segunda-feira, 30 de maio de 2016

Livro: 'Mon frère le Che'


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CartaCapital, 30/05/16



Entrevista - Juan Martin Guevara
​*​

O caçula humaniza o mito



Por Leneide Duarte-Plon
​, de Paris



O irmão caçula de Ernesto Che Guevara esteve em Paris, em abril, para lançar a biografia do herói. O Che é um ícone mundial, mas seu pensamento e seus textos são menos conhecidos. Por isso, a missão do irmão, autor de Mon Frère le Che, em parceria com a jornalista francesa Armelle Vincent, é divulgar “um dos pensadores mais importantes do marxismo”, inspirador de revoluções anticolonialistas por todo o mundo. Grande leitor de Marx, o Che escreveu mais de 3 mil páginas publicadas em sete volumes.

No fim de sua vida, o Che tornou-se muito crítico dos desvios do comunismo soviético. “A URSS não o via com bons olhos, tanto quanto os Estados Unidos. Ele era um agitador que fomentava revoluções e incomodava a ordem estabelecida.

A URSS não amava os revolucionários. Penso que alguns agentes do KGB podem ter colaborado com a CIA para eliminar o Che na Bolívia”, escreve Juan Martin. Provável, mas difícil de provar.


CartaCapital: Por que o senhor decidiu quebrar o silêncio depois de muitos anos?

Juan Martin Guevara: Em 2009, a Secretaria de Turismo da Argentina (depois ministério) lançou um programa chamado “Pelos passos do Che”, que vincula os museus dedicados ao meu irmão na Argentina: Alta Gracia (Córdoba), La Pastera (San Martín de los Andes) e Hogar misionero Che Guevara (Caraguatay, Misiones).

No lançamento desse programa, fui convidado a participar pelos dirigentes de cada museu. A partir de então, comecei a realizar palestras em público, cada vez com maior frequência e convenci-me da necessidade de revelar o Che como ser humano, difundir seu pensamento, sua obra e colocá-la em seu contexto.


CC: O mundo inteiro conhece a imagem de Che Guevara. Poucos conhecem o pensamento.

JMG: Daquele programa turístico surgiu a ideia de criar uma fundação, tendo em conta que mais de quatro décadas depois seguimos as marcas deixadas pelo Che, convencidos de que o permanente renascer de suas ideias e ações obedece a razões que, de uma maneira ou de outra, expressam a necessidade dessa referência para enfrentar um mundo cheio de iniquidades, contradições e injustiças.


CC: Os aventureiros da família foram numerosos. O senhor escreve: “A história provaria que ele era mais louco, mais temerário, determinado e idealista que qualquer um deles”.

JMG: O termo “loucura” é uma forma que uso para descrever os que numa sociedade conservadora e mercantilista rompiam com os moldes. Assim era nossa família. E por isso digo que quem melhor rompeu com esses limites foi Ernesto. Era o menos normal de uma família não muito normal.

Num discurso de 1965 em Argel, ele definia uma posição crítica em relação à União Soviética e também o fez nas Notas Críticas, que escreveu sobre um Manual de Economia Política publicado na própria URSS. Nelas, ela já vaticina o regresso ao capitalismo daquele “socialismo real”.


CC: Como foi viver à sombra de um mito?

JMG: Em princípio, um dos meus objetivos de comunicação é desmitificar o Che. Humanizá-lo, colocá-lo com os pés nesta terra, falar do contexto familiar. E contar como se vivia na Argentina e no mundo nos anos de sua formação. Claro que ser irmão de alguém que vai crescendo cada vez mais como imagem até se converter em um personagem quase mítico é algo muito especial.

Para mim ele continua a ser meu irmão Ernesto e, além disso, meu companheiro e minha referência nas lutas por um mundo mais justo. Formei-me em três ambientes. Nossa casa era muito politizada e líamos muito. Depois teve a escola e a rua. Isso foi muito importante para mim. 


