Noticiário internacional: uma extensão da guerra interna
Por Saul Leblon
A ONU confirmou o uso de gás sarin num ataque a um subúrbio de Damasco no dia 21 de agosto.
Essa é a conclusão do relatório divulgado nesta 2ª feira pelo secretário-geral da organização, Ban-Ki-moon.
As manchetes farão desse diagnóstico uma feérica condenação do regime de Damasco.
Mas entender o que se passa por trás da nuvem tóxica que pode ter matado cerca de 1.500 pessoas, num conflito que já custou 100 mil vidas, pressupõe não se ater às manchetes da mídia conservadora.
Nem ao que diz Ban-ki-moon – ele, não o relatório da ONU.
O documento não define os responsáveis pelo ataque, embora o secretário-geral ensaie uma espécie de domínio do fato contra o regime de Damasco.O recurso, como se vê, é multiuso.
Ele ordena também manchetes que há quase dois anos antecipam o mesmo veredito. A saber:
a) que Bashar Al Assad é o único responsável por uma violência desordenada, que já provocou o deslocamento bíblico de dois milhões de pessoas para fora da Síria; b) e o deflagrador da guerra civil na qual os seus opositores reúnem apoios que incluem desde os EUA, passando por governos regionais contrários ao Irã (Teerã é o principal aliado de Assad, depois de Moscou) até a Al Qaeda.
O brasileiro Paulo Sergio Pinheiro, comissário da ONU que investiga crimes contra os direitos humanos na Síria há mais de dois anos, tem uma opinião diferente.
Ele concedeu uma profilática entrevista à Folha nesta 2ª feira, retificando um 'consenso' do noticiário para o qual se empenham colunistas do próprio jornal.
Fatos, segundo Paulo Sergio Pinheiro:
a)‘Vou dizer no Conselho de Direitos Humanos que não há dúvidas de que armas químicas foram utilizadas. Não sabemos por quem, nem efetivamente onde”.
b)“As análises estratégicas por parte de vários países, os quais não vou nomear, foram profundamente enganadas e enganosas (...)porque alguns interesses externos apostam na destruição do Estado sírio”.
c)“Há um desconhecimento profundo sobre a Síria. Apesar de ser um regime autoritário, era uma sociedade que funcionava, onde o fundamentalismo não prevalecia, os cristãos se sentiam à vontade. A Síria tinha esse contraste: um regime autoritário, mas uma sociedade razoavelmente aberta”.
d)“Os grupos rebeldes, por outro lado, estão divididos. Para aumentar a confusão, há a cereja do bolo, os grupos ligados à [rede] Al Qaeda. Ainda tem as outras minorias, os cristãos de diferentes procedências, e 500 mil refugiados palestinos (...)não há vitória possível. A única saída é uma negociação política”.
e)“Há muitas forças apoiando os rebeldes, que não têm interesse nessa negociação”.
f) “Houve uma estratégia profundamente equivocada de anunciar a cada semana que Assad iria cair (...) além do poderio militar, ele tem enorme apoio na opinião pública. Se houvesse um Datafolha na Síria hoje, mais de 50% estariam a favor dele”.
Quantas vezes você leu ou ouviu sobre isso antes, de um conflito que se arrasta há dois anos?
A manipulação do noticiário internacional é um socavão intocado do jornalismo conservador.
Escuro e embolorado, ele desautoriza ilusões no fim da guerra fria.
O muro caiu; mas as classes continuam de pé. E a mídia oligopolizada está onde sempre esteve.
Editorias de internacional fazem da guerra externa uma extensão do combate interno.
O grosso da munição vem do paiol formado pelas agências noticiosas norte-americanas, que disseminam as estacas ordenadoras do jornalismo embarcado.
A “Reuters é a pior entre as piores”, hierarquizou, em julho deste ano, o jornalista Glen Greenwald.
Responsável pela divulgação de informes sigilosos da espionagem norte-americana no mundo, revelados pelo ex-agente Edward Snowden, Greenwald teve uma entrevista distorcida pela agência.
Há agravantes locais.
Fustigados pelos custos, os veículos brasileiros, em geral, desfizeram-se de seus correspondentes ou rebaixaram o grau de exigência em relação aos remanescentes.
Nomes com independência crítica e visão ecumênica foram substituídos por onívoros do noticiário direitoso disponível nas respectivas praças.
A fragilidade financeira, em contrapartida, impede que a maioria dos veículos progressistas possa contrastar, in locu, o teor enviesado daquilo que emite o martelete conservador urbi et orbi.
