Blog do RCL, 30 de maio de 2016
A aversão do governo golpista à Cultura
Por Jéferson Assumção
Não por acaso, uma das primeiras ações do governo provisório de Michel Temer foi acabar com o Ministério da Cultura (MinC). Por trás desta simples “canetada” está cada vez mais clara a “ideia de país” que não apenas Temer e seus ministros têm, mas também a elite brasileira e seu poder político-econômico-midiático-
Durante
o período de ascensão das políticas culturais no País, nas gestões
Gilberto Gil e Juca Ferreira, parte do Brasil começou a perceber a
importância da cultura não apenas para o mundo dos artistas. Passou a
ver que todo o restante da ideia de desenvolvimento passa pela cultura,
que educação sem cultura é ensino, que saúde sem cultura é remediação,
segurança sem cultura é repressão, economia sem cultura é acumulação,
comunicação sem cultura é manipulação etc etc. Daí que ao fechar o MinC e
as pastas que mais transversalizam com ele, Temer & cia mostram o
que entendem não só por cultura, mas também por educação, saúde,
segurança, direitos humanos, igualdade de gênero, racial, comunicação
etc. E deixam claro seu projeto: um país sem autoestima, manipulável,
sem criatividade, com o mínimo de espírito crítico possível.
No
entanto, um erro do interino foi subestimar o tamanho e a importância
da cultura para o país, gerando a, atualmente, principal frente de luta
contra o provisório governo. Nas ruas, nas redes e nas ocupações da
Funarte e outros órgãos do MinC, escolas e centros culturais, não se
quer apenas a devolução do status de ministério à cultura, mas a volta
de uma ideia de país em que a cultura seja estratégica, vista como vetor
de desenvolvimento social e econômico. É óbvio que o atual governo não
tem nenhuma condição, nem legitimidade popular, de realizar esta ideia,
nem de compreendê-la em sua totalidade – seja pelo perfil de seu
ministério, seja pela mentalidade de seus aliados na mídia e no mercado.
A
postura de, no primeiro dia, não apenas apagá-la do mapa dos
ministérios mas fazer desaparecer qualquer ideia progressista, crítica,
ampliadora de repertórios nas demais áreas com ela transversais – basta
ver o perfil dos indicados a ministros – mostra uma mistura de
obtusidade, ignorância, envelhecimento e distanciamento, dos atuais
donos do poder, em relação à nova realidade política do país. Uma
realidade que conta agora também com novos atores e sujeitos capazes de
fazer muito mais que anteriores massas caladas, seja pelos jornais, seja
pelos coturnos.
O projeto óbvio da elite não é apenas acabar com o Ministério da Cultura, mas tirar a cultura de todo lugar e fazer retroceder ao que ela sempre foi nesses 500 anos de dominação branca do país. Trata-se de um período em que, como diz Renato Ortiz em A Moderna Tradição Brasileira, nossa elite desenvolveu-se dentro de uma ideia de cultura como ornamento e ostentação, como adereço e verniz de distinção social. No fundo nossa elite conservadora – representada em gênero, números e graus no ministério atual – sempre teve vergonha da cultura brasileira, dos modos de ser e fazer de negros, indígenas, sertanejos, caipiras, amazônicos, suburbanos.
Pois
foi exatamente a diversidade cultural que veio, aos trancos, à tona no
Brasil dos últimos dez anos, num movimento que se deve a três grandes
elementos: 1) o desenvolvimento social e econômico do Brasil no período;
2) a aplicação de políticas culturais mais democráticas e abrangentes e
3) a liberação da informalidade das periferias – e o poder da
diversidade cultural brasileira – pela expansão da internet e a
consequente diminuição do poder zumbizista televisivo, ainda
predominante, mas decadente.
Isso
incomoda muita gente, claro. Gente que preferiria que o Brasil fosse
uma Miami, uma Dubai ou qualquer outro parque de diversões do consumo,
cercado por muros a garantir uma cada vez mais difícil paz burguesa.
Gente que fica triste com a imensa alegria que vem das periferias e de
lugares antes calados e invisibilizados pela indústria cultural
tradicional-homogeneizante, mas que já não é suficiente para segurar
todo o poder da informalidade que o uso cultural da internet vem
trazendo à tona.
