domingo, 15 de setembro de 2013

Cinismo e cegueira ideológica

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Carta Capital, 15/09/2013
 
 

Cinismo e cegueira ideológica

 
Por Vladimir Safatle
 
 
Uma característica interessante dos liberais, em especial os latino-americanos, é sua imunidade absoluta a qualquer forma de autocrítica. Você encontrará esquerdistas em exercícios constantes de autocrítica. Não é difícil mapear as críticas da própria esquerda aos desvios autoritários das experiências comunistas, à insensibilidade contra certas questões ligadas às liberdades individuais, à forma-partido, ao raciocínio estratégico tacanho de grupos de esquerda no governo, entre tantos outros temas. Mas você praticamente não encontrará um liberal fazendo a crítica das experiências neoliberais fracassadas dos anos 1980 e 1990, da desregulamentação dos mercados financeiros ou do aumento da desigualdade social resultante de “choques de modernização”.
Não, meus amigos, um liberal entende a autocrítica como uma confissão de capitulação. Para alguns, a confissão do erro é sinal de força, mas não para ele. Por isso sua perspectiva é antipolítica por excelência. Pois, como a política, é a reflexão a partir de contextos. Como ela é a inflexão tensa entre princípios e análise de contexto, ela é uma dimensão da ação estruturalmente falível. O que faz da primeira virtude política a autocrítica, a desconfiança de si mesmo. Sartre dizia que a filosofia era a capacidade de pensar contra si mesmo. Na verdade, esta é também uma bela definição da política.
Digo isso porque ainda me espanto com certas reações de nossos liberais. Na quarta-feira 11, o Chile lembrou os 40 anos do golpe militar que derrubou Salvador Allende e jogou o país no mais profundo período de obscurantismo de sua história. Não apenas devido aos fartamente documentados crimes contra a humanidade, como as caravanas da morte e as sessões públicas de tortura no Estádio Nacional. Relembrou não apenas o êxodo provocado (mais de 150 mil chilenos seguiram a via do exílio), mas a tentativa de moldar o país de forma a eliminar tudo o que ele tinha de debate político e de mentalidade aberta.

No entanto, quem esperava haver atualmente certo consenso supraideológico a respeito da barbárie que o regime Pinochet representou, enganou-se. Nunca um liberal, que no fundo viu com alívio a queda da experiência socialista e libertária de Allende, aceitará que as ditaduras latino-americanas foram simplesmente brutalidades políticas que merecem o mais firme e inequívoco repúdio. Ao contrário, eles sempre virão com o cinismo de argumentos do tipo: “Veja bem, não gosto de regimes autoritários, mas é inegável que Pinochet modernizou a economia do país, criando um Chile dinâmico e moderno”.
Na verdade, esse cinismo é a pior de todas as posições, pois tenta vender-se como análise isenta dos fatos, quando não passa, no fundo, de simples cegueira ideológica. Durante os dez primeiros anos da ditadura de Pinochet, o PIB do Chile caiu, em média, 1,1%, a despeito do auxílio financeiro maciço dos Estados Unidos. Quando o país voltou a crescer, nos últimos cinco anos da ditadura, apenas recuperou a posição que tinha décadas atrás, mas agora sem o sistema gratuito de saúde, sem a previdência pública e com um índice de desigualdade inimaginável anos atrás. Pinochet entregou um país no qual as famílias numerosas precisavam escolher qual filho iria para a escola até a universidade, porque tais famílias não tinham dinheiro para bancar a educação de todos os seus filhos. Quem fala isso é um chileno, que conhece a realidade de seu país de nascimento.
No entanto, quando escrevi isso em um artigo alguns dias atrás, deparei-me com comentários inacreditáveis, como: os anos de recessão foram necessários para “corrigir os estragos” feitos por Allende. De nada adianta esfregar na cara desses arautos da verdade todos os documentos americanos que vieram ao domínio público. Eles deixam claro, por exemplo, como o governo Nixon patrocinou uma inacreditável política de sabotagem econômica comandada pelo bandido internacional Henry Kissinger, como seus locautes, suas práticas de desabastecimento e de verdadeiras ações terrorismo de Estado. Eles falarão que tudo isso é um complô de esquerdistas internacionais para desculpar a incompetência de Allende.
Diante disso, fica claro como não se trata de contrapor argumentos com fatos, porque estamos diante de pessoas que nunca, em hipótese alguma, dirão algo como: “É, certamente, esse apoio foi um erro a respeito do qual deveríamos meditar”.
 
