Quarta-Feira, 02 de Março de 2011
Cristina Soreanu Pecequilo (*)
Em uma das mais conhecidas fábulas da literatura atribuída a Esopo (620-560 a.c) um pequeno pastor diverte-se a enganar seus vizinhos gritando com freqüência a palavra “Lobo” em alusão a um ataque do animal a rebanhos de ovelhas. Diante da ameaça, inúmeros colegas corriam a ajudá-lo e descobriam que nenhum risco existia. Sem remorso, o pastor reagia com arrogância diante daqueles que tinham se prontificado a socorrê-lo, voltando a repetir a brincadeira até que um dia a mesma deixou de ser ficção para tornar-se realidade. Atacado pelo lobo, o pastor foi abandonado à própria sorte, levando à moral da história: ninguém acredita em um mentiroso mesmo quando ele estiver falando a verdade.
Mais do que uma simples “moral da história” que pode parecer deslocada em uma discussão sobre política internacional no século XXI (ou sobre a revolta árabe e a política externa de muitos países), a trajetória do pastor e do lobo é recorrente na política, vide a instrumentalização da mentira como verdade e da ameaça como medo e exagero. Atrelada a discursos e ações políticas independente do país e da circunstância, grandes tragédias humanitárias, guerras e opressões tendem a ser justificadas a partir do outro, da metáfora do lobo. Neste contexto, a metáfora concretizada na figura de um determinado grupo de pessoas por sua origem, religião ou etnia, em um partido político por sua ideologia, permite a aceitação silenciosa de fenômenos como genocídios, invasões e repressões militares, restrição de direitos humanos.
Muitas são as faces dos inimigos, internos e externos, dependendo da nação e do momento, mas é possível detectar um interessante padrão atualmente, cujas origens localizam-se em 11/09/2001. Desde os atentados terroristas ao território continental norte-americano, pelos quais teria sido responsável, a Al Qaeda tornou-se a origem de diversos atos de violência e insurgência. Para os Estados Unidos (EUA) e aliados europeus ocidentais, Bin Laden e a Al Qaeda, configuraram-se no principal inimigo de suas democracias. Definida como ameaça maior à ordem mundial, o grupo deu origem às interpretações sobre o avanço do terrorismo transnacional, de células dispersas e comandos descentralizados, um polvo que com seus tentáculos perpassava, sem limites ou fronteiras, todos os países e sociedades. Inclusive, esta “teia”, segundo as avaliações dos EUA, estendia-se até a América do Sul, na porosa região da Tríplice Fronteira Brasil, Argentina e Paraguai, e no financiamento das guerrilhas e do tráfico na Colômbia, que foram renomeadas como “narcoterroristas”.
Dois conflitos foram iniciados no bojo da Guerra Global Contra o Terror de Bush, no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003) sendo que, no Iraque, a fábula foi reconstruída. A “moral da história” foi repensada, para recair em um ditado popular: o de que mentiras, caso repetidas várias vezes e bem construídas, passam a ser verdadeiras, mesmo para os que as elaboraram.
Antes da invasão ao Iraque em 2002, cerca de 90% dos norte-americanos acreditava, que Saddam Hussein era um agente da Al Qaeda e, em parceira com Bin Laden, fora o responsável por 11/09. Os estudos da Comissão de 11/09, o livro “Contra Todos os Inimigos” de Richard Clarke (2004) que contestava as alegações de W. Bush sobre os atentados, a ausência de uma conclusão sobre os episódios envolvendo Antraz que se seguiram à 11/09, buscavam sobrepujar estas certezas e reavaliar, afinal, quem seriam, ou eram os inimigos da América, mas não obtiveram repercussão.
Na oportunidade, o acadêmico britânico Fred Halliday (1) (1946-2010) da London School of Economics, alertou para os riscos deste pânico auto-induzido, que mistificava a Al Qaeda. Para Halliday, as alegações dificultavam a compreensão de um fenômeno político concreto, atribuindo a Bin Laden apenas a violência pela violência. Apesar de Bin Laden ser lembrado como “treinado pela CIA”, as retóricas pós-11/09 jogavam uma cortina de fumaça sobre as origens deste movimento nos anos 1970/1980, a partir das triangulações da diplomacia norte-americana com os insurgentes afegãos e as pressões sobre a União Soviética (URSS), que resultaram na Guerra do Afeganistão (1979/1989). Fatores como a Revolução Iraniana (1979) e a Guerra Irã-Iraque (1980/1988) igualmente faziam parte de uma grande estratégia norte-americana para o Oriente Médio que, se em algumas nações visava barrar o que definia como “onda verde” (a revolução fundamentalista islâmica do Irã), em outros, aliava-se aos “lutadores da liberdade”, independente de suas orientações radicais (como no Afeganistão).
