A Argentina e alguns argentinos, segundo Washington
Eric Nepomuceno, de Buenos Aires
O título do livro tende ao óbvio: “ArgenLeaks”. Foi lançado pela Sudamericana em setembro passado e passou a vender como água no deserto. Seu autor, Santiago O’Donnell, confessa que, por mais que esperasse alguma repercussão, jamais supôs que o livro galgaria a lista dos mais vendidos. Organizado em ordem alfabética, ‘ArgenLeaks’ traz, ao longo de suas 360 páginas, uma seleção do material que consta dos arquivos do Wikileaks sobre a Argentina. Ele foi o único jornalista do país a ter acesso a 2.150 telegramas confidenciais que a embaixada dos Estados Unidos em Buenos Aires despachou para Washington nos últimos anos. Isso corresponde a mais ou menos um por cento do material argentino que está nos arquivos do Wikileaks.
Claro que há, nesses telegramas confidenciais, um amontoado de baboseiras, de intrigas que carecem de verdade, que muitas vezes tomam como certas informações que não passam de rumores desacreditados.
Procurando um difícil equilíbrio, o autor do livro trata de esclarecer esses desencontros e essas falácias. Mas há informação valiosa, pelo menos para que se saiba quem é quem na política argentina.
A prepotência de certos setores da sociedade argentina é exemplar. Há relatos de reuniões de altos executivos em que essa prepotência surge nítida e, diante dos poderosos, se transforma rapidamente em subserviência. Essa transformação, ao ser relatada com certo ufanismo, revela a ingenuidade dos informantes de Washington. Há relatos de negociatas, de mesquinharias que muitas vezes se transformam em confrontos com sérias conseqüências para o país. Muita gente fica mal parada em sua subserviência diante dos símbolos da potência global. Lá estão altos executivos do jornal Clarín, tratando de ensinar, aos diplomatas do país que mais golpes de Estado promoveu ao longo da história da humanidade, como se deve tratar um governo hostil. Lá estão outros jornalistas dispostos a disputar cada milímetro do espaço destinado ao de cão mais fiel aos interesses de Washington.
E estão políticos de todas as cores disputando um espaço imaginário junto do verdadeiro poder. O atual vice-presidente da República e presidente do Senado, Amado Boudou, que foi poderoso ministro de Economia do primeiro governo de Cristina Kirchner, é descrito, em determinado telegrama enviado pela embaixada norte-americana em Buenos Aires, como alguém que se diz “descaradamente pró-Estados Unidos” e se mostra defensor de uma reaproximação com o FMI. O texto do telegrama é tão confuso que não deixa espaço para que se saiba se isso foi efetivamente dito e mostrado, ou se o que existe é apenas o esforço do informante para melhorar, do seu ponto de vista, o perfil do personagem.
Mais nítido é o retrato de Maurício Macri, atual prefeito de Buenos Aires e figura mais acalentada pela direita para ser seu grande pilar nas eleições presidenciais de 2015: “Somos o primeiro partido pró-mercado e pró-negócios em oitenta anos da política argentina, e estamos prontos para tomar o poder”, disse ele. Não era o primeiro partido pró-qualquer coisa em oitenta anos, e tanto não estava pronto para tomar o poder que sequer se animou a disputar a presidência contra Cristina Kirchner. Mas a embaixada norte-americana em Buenos Aires até que gostou dele, e de seus rompantes.
Prementes pedidos de ajuda enviados por um angustiado Muammar al-Kadhafi ao então presidente Carlos Menem revelam, já em 1995, indícios de fragilidade em seu regime. Um rotineiro e impertinente questionário que o Departamento de Estado faz circular entre as embaixadas norte-americanas, inquirindo os governos em relação a Cuba, mostra quais os requisitos que os países devem cumprir (a propósito: a Argentina de Nestor e, depois, de Cristina Kirchner, não cumpriu nenhum) para ajudar a sufocar o governo da ilha caribenha.
Tráfico de drogas, supostas bases do terrorismo islâmico na região, relações com países considerados perigosos – Irã, Iraque, Venezuela –, eventuais desvios de personalidade nas esferas do poder, intrigas, maledicências, rumores, especulações, tudo isso permeia as páginas de “ArgenLeaks”.
No final da leitura, restam algumas certezas. Primeira certeza: os informantes das embaixadas norte-americanas escrevem bem, mas apuram mal as informações que transmitem. Acreditam em qualquer patacoada que interesse ou possa interessar aos seus superiores. Segunda certeza: há uma palpável atmosfera de subserviência de quase todos os personagens diante dos informantes. Por mais que se desconfie dos telegramas, há que se admitir que algo de servilismo deve existir.
Terceira certeza: para o poder imperial, pouco importa o que é verdade e o que é mentira. Importa o que interessa.
Outra certeza: tanto os serviços de inteligência como os analistas políticos que servem ao governo dos Estados Unidos são, em última instância, primários. Tanto assim, que telegramas confidencias são facilmente filtrados ao mundo, e o que mais revelam, além de uma prepotência imperial conhecida, é uma inacreditável capacidade de acreditar em bobagens e levá-las a sério.
Muitas certezas mais nascem da leitura de “ArgenLeaks”. A principal delas, talvez, seja a seguinte: por mais que passe o tempo, Washington não aprende a entender a América Latina. A entender o mundo.
Entende, apenas, que continua exercendo um domínio que talvez já não exista. E o mundo, por mais que diga o contrário, continua agindo como se esse poder existisse.
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