domingo, 4 de dezembro de 2011

Devolver o medo aos mercados

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Sábado, 03 de Dezembro de 2011

Devolver o medo aos mercados


Por Saul Leblon



Bastou um ensaio de intervenção coordenada de agentes estatais - bancos centrais são isso, ou deveriam ser - sobre o mercado para refrear um pouco o apetite dos capitais especulativos no fragilizado ambiente do euro. Na 6ª feira,manadas ariscas já ensaiavam um tímido retorno às cocheiras, comprando dívida pública de países semi-insolventes, em troca de juros levemente suavizados.

A ação episódica dos BCs não deve alimentar ilusões. É mais uma evidência da gravidade da crise européia do que uma resposta efetiva a sua rigidez estrutural. Mas há algo de duradouro a se reter desse episódio. "Os capitais precisam ter medo ou enlouquecem", costuma dizer Martim Wolf, colunista do Financial Time, arguto o suficiente para não menosprezar as fragilidades do sistema.
Embora os fundamentalistas pensem o oposto, equiparando a ação estatal a uma usina de ineficiências, a crise tem sido pedagógica em demonstrar que sem controles os mercados podem destruir o crescimento e a própria democracia. A supremacia das finanças desreguladas nos últimos 30 anos reflete um duplo movimento. De um lado, evidencia um impulso estrutural do capitalismo que engendra e cobra uma concentração crescente de capitais para prover sua própria expansão, fortalecendo intrinsecamente a musculatura dos bancos e das finanças em geral.

A hipertrofia dessa funcionalidade, a ponto de capturar o Estado tornando-se um algoz da sociedade e da política, não é uma espiral mecanicista. Trata-se de um desdobramento da série de derrotas, recuos, rendições e equívocos computados na trajetória das forças de esquerda nas últimas décadas, sobretudo dos anos 80 em diante, mas que persiste nos EUA e na Europa.

A revogação de legislações restritivas às finanças, ao lado de renúncias fiscais e isenções tributárias em favor dos endinheirados, deixariam os Estados, seus governantes e governados reféns de um padrão de endividamento ao mesmo tempo explosivo e imobilizador. A hegemonia das finanças desreguladas e o império do dinheiro a juros subordinaria o cálculo econômico, o Estado e a democracia a uma lógica irresponsável e incompatível com a estabilidade necessária aos grandes ciclos de desenvolvimento econômico e humano. A irrupção de bolhas rentistas é um apanágio dessa usina de superprodução de capitais descolados da reprodução real da riqueza. Um dos abrigos de proteção para sua natureza fictícia é o endividamento público que condensa a sinergia entre isenções tributárias neoliberais e a captura rentosta dos fundos da sociedade na forma de juros sobre juros. O desgoverno atual na zona do euro tem sua origem nessa lógica, agravada pela ação de autoridades que, diante de sucessivos abalos sísmicos, dobram a aposta na proficiência das fendas geológicas para prover a redenção das contas públicas. Arrocho ortodoxo para alimentar o metabolismo do capital fictício tem sido a resposta da 'austeridade' conservadora.

O movimento de socorro ensaiado agora pelos bancos centrais, embora tímido, gerou recuos no apetite rentista que comprovam a urgente necessidade de se explorar um antídoto até agora desprezado na equação da crise: a intervenção pública disciplinadora e estatizante sobre o capital financeiro. A única capaz de subtrair espaços à incerteza,devolvendo o manejo e a gestão da economia e da dívida pública às razões de Estado. No limite, trata-se de restituir aos mercados o medo, a disciplina e a punição, sem os quais enlouquecem. Neste caso, quem sofre na camisa-de-força, como se tem visto, é a democracia.


O fascismo de mercado

 

Gilson Caroni Filho

A crise econômica capitalista, em especial nos Estados Unidos e na zona do euro, começa a dar lugar a golpes e contra-golpes entre os seus principais atores. Entre eles o receituário apresentado liturgicamente desde os anos 1990. As reuniões de cúpula que os chefes de governo ocidentais realizam não se caracterizam pelos seus aspectos resolutivos, mas pelo vazio de suas proposições.

Ao propor que os orçamentos dos países sejam aprovados primeiro pela UE, antes de ir para seus Parlamentos - com punição a quem não cumprir metas de redução de dívida e déficit - a chanceler alemã Ângela Merkel deixa claro que soberania nacional é um conceito em desuso, uma velharia a ser removida. Frente à crise imposta pelos princípios liberais globalizantes, notadamente o "salve-se quem puder" e o "que sobreviva o mais capaz”, que apareciam como mantras nos melhores manuais de desregulamentação, a única saída é a "fuga para frente" proposta pelos neoliberais radicais. Deixando governos de pés e mãos amarrados, a falsa solução passará pela perda de prerrogativas governamentais de conceber e executar políticas econômicas que atendam aos legítimos interesses dos países e dos povos.
Na verdade, chegou-se a fórmulas gerais que podem ser interpretadas de várias maneiras e que, de qualquer forma, não envolvem compromisso algum com qualquer esfera que não seja a do mercado. Insistir nas privatizações do que resta de estatal (quase nada), em ajustes fiscais, e no maior enfraquecimento do Estado, é consolidar o poder do FMI, do Banco Mundial, das instituições financeiras internacionais e a chantagem das agências de classificação de risco.

Todo cuidado é pouco para não tropeçar nas palavras e escorregar nos conceitos. Mas essas transformações e essas metamorfoses significam um "retorno" ao império das leis do funcionamento da economia mercantil- capitalista, temporariamente represadas por obra e graça da rebelião democrática do imediato pós-guerra, que ensejou a Grande Transformação.

Como recordou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, "em sua essência, as práticas do Estado intervencionista e do Bem-Estar buscaram, por meio da aplicação política de critérios diretamente sociais, encontrar soluções para os problemas de satisfação das necessidades humanas e da vida decente para a maioria, negando, assim, as condições de existência impostas ao cidadão pela "ratio" do capital, cujo único propósito é acrescentar o seu valor."
A vitória do reformismo liberal fez recuar as tentativas de domesticar a mercantilização universal e a concorrência sem quartel. Na Europa, a social-democracia passa a ocupar uma posição de centro-direita rasgando a máscara da "terceira via", que fez grande sucesso e gerou expectativas em toda a esquerda do continente. Antes mesmo da crise do euro, os serviços públicos , como saúde, educação e transporte, conheceram uma considerável piora. Ainda no final do século passado, críticos de esquerda acusavam o então primeiro-ministro britânico Tony Blair de impor ao Reino Unido um “thatcherismo” com rosto humano.

Quando o capital financeiro estabelece sua supremacia, a cidadania é suprimida. Os sistemas de crédito e os dispositivos do mercado passam a se encarregar dos desígnios despóticos do capital sobre a massa de trabalhadores e os países mais fracos. É isso ao que estamos assistindo no sul da Europa. Algo que, guardadas as devidas proporções, vivemos na América Latina durante duas décadas. Por meio de disciplinas e sanções, sempre legitimadas na grande mídia, o fascismo de mercado se instala.
Fora da política não há salvação. Como bem sabemos por aqui.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil

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