terça-feira, 15 de março de 2011

De frente para o abismo

 


São Paulo, terça-feira, 15 de março de 2011
 
De frente para o abismo
 
VLADIMIR SAFATLE
 
Há alguns dias, a França descobriu que, caso a eleição presidencial fosse hoje, Marine Le Pen ganharia com 24% dos votos. Nova representante da extrema direita xenófoba e racista, Marine Le Pen é fruto direto de três fatores.
Primeiro, como lembra o filósofo Alain Badiou, a França sempre foi dividida em duas.
Uma, movida pelos ideais universalistas e igualitários da Revolução Francesa, e outra, conservadora e voltada para si mesma
, voltada para um passado que, na verdade, nunca foi presente. Esta segunda França é a de Pétain, de Pierre Laval e do Front National.
Que ela possa voltar a ditar as cartas do espectro político, eis algo que só pode ser explicado por dois motivos. O primeiro deles é o lento processo de transformação da política em espaço colonizado por afetos como a insegurança, o medo contra o outro, o retorno paranoico à identidade nacional, além de uma visão museificada e morta da cultura. Um processo levado ao extremo por este aprendiz desastrado de feiticeiro que governa atualmente a França.
Desde o início de seu governo, economistas sensatos insistiram que seus planos baseados em diminuição de impostos para ricos e desmantelamento de serviços públicos teriam consequências desastrosas. Seus baixos índices de popularidade são apenas o resultado mais evidente destes equívocos.
Nesta situação onde os resultados econômicos e sociais são vergonhosos, não restou outra coisa a fazer que correr atrás de garotas muçulmanas com véus na cabeça e transformar o conflito social com habitantes da periferia em conflito cultural contra o islã. Assim, ficou fácil ao Front National dizer que, neste caso, melhor votar no original do que ser governado pela cópia.
Por fim, o Front National deve um agradecimento especial à esquerda. Neste exato momento, ocorre um fenômeno já visto na ascensão do nazismo: o deslocamento dos votos da esquerda popular e operária para a extrema direita.
Nas últimas semanas, grupos de sindicalistas passaram a apoiar abertamente Marine Le Pen. Com isto aparece o mais perigoso dos amálgamas: uma extrema direita que consegue vocalizar o descontentamento de setores marginalizados da população contra o "cosmopolitismo" de uma Europa que nunca conseguiu se constituir como garantidora de conquistas sociais.
Europa que só aparece aos olhos desta população como representante duma burocracia ligada ao mundo financeiro
. Ironia do destino: a esquerda perdeu a coragem de denunciar conflitos de classe; já a extrema direita não. Por isto talvez deva meditar sobre esta afirmação de Warren Buffet, um dos maiores milionários do mundo: "É verdade que há uma guerra de classes, mas é a minha classe que está fazendo a guerra e ganhando".


VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.

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