multiplicação de Planos (“quanto mais pessoas com plano, melhor”). De outro lado, reduzir a fiscalização sobre os planos.

Só reduzindo a fiscalização – portanto, exigindo menos qualidade – e  subsidiando — via renúncia fiscal — é que se poderia ter planos com preço tão baixo quanto sua qualidade para empurrar para fora do SUS milhões de cidadãos e convencê-los a contratar um plano privado.
Hoje, só 25% dos brasileiros têm plano de saúde.  O sonho da “Ponte para o Futuro” do ministro interino e das seguradoras é que este número chegue a 60%.

Mais uma vez, a preocupação é com a saúde do mercado e do bolso, não com a saúde da população brasileira.


Viomundo – O último item da pauta da reunião de hoje no ministério com entidades médicas é “reduzir a proporção de recursos da Saúde que ficam na União”.  Como o senhor o vê?

Hêider Pinto – Na prática, menos recursos na União e mais nos municípios e estados.

Os mais otimistas veriam essa pauta como uma tentativa de mudar a lógica do pacto federativo, valorizando quem entre as esferas de governo é responsável pela execução das ações e gestão dos serviços de saúde. E os mais pessimistas, até pelas demais pautas a serem tratadas na reunião, veriam como tentativa de fragilizar a governança central do SUS no governo federal e dotar os estados e municípios de mais recursos. Com isso, eles teriam mais dinheiro para contratar em melhores condições o setor privado em expansão desenfreada e contra a saúde das pessoas.

PS do Viomundo: A reunião com as entidades médicas e demais grupos foi a portas fechadas e durou cerca de quatro horas. 

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