 
 
Blog da Associação Keynesiana Brasileira
 
Domingo, 15 de setembro de 2013
 
UMA AVALIAÇÃO DA CRISE FINANCEIRA INTERNACIONAL CINCO ANOS DEPOIS
 
 
Hoje faz precisamente 5 anos que o Banco de Investimentos Lehman Brothers faliu, detonando uma crise de confiança generalizada no sistema financeiro americano, a qual se alastraria rapidamente pelo mundo inteiro, dando origem a maior crise financeira da história do capitalismo no pós segunda guerra mundial. A intervenção maciça dos bancos centrais dos países desenvolvidos em conjunto com grandes pacotes de estímulo fiscal e operações de bail-out de bancos impediu que essa crise financeira se transformasse numa nova grande Depressão. Contudo, passados quase 5 anos do início da crise, o mundo ainda sente os efeitos da mesma: A Europa continua em recessão, os Estados Unidos ainda não recuperou o nível de emprego prevalecente antes da crise e os países em desenvolvimento, particularmente o Brasil, ainda lutam para escapar dos efeitos nocivos que as sucessivas operações de quantitative easing tiveram sobre suas taxas de câmbio e, portanto, sobre sua competitividade internacional.
Nesse contexto, a Associação Keynesiana Brasileira lança uma série especial de cinco pequenos artigos escritos por seus membros para fazer um balanço desses cinco anos, procurando avaliar os impactos que a crise financeira de 2008 teve e ainda tem sobre as economias dos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Boa Leitura
José Luis Oreiro
Presidente da Associação Keynesiana Brasileira.
 
As Finanças das Crises
Giuliano Contento de Oliveira[1]
A ascensão e supremacia da liberalização e desregulamentação das finanças lançaram as bases para a constituição de mercados financeiros verdadeiramente globais no capitalismo contemporâneo. O sistema de gestão da riqueza se tornou, progressivamente, ditado pela lógica da especulação.
Conformou-se, com efeito, um espaço global para a valorização do capital. Sem as restrições impostas pelas regulações internas dos países, de um lado, e com a progressiva capacidade de mobilidade entre os países, de outro, os fluxos internacionais de capitais se tornaram excepcionalmente instabilizadores, mormente para as economias de moedas inconversíveis.
Sob a égide de um sistema monetário e financeiro internacional hierarquizado, baseado em moedas nacionais, tais processos, em articulação com a institucionalização das poupanças individuais e a securitização, tornaram frequentes os episódios de crises financeiras, impondo ajustes macroeconômicos severos e frequentes em muitos países.
A mais recente crise global, detonada em 2008, foi sem sombra de dúvida a mais marcante de todas, exatamente por atingir o centro vital do sistema financeiro mundializado contemporâneo, a saber, o sistema financeiro americano.
Depois do colapso do sistema de Bretton Woods, a principal âncora do dólar passou a ser, exatamente, o sistema financeiro americano, o mais líquido e profundo do planeta. Destarte, a crise, ao atingir um dos principais pilares da hegemonia americana, além de ter suscitado o risco de uma nova grande depressão, ensejou dúvidas acerca da supremacia absoluta do dólar no sistema monetário internacional.
A análise retrospectiva permite elencar muitos fatos emblemáticos da crise. Neste pequeno artigo, faz-se menção a quatro deles, a saber: i) a reação dos mercados frente à economia americana; ii) a reação não convencional do Banco Central americano, o Fed; iii) a consolidação da lógica baseada na privatização dos ganhos e socialização de prejuízos privados; e iv) a dinâmica do “business as usual” e as finanças da crise.
Em primeiro lugar, foi notável o ingresso de capital na economia americana no contexto imediatamente subsequente à crise. Mais do que uma contradição, a apreciação do dólar naquele contexto ilustrou, de maneira didática, a supremacia da moeda dos Estados Unidos no Sistema Financeiro Internacional. Depois, é verdade, o dólar passou a sofrer um processo de depreciação, inclusive por conta das políticas anticíclicas, mas não deixou de ser notável o comportamento do dólar no imediato pós-crise.
Em segundo lugar, o Fed rasgou a cartilha do “novo consenso” de política monetária, fazendo uso de instrumentos há muito sepultados pelo representantes do que se poderia chamar de “verdadeira ciência econômica”. O Banco Central americano mostrou que entre o risco moral e o risco de colapso do sistema financeiro, o primeiro deve ser assumido e, o segundo, eliminado, nem que para isso seja necessário incorrer na contradição de fazer uso de medidas pouco convencionais, rompendo-se com o dogma da política monetária segundo a sabedoria convencional: um instrumento, um objetivo.
Além disso, e em terceiro lugar, vale mencionar que no contexto de globalização das finanças, e a experiência recente não fugiu à regra, proliferou-se e naturalizou-se o sistema de privatização dos ganhos, em tempos de bonança, e socialização dos prejuízos privados, em períodos de crise. Para muitos, não haveria nada a fazer, ante a centralidade das finanças no capitalismo contemporâneo e as lições da Grande Depressão dos anos 1930.
A questão central, contudo, não diz exatamente respeito à necessidade de intervenção para evitar o colapso do sistema financeiro, mas, sim, à forma como esse processo tem sido realizado e aos seus efeitos sobre as sociedades. A metamorfose de dívida privada em dívida pública, de um lado, e o subsequente ajuste recessivo das economias em crise, de outro, revelam a necessidade de se avançar, e muito, no plano da regulação do sistema financeiro. Sob o risco de uma grande depressão, sociedades são penalizadas em razão dos abusos de poucos. De fato, em contextos como a da crise global recente, os bancos centrais precisam agir e exercer as funções de prestamista de última instância e “market maker”. Os recursos para isso, contudo, poderiam advir de fundos constituídos pelo sistema financeiro, a partir dos exorbitantes lucros obtidos durante os períodos de prosperidade.
Finalmente, o quarto e último fato emblemático da crise, aqui elencado, diz respeito à dinâmica do “business as usual”. Depois das indicações de muitos governos de que mudanças substantivas ocorreriam nos sistemas financeiros, efetivamente pouco se avançou nessa frente e tampouco há indicações de que mudanças relevantes vão acontecer. A lógica dos negócios tem feito com que, ao invés de uma crise das finanças, as sociedades continuem subjugadas às finanças das crises.