Ainda que muitos alegassem que esta era somente mais uma tentativa dos EUA de substituir o inimigo soviético por outra contraparte, a caracterização da Al Qaeda e Bin Laden como a “ameaça número 1”, ultrapassava as demandas norte-americanas, para se consistir em uma justificativa quase geral do Ocidente para medidas sociais e políticas coercitivas.
Apresentadas como excepcionais, cada vez mais, estas regulamentações parecem ser a regra, vide a mais recente extensão do Ato Patriota criado nos EUA em 2001 para o combate ao terrorismo.
Em 25 de Fevereiro de 2011, às vésperas de sua expiração, o Ato Patriota foi renovado, mais uma vez, de forma provisória, por três meses pelo governo Barack Obama devido à pressão dos republicanos e da comunidade de segurança e inteligência nacionais. Como provisões da renovação, que após três meses, poderá ser prorrogada por mais um ano, permanecem o monitoramento de cidadãos e acesso a informações pessoais de suspeitos. Enquanto o mundo estava absorvido pelos movimentos democráticos no Oriente Médio, que se prolongam, e com muitos deles agora defendidos pelos EUA, o modelo norte-americano contrariava suas melhores recomendações. Mais do que o risco do crescente terrorismo interno e polarizações domésticas, a sombra da Al Qaeda foi a justificativa de mais esta reedição.
A manipulação da Al Qaeda, porém, deixou, em 2011, de ser exclusiva aos países ocidentais. A prática estendeu-se a diversas partes do mundo árabe que hoje enfrentam revoltas, revoluções e, no limite, guerras civis, para defender a mudança de regime e a democracia. Para preservar suas nações da desagregação, da violência provocadas pela Al Qaeda, dirigentes advogam perante o Ocidente e suas populações sua permanência no cargo. Somente para citar dois exemplos, no Egito de Mubarak e na Líbia de Kadafi, a Al Qaeda assumiu papel central nas crises, ignorando as inúmeras raízes de insatisfação popular que facilitaram a eclosão do processo.
Pode ter havido ingerência e/ou motivação externa em muitas destas revoltas, inclusive as que se encontram em andamento? Certamente, mas não só da Al Qaeda ou dos EUA, mas de interesses políticos, econômicos e estratégicos múltiplos e dispersos em uma região chave para o dilema energético mundial. A não compreensão deste intrincado jogo de poder, ou a tentativa de deslegitimá-lo ao atribuí-lo exclusivamente a um ator sempre comentado, mas pouco conhecido, implica não só prolongar a instabilidade, mas colocar em xeque o futuro da reestruturação político-social destes regimes. Afinal, não se pode deixar de achar “curioso” que um dos poucos pontos que una o Ocidente e o Oriente neste período recente, de Obama a Mubarak, passando por Kadafi, seja o lobo Al Qaeda.
(*) Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
NOTA
(1) HALLIDAY, Fred. Two hours that shook the world. Saqi Books, London, 2002
O “Lobo” Al Qaeda
Cristina Soreanu Pecequilo (*)
Em uma das mais conhecidas fábulas da literatura atribuída a Esopo (620-560 a.c) um pequeno pastor diverte-se a enganar seus vizinhos gritando com freqüência a palavra “Lobo” em alusão a um ataque do animal a rebanhos de ovelhas. Diante da ameaça, inúmeros colegas corriam a ajudá-lo e descobriam que nenhum risco existia. Sem remorso, o pastor reagia com arrogância diante daqueles que tinham se prontificado a socorrê-lo, voltando a repetir a brincadeira até que um dia a mesma deixou de ser ficção para tornar-se realidade. Atacado pelo lobo, o pastor foi abandonado à própria sorte, levando à moral da história: ninguém acredita em um mentiroso mesmo quando ele estiver falando a verdade.
