segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Por que os torturadores escondem os seus rostos?

Por que os torturadores escondem os seus rostos?


Katarina Peixoto

No dia 3 de dezembro, a revista Época publicou uma foto de Dilma Rousseff sendo interrogada por delinquentes oficiais depois de 22 dias de tortura. A foto é extraordinária sob muitos aspectos e um deles é a sua expressividade como história, como fato histórico. Uma jovem altiva mira o ou os interrogadores e dois dos delinquentes que participavam da barbárie esconderam o rosto para o fotógrafo (a história desse ato fotográfico mereceria por si só uma análise detida, não tanto da intenção do fotógrafo, mas da função desse tipo de foto, numa ditadura, em sessões de interrogatório). Dilma, como todos podem saber, foi torturada. Os torturadores de Dilma, não.

Essa foto tem sido objeto de algumas reflexões na imprensa brasileira. Uma delas, assinada pelo jornalista Moisés Mendes, do jornal Zero Hora (edição de 11/12/2011) chama a atenção por uma curiosa escolha de palavras. Estabelecendo uma relação entre o período histórico da ditadura e a foto de Dilma, o jornalista escreve:

“Éramos alienados, seu Mino. Jovens com o perfil de Dilma, comunistas, democratas ou anarquistas, que provocaram o confronto com o regime com suas próprias vergonhas, eram quase todos da minoria da militância estudantil. Só leve a sério quem aparecer contando vantagem, com histórias de resistência e bravura naquele 1970, se conhecer sua trajetória.

A foto de Dilma no interrogatório não é a síntese da juventude brasileira de quatro décadas atrás. É apenas a foto de uma moça destemida diante de dois homens torturados pela desonra”. (ver íntegra do artigo no final)


Torturados pela desonra? A cena dos dois homens escondendo o rosto com a mão assemelha-se muito à imagem de criminosos escondendo a face diante das lentes de uma máquina fotográfica ou de uma câmera de televisão. Considerando o período histórico e o contexto da cena, parece muito mais plausível que a tentativa de esconder o rosto tenha pouco a ver com um “sentimento de desonra” e tudo a ver com um gesto com um objetivo bem definido: não ser identificado. Os criminosos, em geral, não gostam de ser identificados.

A possibilidade de os torturadores sentirem-se envergonhados obviamente não está descartada; seria nada mais que uma possibilidade e, enquanto tal caberia averiguar. Uma das dificuldades para que isso ocorra é que, no Brasil, os torturadores nunca se disseram envergonhados, sequer assumiram o que fizeram e menos ainda foram punidos. Como não bastasse, os arquivos em que seus delitos estão registrados foram ou destruídos ou sonegados da cidadania brasileira e assim seguem, mesmo quase trinta anos após o fim da ditadura. A ocultação dos torturadores, dos seus atos e de suas personalidades de direito torna impossível averiguar a sua vergonha.
De fato, em termos jurídicos, um crime imprescritível (como o são os crimes contra a humanidade, dentre eles a tortura), uma vez não investigado, processado e punido se constitui como crime continuado. Assim, não há qualquer obstáculo jurídico ou lógico para se atribuir aos delinquentes que torturaram, entre outros, a atual presidente democraticamente eleita do Brasil o adjetivo que lhes é devido: criminosos contra a humanidade.

Aqui aparece um ponto que parece ser decisivo para as leituras da foto em questão. O Estado brasileiro, até hoje, não reconheceu que foi autor de crimes no período da ditadura. Não se trata apenas de reconhecer crimes contra o marco constitucional da época. Um governo eleito foi derrubado por alguns setores civis e militares, num movimento autoritário que feriu de morte o marco constitucional da época. Além desse crime, outros foram praticados: prisões arbitrárias e ilegais, demissões arbitrárias do serviço público e de empresas, perseguições, sequestros, torturas, assassinatos...Crimes cometidos por agentes de um estado de exceção.
Neste contexto, os interrogadores de Dilma escondem o rosto não porque estão “torturados pela desonra”, mas porque, objetivamente, pertencem a uma organização criminosa que tomou de assalto o Estado brasileiro. O fato de isso não ser reconhecido por um jornalista sério mostra o quanto o Brasil precisa acertar as contas com sua própria história.

Os crimes praticados por criminosos que até hoje insistem em esconder seus rostos continuam sem inquérito, sem processo, sem acusação, sem defesa, sem julgamento. Os torturadores não têm vergonha alguma pelo simples fato de que eles, institucionalmente, isto é, como membros do aparato de segurança e das forças armadas, jamais confessaram seus crimes.

E se o Brasil tivesse aberto os arquivos da ditadura civil-militar que se seguiu ao golpe de estado de 1964? E se as famílias dos supliciados e desaparecidos tivessem tido acesso aos corpos de seus entes familiares, bem como às condições de seu assassinato?

Os delinquentes que participaram do interrogatório da jovem Dilma Rousseff, depois de esta passar por 22 dias de tortura, por acaso foram investigados e padeceram como acusados sem inquérito, tiveram os seus corpos supliciados e as suas subjetividades invadidas pela brutalidade da violação física e mental de que se faz a tortura? Há alguma confissão inconfessa ao público, em que algum torturador teria incorrido?