O ônus é significativo.
Em 2010, o governo Lula foi execrado pelo jornalismo americanófilo, por conta de uma tentativa ,conjunta com a Turquia, de evitar sanções da ONU contra o Irã.
Washington denunciava a intenção bélica do programa nuclear iraniano, que Teerã afirmava ter objetivos pacíficos.
Lula perdeu a confiança em Obama ali. Três anos antes de Dilma.
O democrata teria encorajado as gestões em busca de um acordo negociado com o Irã, para depois deixar o Brasil e a Turquia dependurados na brocha.
A cobertura maciça da mídia nativa comprou a versão norte-americana.
Execrou o Irã e mostrou reduzido empenho em investigar os contornos reais do problema.
Fez do limão uma salmoura.
Para corroer a credibilidade do governo brasileiro.
Às vésperas da disputa presidencial de 2010, manchetes pulsavam o ganido do vira-lata.
Aquele rodriguiano, bebendo água empoçada em meia cuia de queijo Palmira.
Não foi um ponto fora da curva.
Na invasão do Iraque, em 2003, a adesão local à tese das ‘armas de destruição em massa’ foi esférica e coesa.
Mais recentemente, a violação de computadores da Petrobrás e da correspondência eletrônica da Presidência da República pela CIA, significativamente não inspirou uivos nem latidos de protestos.
Não era a pauta das agencias norte-americanas.
Qual o preço desse alinhamento cego?
Fomentar a prostração acrítica é uma especialidade desse jornalismo.
O conjunto da obra insemina certos vírus de consequências políticas devastadoras.
O conformismo diante da destruição dos Estados nacionais, por exemplo.
“As análises estratégicas por parte de vários países, os quais não vou nomear, foram profundamente enganadas e enganosas (...)porque alguns interesses externos apostam na destruição do Estado sírio”, enfatizou Paulo Sérgio Pinheiro, na entrevista citada.
Seja pelo elogio às virtudes do desmonte neoliberal, como se tentou e se insiste por essas bandas; pela demonização de governos progressistas; ou pelo endosso a guerras fratricidas em regiões onde os Estados são ontologicamente frágeis (frutos artificiais do legado colonial), esse é um dos desdobramentos explosivos da metralhadora giratória do jornalismo da guerra fria.
Que continua a operar azeitado, nas editorias internacionais.
Mirando o ‘inimigo’ interno.
Essa é a conclusão do relatório divulgado nesta 2ª feira pelo secretário-geral da organização, Ban-Ki-moon.
As manchetes farão desse diagnóstico uma feérica condenação do regime de Damasco.
Mas entender o que se passa por trás da nuvem tóxica que pode ter matado cerca de 1.500 pessoas, num conflito que já custou 100 mil vidas, pressupõe não se ater às manchetes da mídia conservadora.
Nem ao que diz Ban-ki-moon – ele, não o relatório da ONU.
O documento não define os responsáveis pelo ataque, embora o secretário-geral ensaie uma espécie de domínio do fato contra o regime de Damasco.O recurso, como se vê, é multiuso.
Ele ordena também manchetes que há quase dois anos antecipam o mesmo veredito. A saber:
a) que Bashar Al Assad é o único responsável por uma violência desordenada, que já provocou o deslocamento bíblico de dois milhões de pessoas para fora da Síria; b) e o deflagrador da guerra civil na qual os seus opositores reúnem apoios que incluem desde os EUA, passando por governos regionais contrários ao Irã (Teerã é o principal aliado de Assad, depois de Moscou) até a Al Qaeda.
O brasileiro Paulo Sergio Pinheiro, comissário da ONU que investiga crimes contra os direitos humanos na Síria há mais de dois anos, tem uma opinião diferente.
Ele concedeu uma profilática entrevista à Folha nesta 2ª feira, retificando um 'consenso' do noticiário para o qual se empenham colunistas do próprio jornal.
