quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O soldado Manning e o problema da lealdade

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Jornal do Brasil, 07/11/2011
 

O soldado Manning e o problema da lealdade


Por Mauro Santayana


Os Estados Unidos se preparam para o julgamento do soldado Bradley Manning, que entregou ao WikiLeaks a correspondência diplomática secreta de seu país. A discussão transcende as leis penais, para situar-se na definição ética do que é lealdade e do que é traição.

É difícil estabelecer o ato de traição, sem que se identifique profundamente as razões do traidor e do traído, associadas aos sentimentos de um e de outro. Quando o traído é uma pessoa, é mais fácil entender as razões ou desrazões morais do ato. As traições amorosas se situam nesse campo. Até faz pouco tempo, em muitos países e no Brasil, o adultério era punido pela lei, mas a realidade superou o Código Penal. Só as sociedades teocráticas, como as islamitas, mantêm o rigor da lei, mas, no caso, só contra as mulheres.

Quando se trata da traição às comunidades nacionais, a situação é mais difícil.

As traições pessoais, menos aquelas que envolvam dinheiro, e podem ser levadas aos tribunais, são resolvidas no mesmo plano. Os traídos perdoam ou não os traidores; os que se sentem mais feridos alimentam o ódio ou se refugiam no desprezo ao traidor. Mas quando se trata da traição às comunidades nacionais, a situação é de análise muito mais difícil.
O que separa o herói do traidor? Borges tem um conto muito interessante sobre o tema, com hipotética situação na Irlanda do século 19, que Bertolucci aproveitou, atualizando-o para os tempos de Mussolini, com o filme A estratégia da aranha. O escritor não toma partido, e deixa a dúvida se Fergus Kilpatrick fora herói ou traidor, mas deixa entender que na face do herói podem estar as marcas do traidor — ou o contrário.

Será traidor aquele que se orienta por sua consciência, e considera necessário sacrificar os planos de ação a fim de evitar o sacrifício inútil de vidas? Como estabelecer essa diferença dramática entre o traidor e o herói?

Tomemos dois casos conhecidos, o de Calabar, que ficou ao lado dos holandeses, e o de Tiradentes. Os defensores da memória de Calabar afirmam que, para o Brasil, melhor teria sido a colonização holandesa. A história lhes retira a razão: se os holandeses houvessem expandido sua presença a todo o país, o nosso destino teria sido, provavelmente, o da Indonésia. E outros seriam os habitantes de nosso país, não exatamente nós mesmos.

Tiradentes era suboficial da Cavalaria da Tropa Paga das Minas. Servia, assim, às forças armadas da Coroa Portuguesa. Para os julgadores de seu tempo, ele traíra a rainha de Portugal e os seus companheiros de farda, ao participar da Conjuração que tinha como objetivo final a independência das Minas e do Brasil, e, como objetivo imediato, a prisão e a possível execução do governador da Capitania, o visconde de Barbacena.

Poucos foram os habitantes da Capitania que, naquele momento, o viram como herói. Além dos intelectuais, sacerdotes e comerciantes que participaram da Conspiração, só lamentaram, no momento dos fatos, sua prisão e sua morte, com os requintes de crueldade física e moral conhecidos, homens do povo, que dele se lembravam em sua pregação nacionalista em suas viagens pelos sertões. O reconhecimento público do heroísmo de Tiradentes e de sua profunda razão ética na busca da independência, como realização da solidariedade nacional, só viria muitos anos depois.

O primeiro ato de reabilitação se deve a José Benedito Ottoni, pai dos irmãos Ottoni que, logo depois da Independência, e como vereador em Vila Rica, sugeriu e obteve a retirada do padrão de ignomínia que havia sido erguido na cidade, como repúdio à “traição” de Tiradentes. Recorde-se que a cabeça do Alferes, que deveria permanecer no alto desse poste, “até que a consumisse o tempo”, foi retirada de lá, poucos dias depois de colocada, por mãos até hoje desconhecidas e corajosas, e enterrada em algum lugar de Ouro Preto, não se sabe onde.

No raciocínio dos partidários de Portugal, o herói fora Joaquim Silvério dos Reis, que mantivera (pouco importa conhecer as suas razões) fidelidade à rainha, em carta manuscrita de denúncia da conspiração, enviada ao governador da Capitania. A reabilitação oficial da memória de Tiradentes viria, com a iniciativa de Mário Soares, que, presidente de Portugal — e em cerimônia no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte — decretou o fim do labéu de ignomínia que, imposto pelo Estado monárquico português, ainda pesava sobre o Alferes e seus descendentes.

Uma visão pragmática da História mostra que os heróis estão sempre no campo vitorioso, ainda que a vitória, como a liberdade que Tiradentes pretendia, tardasse no tempo. Os americanos têm um traidor exemplar, na figura de Benedict Arnold, que desertou das tropas revolucionárias, passando ao inimigo britânico. Os norte-americanos não conseguiram prendê-lo e enforcá-lo, mas os próprios britânicos, passada a sua utilidade, deixaram-no morrer quase à míngua em Londres. É certo que, se os britânicos houvessem sido vitoriosos, o busto de Arnold estaria em algum lugar de Londres, como se encontram as estátuas de Nelson e Wellington.

Bradley traiu quem? O governo belicista dos Estados Unidos, servidor do famoso Complexo Industrial-Militar, denunciado pelo presidente Eisenhower, herói da 2ª Guerra Mundial, ou a nação americana que, em tese, o julgará? Traiu os seus companheiros de farda, ou um sistema de poder mundial responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas inocentes, nos países mais pobres do mundo, mediante as guerras de conquista, os golpes de Estado, como os que sofremos na América Latina?

Quem trai, trai sempre em troca de algum benefício. Bradley não agiu em benefício de si mesmo, desde que não recebeu qualquer compensação pelos seus atos, nem se pode dizer que tenha passado as informações de que dispunha, diretamente, para os “inimigos” escolhidos pelo governo de seu país.

Um juízo rápido, provavelmente superficial mas indicado pelas informações disponíveis, pode identificar Bradley como um jovem inquieto, preocupado com as crueldades da guerra de que participava, com a segurança real e a felicidade de seu povo. Em favor da nação — essa é a ideia que se impõe no exame de seu caso — ele se colocou contra o Pentágono e contra a diplomacia cínica, hipócrita e prepotente de seu governo.

De acordo com os observadores, ele poderá ser condenado à prisão perpétua, mas, provavelmente, um dia, seus atos serão vistos como heróicos.

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