As dificuldades e resistências em reconhecer que o Estado foi autor de crimes só reforçam a importância de uma Comissão da Verdade, que traga à luz os rostos que até hoje tentam se esconder e os fatos que até hoje permanecem escondidos. Há um jargão (distorcido) que costuma ser repetido à exaustão que consiste em dizer que “o Brasil é o país da impunidade”. As nossas prisões estão abarrotadas e todos sabem qual é o perfil de seus habitantes. A impunidade no Brasil aplica-se, sobretudo, aos chamados crimes de colarinho branco, mas a mãe de todas as impunidades é a que até hoje está encravada no coração do Estado. Os crimes cometidos pelo Estado brasileiro, como o da tortura, permanecem impunes e, mais do que isso, sendo reproduzidos em peças policiais obscuras que também escondem o rosto.
Por isso, também, seria importante que Dilma determinasse a abertura dos arquivos da ditadura militar. Mais do que pela autoridade moral de ter sido vítima da ação dos delinquentes torturadores e assassinos; mais do que pela sua subjetividade e decência, mais do que pelo respeito que ela tem pelos que ficaram pelo caminho, pelos que foram subtraídos, até em seus restos mortais, de seus familiares, ela pode abrir os arquivos. Para além da confusão gerada e reproduzida pela lei da anistia, é importante abrir esses arquivos para acabar com as mentiras históricas, até quando cometidas por gente séria, em conotações equívocas e que dão guarida à falsidade na descrição do que se passou.
(*) O jornal Zero Hora só disponibiliza os links dos textos de sua edição impressa para assinantes. Segue abaixo o artigo em questão:

11 de dezembro de 2011 | N° 16914


ARTIGOS

A foto de Dilma


Por Moisés Mendes

Enquanto alguém fotograva Dilma Rousseff naquele interrogatório da Auditoria Militar do Rio, você fazia o quê? Você que era jovem, com idade para duelar com a ditadura e cometer loucuras em nome da democracia ou de uma revolução, o que você fazia naquele novembro de 1970 enquanto Dilma encarava os militares com o nariz empinado e você nem sabia que Dilma existia?

Admita: você, seus irmãos, seus colegas, seus vizinhos não faziam quase nada. Eu confesso: tinha 17 anos, dormia escutando as baladas da Rádio El Mundo de Buenos Aires e acordava pensando no milagre que eliminaria minhas espinhas da cara. Como nos empurraram para a alienação naquele 1970, em Alegrete ou em Porto Alegre!

E agora você, que tem hoje a idade de Dilma em 1970, que tem 22 aninhos, que já postou mais de mil fotos suas no Facebook: você já tem uma foto síntese como aquela de Dilma? Tem a imagem que revele sua alma, que dispense legendas, que esteja para você como a Mona Lisa está para todas as mulheres e como a Guernica de Picasso está para todas as guerras? Você tem uma imagem que tenha condensado tudo de você?

Se ainda não produziu a foto reveladora de sua presença neste mundo, não se penitencie. A foto de Dilma é única. Não acredite na conversa de que todos os jovens daquele 1970 enfrentavam a ditadura com o olhar de laser de Dilma. Os jovens de 1970 estavam anestesiados por quatro anos de regime militar, pelo Tri no México, pela censura.

A edição número 115 de Veja, de 18 de novembro daquele 1970, trazia esta capa: Em quem os jovens votaram. A reportagem tratava de uma pesquisa com mil jovens de 18 a 22 anos, de São Paulo, Rio, Porto Alegre e Recife, que votavam pela primeira vez no dia 15 daquele mês para eleger senadores e deputados.

Algumas revelações da pesquisa: 52% não sabiam por que os militares fizeram o golpe de 64; outros 25% disseram que o golpe evitara o comunismo; 71% achavam que o povo estava feliz com a situação do país; 51% dos jovens gaúchos votariam na Arena (o partido do governo) e 44% no MDB (da oposição); e 55% de todos os pesquisados no país votavam “por obrigação” (só 10% entendiam que votar era um direito). E quem tinha sido Oswaldo Aranha? 83% não tinha a menor noção. E qual seria a nota para o presidente Médici? Um 8,4. E assim por diante.

Na eleição, de 70, o MDB levou uma lambada de dois votos por um da Arena. A Arena elegeu 41 senadores e 223 deputados federais. O MDB, apenas seis senadores e 87 deputados. No Estado, Daniel Krieger e Tarso Dutra, arenistas, foram eleitos senadores com o dobro de votos dos emedebistas Paulo Brossard e Geraldo Brochado da Rocha.

Foi uma goleada do partido do governo, com o voto faceiro dos jovens. Vão dizer que havia a campanha do voto nulo, que o país ainda estava confuso, que faltava coesão ao MDB, aos democratas e às esquerdas. Nessa confusão, os jovens eram, como escreveu Mino Carta, o diretor de Veja, “pouco politizados, muito práticos e eventualmente ingênuos”.

Éramos alienados, seu Mino. Jovens com o perfil de Dilma, comunistas, democratas ou anarquistas, que provocaram o confronto do regime com suas próprias vergonhas, eram quase todos da minoria da militância estudantil. Só leve a sério quem aparecer contando vantagem, com histórias de resistência e bravura naquele 1970, se conhecer sua trajetória.

A foto de Dilma no interrogatório não é a síntese da juventude brasileira de quatro décadas atrás. É apenas a foto de uma moça destemida diante de dois homens torturados pela desonra.


Katarina Peixoto é doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: katarinapeixoto@hotmail.com

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