Quer
queiram ou não, do meio para baixo cresce o reconhecimento de que a
cultura é importante fator de qualificação do ambiente social, de
desenvolvimento coletivo e individual, gerador de oportunidades ao
ampliar repertórios, de emprego e de renda, principalmente quando focado
nos mais jovens. Jovens que estão dando todos os sinais de que
entenderam a potência da cultura e da expressão simbólica e que enchem o
Brasil de otimismo, mesmo nesses tempos obscuros. Eles incomodam
principalmente quem está no camarote ou no andar de cima e que pretende
seguir a controlar direitos, incutir valores e empacotar o gosto para o
consumo da rapaziada lá embaixo.
Agora,
como esta mesma elite não percebe que o mundo moderno passa pelo
fenômeno da valorização de sua diversidade cultural, recombinando-a em
produtos de uma economia da cultura diversa, potente, colaborativa,
horizontal e que vem incluindo milhões de pessoas criativas? Porque ela é
arcaica, cafona, obtusa, bocó. Para ela e seus cordeiros o criativo
incomoda.
Acabar
com o MinC é tentar atacar a dimensão criativa de uma sociedade, vetar o
acesso e a transformação individual e social possibilitada pelo consumo
e produção de bens e serviços culturais diversos. É atacar o direito à
fruição e à expressão simbólicas, fundamentais para ampliar repertórios e
apontar vias de superação das mazelas vividas pelas populações que mais
precisam. É impedir de se qualificar o ambiente social via ações que
gerem cultura de paz e de discernimento, ambientes de vivência lúdica,
afetiva e criativa capazes de dar sentido à vida social para além do
prosaico conjunto de sobrevivência diária. É tirar o foco dos
territórios com menor acesso a bens e serviços desta natureza, embaixo
da eterna cantilena falaciosa e economicista, cuja conta é paga pelo que
não tem e não pelo que tem. Claro que se já era pouco, com este
rebaixamento do Minc vão faltar ainda mais recursos administrativos,
institucionais e financeiros para implantar e reestruturar centros
culturais, casas de cultura, pontos de cultura, bibliotecas, pontos de
leitura, pontos de difusão audiovisual, estúdios comunitários,
brinquedotecas. Obviamente que tudo isso de caso (mal)pensado, pois os
usuários e fazedores nesses espaços incomodam muita gente.
Sem
o MinC, é fácil prever alguns resultados. A transversalidade das ações
da cultura será duramente afetada e com ela a consciência de que nossa
cultura é híbrida, de fronteira, aberta, antropofágica, de forte
presença das tradições rurais e populares, periféricas, urbanas. O
patrimônio cultural vai correr ainda mais riscos. Ante uma enorme
pressão do mercado, que só vai aumentar sem o poder do MinC como
ministério, o patrimônio arquitetônico vai sofrer enormemente, mas
também as festas populares, as culturas populares poderão se transformar
cada vez mais em para-folclore mercantilizado pela força da mídia e sua
indústria cultural, altamente concentrada no Brasil e sem interesse no
seu desenvolvimento.
Num
discurso de crise, claro que vai ser barrada qualquer discussão sobre
financiamento da cultura (fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura,
reforma da Lei Rouanet, orçamento de 1,5% do total), mas também devem
minguar – não tem por que não – os espaços de participação, como CNPC
(Conselho Nacional de Política Cultural), colegiados setoriais,
conferências regionais de cultura, os planos setoriais discutidos entre
os diferentes setores e linguagens artísticas, ou seja, o espaço da
cidadania, da participação na gestão. Uma volta, com enormes
consequências, e que precisa ser barrada. Não se trata de negociar com o
governo interino, não, mas de exatamente mostrar as diferenças de visão
de país e de seu povo que dividem as velhas e encasteladas elites e o
Brasil real, profundo, vivo. É por isso que o povo está na rua, nos
prédios ocupados, nas redes. É um vespeiro que foi cutucado por alguém
que não conhecia bem seu tamanho nem o do vespeiro.
Por
baixo, anestesiados (sem sensação autônoma, sem sensibilidade própria,
mas apenas a introjetada de fora), dando suposta sustentação, veremos os
últimos homens-massas zumbizados pelos meios de comunicação e
entretenimento; agressivos uns, infantilizados pela lutinha, pelo
jornalismo salafrário e por filósofos de araque; outros, rebanhos
conduzidos por ricos pastores suspeitos. Alguns, simples ingênuos
(fechados, obtusos, com a cabeça entre os joelhos), adoradores do poder
dos outros. Todos só mostrarão que não entenderam nada do que aconteceu
no Brasil nos últimos anos, se não porque incomodados com o que está
emergindo com a cultura, porque mantidos ignorantes por aqueles que a
temem.
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