quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O tão detestado e o tão querido

Dois textos do jornalista Paulo Nogueira,  que já foi redator chefe da Veja e hoje escreve esporadicamente  para a   revista Exame, ambas da editora Abril .
 
São, a meu ver, textos - um sobre o Serra e o outro sobre o Lula - que retratam com fidelidade as caracteristicas de ambos.


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Por que Serra é tão detestado?


Me chamou a atenção a alegria com que muita gente recebeu as controvertidas denúncias contra Serra no livro A Privataria Tucana. Me parece que para muitos a principal virtude do livro consiste em atacar Serra.

É irônico vê-lo no papel de privatizador, ele que sempre pareceu contrariado com as privatizações e que fingiu  jamais se identificar com o ideário neoliberal. Serra seria o clássico ‘dirigista’, alguém que acha que o país deve ser guiado de cima para baixo por um Estado forte. Haveria, aí, uma comunhão de idéias entre ele e o que foi o mais esclarecido presidente nos anos militares, Ernesto Geisel.

Os jornalistas não gostam de Serra por um motivo óbvio: se puder, ele liga para os donos para tentar suspender uma reportagem que ele suspeite que não o tratará como herói. Caso saia um artigo que o irrite, ele também responde com ligações privadas para os donos ou os chefes do autor. Até em bobagens. Uma vez, quando trabalhava na Exame, dei a um texto sobre mais uma derrota eleitoral de Serra um título extraído de um poema de Gonçalves Dias: “Ainda uma vez, adeus”. Meu chefe na época, Antonio Machado, me avisou que Serra tinha ligado para se queixar de mim.

Muitos jornalistas atribuem sua demissão a pedidos de Serra. Em minha carreira, só vi alguém com o mesmo perfil: Delfim Netto, o czar da economia em boa parte do regime militar. Os jornalistas sabíamos que Delfim não hesitava em pedir cabeças quando contrariado com algum texto. Sabemos, então, por que Serra é rejeitado pelos jornalistas. E pelos demais?

Bem, Serra parece reunir todas as características que fazem as pessoas desgostar de alguém. Tem um claro ar de superioridade, sem que haja razões para isso. Serra define-se um economista, mas jamais produziu um livro original, com idéias econômicas inovadoras. Sua arrogância se sustenta muito mais num caráter ególatra do que em bases de realidade, e isso incomoda duplamente. Se é difícil suportar um gênio difícil, pior ainda é aturar uma pessoa normal que se comporta como gênio.

Serra é, também, invejoso. Ele não participou da equipe que fez o Plano Real, e por isso jamais reconheceu nele a importância histórica de devolver aos brasileiros uma moeda que não se corroía continuamente.

Também não é grato. Em 2002, em sua campanha fracassada, jamais deixou claro aos brasileiros que se alinhava com o homem que viabilizara sua candidatura: Fernando Henrique Cardoso. Compare com a atitude de Dilma perante Lula. Dilma, numa cartinha recente a FHC, disse muito mais sobre a importância dele como presidente do que Serra em toda uma vida em que ambos estiveram na mesma trincheira.

A todos os atributos negativos, Serra acrescentou na última campanha um outro: a hipocrisia. Ele quis parecer um homem do povo, alguém que gosta de estar no meio das pessoas numa feira comendo pastel e falando do último capítulo de novela. Não colou.

Nem vou remeter ao farisaísmo presente na patética tentativa de transformar uma bolinha de papel num atentado na última campanha. Numa hipótese benevolente, isso foi fruto ao mesmo tempo do marqueteiro de Serra e de seu próprio desespero diante das pesquisas que já o davam como morto. Foi um horror, é verdade, mas com atenuantes. Por isso passemos por cima do falso atentado. Fiquemos com a essência: antipatizar com Serra é uma das raras coisas comuns aos brasileiros.

Dizer que o brasileiro não sabe votar é um clichê. Mas não ter levado Serra ao Planalto por duas vezes é uma evidência de que o brasileiro sabe pelo menos em quem não votar.