Mais do que uma simples “moral da história” que pode parecer deslocada em uma discussão sobre política internacional no século XXI (ou sobre a revolta árabe e a política externa de muitos países), a trajetória do pastor e do lobo é recorrente na política, vide a instrumentalização da mentira como verdade e da ameaça como medo e exagero. Atrelada a discursos e ações políticas independente do país e da circunstância, grandes tragédias humanitárias, guerras e opressões tendem a ser justificadas a partir do outro, da metáfora do lobo. Neste contexto, a metáfora concretizada na figura de um determinado grupo de pessoas por sua origem, religião ou etnia, em um partido político por sua ideologia, permite a aceitação silenciosa de fenômenos como genocídios, invasões e repressões militares, restrição de direitos humanos.
Muitas são as faces dos inimigos, internos e externos, dependendo da nação e do momento, mas é possível detectar um interessante padrão atualmente, cujas origens localizam-se em 11/09/2001. Desde os atentados terroristas ao território continental norte-americano, pelos quais teria sido responsável, a Al Qaeda tornou-se a origem de diversos atos de violência e insurgência. Para os Estados Unidos (EUA) e aliados europeus ocidentais, Bin Laden e a Al Qaeda, configuraram-se no principal inimigo de suas democracias. Definida como ameaça maior à ordem mundial, o grupo deu origem às interpretações sobre o avanço do terrorismo transnacional, de células dispersas e comandos descentralizados, um polvo que com seus tentáculos perpassava, sem limites ou fronteiras, todos os países e sociedades. Inclusive, esta “teia”, segundo as avaliações dos EUA, estendia-se até a América do Sul, na porosa região da Tríplice Fronteira Brasil, Argentina e Paraguai, e no financiamento das guerrilhas e do tráfico na Colômbia, que foram renomeadas como “narcoterroristas”.
Dois conflitos foram iniciados no bojo da Guerra Global Contra o Terror de Bush, no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003) sendo que, no Iraque, a fábula foi reconstruída. A “moral da história” foi repensada, para recair em um ditado popular: o de que mentiras, caso repetidas várias vezes e bem construídas, passam a ser verdadeiras, mesmo para os que as elaboraram.
Antes da invasão ao Iraque em 2002, cerca de 90% dos norte-americanos acreditava, que Saddam Hussein era um agente da Al Qaeda e, em parceira com Bin Laden, fora o responsável por 11/09. Os estudos da Comissão de 11/09, o livro “Contra Todos os Inimigos” de Richard Clarke (2004) que contestava as alegações de W. Bush sobre os atentados, a ausência de uma conclusão sobre os episódios envolvendo Antraz que se seguiram à 11/09, buscavam sobrepujar estas certezas e reavaliar, afinal, quem seriam, ou eram os inimigos da América, mas não obtiveram repercussão.
Na oportunidade, o acadêmico britânico Fred Halliday (1) (1946-2010) da London School of Economics, alertou para os riscos deste pânico auto-induzido, que mistificava a Al Qaeda. Para Halliday, as alegações dificultavam a compreensão de um fenômeno político concreto, atribuindo a Bin Laden apenas a violência pela violência. Apesar de Bin Laden ser lembrado como “treinado pela CIA”, as retóricas pós-11/09 jogavam uma cortina de fumaça sobre as origens deste movimento nos anos 1970/1980, a partir das triangulações da diplomacia norte-americana com os insurgentes afegãos e as pressões sobre a União Soviética (URSS), que resultaram na Guerra do Afeganistão (1979/1989). Fatores como a Revolução Iraniana (1979) e a Guerra Irã-Iraque (1980/1988) igualmente faziam parte de uma grande estratégia norte-americana para o Oriente Médio que, se em algumas nações visava barrar o que definia como “onda verde” (a revolução fundamentalista islâmica do Irã), em outros, aliava-se aos “lutadores da liberdade”, independente de suas orientações radicais (como no Afeganistão).
Ainda que muitos alegassem que esta era somente mais uma tentativa dos EUA de substituir o inimigo soviético por outra contraparte, a caracterização da Al Qaeda e Bin Laden como a “ameaça número 1”, ultrapassava as demandas norte-americanas, para se consistir em uma justificativa quase geral do Ocidente para medidas sociais e políticas coercitivas.
Apresentadas como excepcionais, cada vez mais, estas regulamentações parecem ser a regra, vide a mais recente extensão do Ato Patriota criado nos EUA em 2001 para o combate ao terrorismo.