 Do surto financeiro à crise econômica
Fábio Henrique Bittes Terra[1]
Surto. s.m.
Ambição, elevação; voo.
Manifestação súbita de alguma coisa.
Crise psicótica.
Há oitenta anos, Keynes escrevia “especuladores podem não causar danos como bolhas em um cenário estável de empreendimentos. Mas, a situação é séria quando o empreendimento se torna a bolha em um turbilhão de especulação. Quando o desenvolvimento do capital de um país torna-se o subproduto das atividades de um cassino, é provável que o trabalho seja mal feito” (1964, p. 159). Talvez fosse melhor, em termos estéticos ou palatáveis, ter deixado a citação nos moldes convencionais de uma epígrafe, mas, já outra no lugar. Ademais, tal não daria a ênfase necessária às palavras de Keynes que são mais válidas agora do que nos anos 1930, haja vista o surto de inovações financeiras atual.
O sistema financeiro, como sua própria qualificação aduz, é uma estrutura sustentada na fiança coletiva, isto é, na confiança. Sua lógica é a criação de recursos monetários do nada que permitam a ampliação da riqueza ao longo do tempo. No futuro, aquilo que era antes recurso fictício torna-se produto concreto e, assim, dá-se prosseguimento à expansão da riqueza do sistema capitalista. Porém, ao passo em que viabiliza a expansão da riqueza, quando a psicologia do mercado financeiro surta e descola-se da realidade, os impactos sobre o lado real da economia são notáveis. Há cinco anos, nos EUA, eclodiam-se os sentidos financeiro e psicológico possíveis do substantivo surto.
Antes da manifestação súbita de alguma coisa, os EUA acumulavam bons indicadores econômicos: em média, entre janeiro de 2001 e agosto de 2008, a produção industrial cresceu 1,3% ao mês e a taxa de desemprego situou-se em 5,2% mensais. Por sua vez, a expansão anual média do produto alcançou 2,52% no período 2001-2007. Em suma, tinha-se um quadro de dinâmica econômica favorável para a manutenção dos níveis de emprego e de renda no país mais rico do mundo. No âmbito financeiro, entre janeiro de 2003 e outubro de 2007, usando como proxy o comportamento dos Índices Dow Jones e NASDAQ, assistiu-se à valorização de aproximadamente 60% dos papéis, ou seja, um surto – elevação, voo – financeiro bem superior ao crescimento da riqueza real em período semelhante. Em suma, uma bolha financeira foi surtada, acompanhada por bons números do lado real da economia, mas deles descolados.
As séries de apostas dos agentes, em inovações financeiras amplamente defectíveis, tornaram-se uma crise psicótica em setembro de 2008. A onda de inadimplência iniciada no subprime espalhou-se pelo sistema financeiro, implicando toda uma cadeia de descumprimento de contratos de dívida extremamente compartidos entre os agentes e financeiramente alavancados.
Dois resultados imediatos do surto psicológico nos mercados financeiros sobre o lado real da economia foram: (i) a escassez de liquidez para financiamentos e (ii) o surto de descrença com relação ao futuro. Assim, o surto sistematizou-se: eis a crise. Os dados americanos são bastante ilustrativos: decrescimento do PIB em 2008 e 2009, – 0,35% e – 3,20%, respectivamente; desemprego elevado a 10% em fins de 2009 enquanto que a retração da produção industrial no referido ano foi da ordem de 10,1% ao mês, em média.
Do surto financeiro, fez-se o surto psicológico e a crise econômica. Para alguns, apreciação dos papéis e ganho em juros foram o resultado. Contudo, o prejuízo público foi incomensuravelmente maior. Enfim, surtos e o débâcle são regras do sistema financeiro tal qual o entusiasmo do ébrio e o comedimento do sóbrio. Sem regulamentações prudenciais que limitem as estratégias competitivas das instituições financeiras e circunscrevam os mercados do sistema financeiro a contornos diferentes aos de um cassino, a simbiose entre os lados financeiro e real será persistentemente negativa. E, não é de hoje que se diz isso.

* Professor Titular da FCE/UERJ e Ex-Presidente da AKB. Email: luizfpaula@terra.com.br
** Economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada  (IPEA). Email: manoel.pires@ipea.gov.br
[1] Professor do IEUFU e Diretor da Associação Keyenesiana Brasileira.

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