CC: A captura e a morte de Che Guevara ficaram envoltas em mistério. De fato, ele foi executado dia 9, depois de ter sido preso e desarmado. Como a família recebeu a notícia da morte e o que fez para recuperar o corpo?

JMG: Eu trabalhava como ajudante de caminhoneiro na distribuição de leite e derivados, e muito cedo, no dia 10 de outubro, vi a foto do corpo de Ernesto em um jornal. Não tive dúvidas de que era ele. Em reunião de família decidimos que Roberto viajaria para a Bolívia.

Ele foi com dois jornalistas da revista Gente, que fretou um avião para ir a Vallegrande e a La Paz. Os militares disseram: “Não tem corpo”. Roberto voltou. De Cuba nos confirmam a morte do Che e Roberto foi a Cuba. Muitos anos depois, em 1997, os restos foram recuperados e levados juntamente com outros para o Mausoléu de Santa Clara, em Cuba.



CC: Qual a influência da mãe na formação de Ernesto?

JMG: Sempre se fala da influência da mãe como algo determinante em sua formação. Creio que a formação dele, como de nós todos, foi um resultado da influência de nossa mãe, mas também de um contexto no qual meu pai teve um papel muito importante por seu temperamento inquieto, de ruptura com os padrões, por seu talento de grande caricaturista, por sua inclinação pela poesia e por seus sonhos de grandeza e seus recomeços. Também por sua capacidade de adaptar-se a todas as situações.

Minha mãe, ao contrário, era firme, disciplinada e tinha conceitos éticos com clara inclinação social para a diversidade. Mas também tiveram importante papel o tio Jorge, a tia Carmen e seu marido, e o ambiente de casa aberta a todos e muita leitura, muitos livros.


CC: O senhor sempre quis ser proletário, apesar de ter feito um ano de universidade. Foi caminhoneiro, proprietário de uma livraria de publicações de esquerda, importador de charutos Havana. Ficou preso 8 anos, 3 meses e 23 dias, por seu engajamento político no Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Como milita politicamente hoje?

JMG: O fato de querer ser proletário não foi uma aspiração, um desejo. Os trabalhos que exerci foram se apresentando com a vida. Aos 19 anos me casei e aos 24 tinha três filhos. Em 1974 fui preso por deter propagandas consideradas ilegais pelo governo da época. Depois de três meses, voltei à liberdade. Em 1975 fui preso novamente, até 1983.


CC: Como vê a Argentina sob um governo de direita?

JMG: Penso que esquerda, direita, progressismo, conservadorismo, são apenas palavras. Não se conhecem bem os limites de cada conceito e tudo fica meio difuso. Não penso que se possa diferenciar um capitalismo humano de outro inumano. Ambos são mercantilistas e a tudo impõem um preço. O lucro é o objetivo máximo. A propaganda nos estimula a ficar correndo atrás do consumo.


CC: Os valores humanos e sociais caros aos cubanos correm o risco de se perder com o retorno dos Estados Unidos à ilha”, diz o livro. Fidel é o último guardião desses valores de igualdade e solidariedade?

JMG: Hoje, não se pode resolver essa questão em um país isolado. A globalização é um fato. E o capitalismo global vai consumindo de maneira rápida a natureza, que não é renovável. A exploração humana sempre se renova, mas os mares, os glaciares, os bosques e o oxigênio não são renováveis.

E a irracionalidade da luta dos “mercados” leva a um consumismo com um único sentido de vender e acumu­lar em grandes monopólios a riqueza que se produz. Por isso penso que a solução para Cuba é igual à de todos os habitantes do planeta.


CC: Que chance há de dar continuidade, ou de retomar, a luta do Che a favor da verdadeira independência da América Latina?

JMG: Digo no livro. Sou otimista a longo prazo, mas pessimista a curto prazo. Nada vai ser resolvido de hoje para amanhã. A luta é longa e difícil. Mas o legado do Che e de outros atores de nossa história será fundamental para que tenhamos um projeto para o futuro. 


*Entrevista publicada originalmente na edição 902 de CartaCapital.

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