Em 25 de Fevereiro de 2011, às vésperas de sua expiração, o Ato Patriota foi renovado, mais uma vez, de forma provisória, por três meses pelo governo Barack Obama devido à pressão dos republicanos e da comunidade de segurança e inteligência nacionais. Como provisões da renovação, que após três meses, poderá ser prorrogada por mais um ano, permanecem o monitoramento de cidadãos e acesso a informações pessoais de suspeitos. Enquanto o mundo estava absorvido pelos movimentos democráticos no Oriente Médio, que se prolongam, e com muitos deles agora defendidos pelos EUA, o modelo norte-americano contrariava suas melhores recomendações. Mais do que o risco do crescente terrorismo interno e polarizações domésticas, a sombra da Al Qaeda foi a justificativa de mais esta reedição.
A manipulação da Al Qaeda, porém, deixou, em 2011, de ser exclusiva aos países ocidentais. A prática estendeu-se a diversas partes do mundo árabe que hoje enfrentam revoltas, revoluções e, no limite, guerras civis, para defender a mudança de regime e a democracia. Para preservar suas nações da desagregação, da violência provocadas pela Al Qaeda, dirigentes advogam perante o Ocidente e suas populações sua permanência no cargo. Somente para citar dois exemplos, no Egito de Mubarak e na Líbia de Kadafi, a Al Qaeda assumiu papel central nas crises, ignorando as inúmeras raízes de insatisfação popular que facilitaram a eclosão do processo.
Pode ter havido ingerência e/ou motivação externa em muitas destas revoltas, inclusive as que se encontram em andamento? Certamente, mas não só da Al Qaeda ou dos EUA, mas de interesses políticos, econômicos e estratégicos múltiplos e dispersos em uma região chave para o dilema energético mundial. A não compreensão deste intrincado jogo de poder, ou a tentativa de deslegitimá-lo ao atribuí-lo exclusivamente a um ator sempre comentado, mas pouco conhecido, implica não só prolongar a instabilidade, mas colocar em xeque o futuro da reestruturação político-social destes regimes. Afinal, não se pode deixar de achar “curioso” que um dos poucos pontos que una o Ocidente e o Oriente neste período recente, de Obama a Mubarak, passando por Kadafi, seja o lobo Al Qaeda.
(*) Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
NOTA
(1) HALLIDAY, Fred. Two hours that shook the world. Saqi Books, London, 2002
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São Paulo, quarta-feira, 02 de março de 2011
Qual Gaddafi?
RUY CASTRO
RIO DE JANEIRO - Woody Allen disse certa vez que a Revolução Russa poderia ter acontecido muito antes de 1917. Mas os mencheviques e os bolcheviques, atirando-se mutuamente às carótidas sobre o que fazer depois que tomassem o poder, custaram a perceber que o Tzar e o Czar eram a mesma pessoa.
O mesmo pode ter se dado na Líbia, onde o ódio ao ditador Muammar Gaddafi vem de longe, mas, até há pouco, os rebeldes não se decidiam sobre quem derrubar: Gaddafi, Khadafi, Gathafi, Quathafi, Qadhafi ou Qadhdhafi? Eu próprio, que nunca me dediquei apaixonadamente à biografia do homem e costumo me perder quando abro um Atlas naquela região, já cheguei a pensar que fossem ditadores diferentes, talvez meio aparentados.
Vestígios dessa confusão ainda devem pairar por aí. É a única explicação para o fato de que Gaddafi, com 2/3 do território líbio em mão dos revoltosos, incluindo os poços de petróleo, abandonado por seus embaixadores, antigos aliados e metade do Exército, tendo contra si os EUA, a ONU e a União Europeia, com seu país sob bloqueio econômico e suas contas pessoais congeladas na Suíça, ainda não tenha sido posto para fora. Estarão atacando o Gaddafi certo?
A depender da rede de televisão ABC, do jornal "New York Times", da agência Associated Press e de outros possantes veículos de comunicação, essa possibilidade de confusão existe. Uns pelos outros, eles já grafaram o nome de Gaddafi de 112 formas diferentes desde que o cujo tomou o poder, em 1969.
Na verdade, há um imbróglio nisto, mas de outra natureza: qual Gaddafi os EUA pretendem enxotar? O atual, que o povo líbio sempre quis ver pelas costas, ou o de, digamos, 2008, que era louvado pela secretária de Estado americana Condoleezza Rice como "nosso forte parceiro na guerra contra o terrorismo" e cuja cooperação ela chamava de "excelente"?
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