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Por que Lula é tão querido

 “Difícil não é subir”, escreveu o historiador francês Jules Michelet. “Difícil é, subindo, você permanecer o mesmo.”
Acho que essa frase explica a razão pela qual todos gostam de Lula, excetuada uma parcela retrógrada da classe média que tem preconceito contra pobres e nordestinos, sobretudo se eles ascendem.
Escrevi, no artigo anterior, sobre o oposto: por que Serra é tão amplamente detestado. Decidi ir para o inverso. Pessoalmente, tenho por Lula uma admiração moderada e distante. Entrevistei-o algumas vezes no começo dos anos 1980, quando os metalúrgicos do ABC sob seu comando articulavam as primeiras greves desde 1964. Nessa época, eu era repórter de economia da Veja. Achei-o vivamente inteligente: jamais confundi QI com a aquisição de diplomas.
Raras vezes votei em Lula. A ocasião em que tive mais convicção para votar nele foi quando seu adversário era Fernando Collor de Mello. Tive, na juventude, alguns problemas com o PT. Meu pai disputou a presidência do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo no final da década de 1970 contra uma chapa formada por pessoas que depois estariam no PT. O candidato rival de meu pai era Rui Falcão, de quem guardo uma imagem lhana e delicada. Jogou limpo e perdeu com dignidade. Mas muitos dos jornalistas que apoiavam Rui me pareceram arrogantes e grosseiros nas assembléias em que se debatia a greve. Alguns chamaram meu pai de “a voz dos patrões” porque ele antevira com presciência as enormes dificuldades que a greve enfrentaria para funcionar. Daí meu incômodo com o PT, que seria fundado em 1980, pouco depois da eleição do Sindicato de Jornalistas vencida por papai.
Lula, talvez por não ser um intelectual, jamais foi o típico petista que vê (ou via) o mundo de cima para baixo. Num determinado momento, muitos suspeitaram de que ele seria manipulado pelos intelectuais que o cercavam e o educavam. O tempo mostrou que isso jamais aconteceria. Lula, por sua extraordinária liderança, sempre comandou seus professores. Em nenhum momento foi teleguiado.
À medida que foi ganhando estatura, mexeu na aparência, mas não no conteúdo. Aparou a barba, colocou paletó e gravata. Mas não se vendeu. No começo de minha carreira, circulou uma história que, verdadeira ou não, mostra como Lula era visto. Uma montadora, no final do ano, teria deixado um carro na frente da casa de Lula como um presente. O objetivo era conquistar a aliança de Lula para que as reivindicações dos metalúrgicos fossem contidas. O carro, segundo a história, foi prontamente devolvido.
Lula é simples sem ser simplório. Fala como o brasileiro das ruas genuinamente. Se numa campanha vai a uma feira comer pastel com os eleitores, parece que está em seu habitat. Com Serra é o oposto: vê-se que ele, como o general Figueiredo, o último presidente militar, não gosta muito do “cheiro do povo”. Serra, para o brasileiro médio, jamais será o “Zé” de suas campanhas.
Lula, sob contínuos ataques da mídia no final de seu primeiro mandato, não vergou – o que é um sinal de força interior. Rumores afirmavam que ele estaria bebendo cada vez mais, e a ponto de renunciar ou cair como Collor. Vistas as coisas em retrospectiva, tais rumores soam como piada.
Um estadista tem que ter musculatura para suportar estoicamente as agressões. Conta-se que Fouquet, revolucionário francês, dormiu na sessão da Convenção em que era julgado e corria o risco de ser condenado à guilhotina.
No poder, Lula foi essencialmente o mesmo de sempre. Mudou o foco da administração para o combate à miséria – um ato que lhe dá um lugar de honra na história do Brasil. Ao mesmo tempo, foi pragmático o bastante para ajudar as empresas brasileiras – sobretudo as exportadoras. Jorge Paulo Lehman contou uma vez numa conversa da qual participei que Lula pegou o telefone e ligou para a embaixada brasileira em Buenos Aires ao saber que a Anbev de Leman enfrentava dificuldades burocráticas na Argentina. “Em situações parecidas, o Fernando Henrique dizia que ia resolver o problema e depois não fazia nada”, disse Leman. Vi também uma vez o então presidente da Vale do Rio Doce Roger Agnelli contar uma história parecida.
Lula subiu sem deixar de ser o mesmo, uma coisa rara como dizia Michelet. Por isso, acima de todos os outros motivos, é tão amado — e é também em consequência disso sobretudo que milhões de brasileiros, entre os quais me incluo, fecham o ano torcendo para que ele se recupere do câncer na garganta tão usada para defender os trabalhadores.

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