Fatos, segundo Paulo Sergio Pinheiro:
a)‘Vou dizer no Conselho de Direitos Humanos que não há dúvidas de que armas químicas foram utilizadas. Não sabemos por quem, nem efetivamente onde”.
b)“As análises estratégicas por parte de vários países, os quais não vou nomear, foram profundamente enganadas e enganosas (...)porque alguns interesses externos apostam na destruição do Estado sírio”.
c)“Há um desconhecimento profundo sobre a Síria. Apesar de ser um regime autoritário, era uma sociedade que funcionava, onde o fundamentalismo não prevalecia, os cristãos se sentiam à vontade. A Síria tinha esse contraste: um regime autoritário, mas uma sociedade razoavelmente aberta”.
d)“Os grupos rebeldes, por outro lado, estão divididos. Para aumentar a confusão, há a cereja do bolo, os grupos ligados à [rede] Al Qaeda. Ainda tem as outras minorias, os cristãos de diferentes procedências, e 500 mil refugiados palestinos (...)não há vitória possível. A única saída é uma negociação política”.
e)“Há muitas forças apoiando os rebeldes, que não têm interesse nessa negociação”.
f) “Houve uma estratégia profundamente equivocada de anunciar a cada semana que Assad iria cair (...) além do poderio militar, ele tem enorme apoio na opinião pública. Se houvesse um Datafolha na Síria hoje, mais de 50% estariam a favor dele”.
Quantas vezes você leu ou ouviu sobre isso antes, de um conflito que se arrasta há dois anos?
A manipulação do noticiário internacional é um socavão intocado do jornalismo conservador.
Escuro e embolorado, ele desautoriza ilusões no fim da guerra fria.
O muro caiu; mas as classes continuam de pé. E a mídia oligopolizada está onde sempre esteve.
Editorias de internacional fazem da guerra externa uma extensão do combate interno.
O grosso da munição vem do paiol formado pelas agências noticiosas norte-americanas, que disseminam as estacas ordenadoras do jornalismo embarcado.
A “Reuters é a pior entre as piores”, hierarquizou, em julho deste ano, o jornalista Glen Greenwald.
Responsável pela divulgação de informes sigilosos da espionagem norte-americana no mundo, revelados pelo ex-agente Edward Snowden, Greenwald teve uma entrevista distorcida pela agência.
Há agravantes locais.
Fustigados pelos custos, os veículos brasileiros, em geral, desfizeram-se de seus correspondentes ou rebaixaram o grau de exigência em relação aos remanescentes.
Nomes com independência crítica e visão ecumênica foram substituídos por onívoros do noticiário direitoso disponível nas respectivas praças.
A fragilidade financeira, em contrapartida, impede que a maioria dos veículos progressistas possa contrastar, in locu, o teor enviesado daquilo que emite o martelete conservador urbi et orbi.
O ônus é significativo.
Em 2010, o governo Lula foi execrado pelo jornalismo americanófilo, por conta de uma tentativa ,conjunta com a Turquia, de evitar sanções da ONU contra o Irã.
Washington denunciava a intenção bélica do programa nuclear iraniano, que Teerã afirmava ter objetivos pacíficos.
Lula perdeu a confiança em Obama ali. Três anos antes de Dilma.
O democrata teria encorajado as gestões em busca de um acordo negociado com o Irã, para depois deixar o Brasil e a Turquia dependurados na brocha.
A cobertura maciça da mídia nativa comprou a versão norte-americana.
Execrou o Irã e mostrou reduzido empenho em investigar os contornos reais do problema.
Fez do limão uma salmoura.
Para corroer a credibilidade do governo brasileiro.
Às vésperas da disputa presidencial de 2010, manchetes pulsavam o ganido do vira-lata.
Aquele rodriguiano, bebendo água empoçada em meia cuia de queijo Palmira.
Não foi um ponto fora da curva.
Na invasão do Iraque, em 2003, a adesão local à tese das ‘armas de destruição em massa’ foi esférica e coesa.
Mais recentemente, a violação de computadores da Petrobrás e da correspondência eletrônica da Presidência da República pela CIA, significativamente não inspirou uivos nem latidos de protestos.
Não era a pauta das agencias norte-americanas.
Qual o preço desse alinhamento cego?
Fomentar a prostração acrítica é uma especialidade desse jornalismo.
O conjunto da obra insemina certos vírus de consequências políticas devastadoras.
O conformismo diante da destruição dos Estados nacionais, por exemplo.
“As análises estratégicas por parte de vários países, os quais não vou nomear, foram profundamente enganadas e enganosas (...)porque alguns interesses externos apostam na destruição do Estado sírio”, enfatizou Paulo Sérgio Pinheiro, na entrevista citada.
Seja pelo elogio às virtudes do desmonte neoliberal, como se tentou e se insiste por essas bandas; pela demonização de governos progressistas; ou pelo endosso a guerras fratricidas em regiões onde os Estados são ontologicamente frágeis (frutos artificiais do legado colonial), esse é um dos desdobramentos explosivos da metralhadora giratória do jornalismo da guerra fria.
Que continua a operar azeitado, nas editorias internacionais.
Mirando o ‘inimigo’ interno.
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