Folha.com, 03/03/17
Um fascista mora ao lado
Por Vladimir Safatle
Há alguns dias, foi publicada a última pesquisa CNT/MDA para a eleição presidencial de 2018. Três fenômenos são dignos de nota: a ascensão de Lula,
que venceria hoje em todos os cenários, a queda de todos os candidatos
ligados de forma ou outra ao atual desgoverno e a consolidação do sr. Jair Bolsonaro em segundo lugar, em empate técnico com Marina Silva.
No entanto, há
sim um uso descritivo do termo, há situações nas quais devemos nomear
claramente o que, no final das contas, é a pura e simples adesão a
práticas facilmente qualificadas como fascistas. Pois poderíamos dizer que todo fascismo tem ao menos três características fundamentais.
Neste
sentido, não seria difícil demonstrar todo o fascismo ordinário do sr.
Bolsonaro. Sua adesão à ditadura militar é notória, a ponto de saudar e
prestar homenagens a torturadores. Não
deixa de ser sintomático que pessoas capazes de se dizerem profundamente
indignadas contra a corrupção reinante afirmem votar em alguém que
louva um regime criminoso e corrupto como a
ditadura militar brasileira (vide casos Capemi, Coroa-Brastel,
Paulipetro, Jari, entre tantos outros).
Ora, o fato significativo é que
a maioria da classe média brasileira com sua semiformação
característica assumiu de forma explícita uma perspectiva simplesmente
fascista.
Todo
evento real produz um sujeito reativo, sujeito que, diante das
possibilidades abertas por processos impredicados, procura o retorno de
alguma forma de ordem segura capaz de colocar todos nos seus devidos
lugares. Nesse contexto, a última coisa a fazer é acreditar que devemos "dialogar" com tal setor da população.
Logo, se eu explicar de forma pausada e lenta, você acabará concordando comigo. Bem, nada mais equivocado. O que nos diferencia é a adesão a forma de vida radicalmente diferentes. Quem
quer um fascista não fez essa escolha porque compreendeu mal a cadeia
de argumentos. Ele o escolheu porque adere a formas de vida e afetos
típicos desse horizonte político. Não é argumentando que se modifica algo, mas desativando os afetos que sustentam tais escolhas.
Uma leitura mais detalhada da pesquisa revela fatos ainda mais surpreendentes. Bolsonaro
é o candidato mais votado dentre aqueles que possuem ensino superior
(20,7%) e aparece empatado com Lula na escolha dos que ganham acima de
cinco salários mínimos (20,5%).
Já há algum tempo, o termo "fascista" é utilizado no embate político de forma meramente valorativa, e não descritiva.
Ou seja, não se trata de descrever algum tipo específico de fenômeno
político, mas simplesmente de desqualificar aquele que gostaríamos de
retirar do debate político.
Primeiro, ele é um culto explícito da ordem baseada na violência de Estado e em práticas autoritárias de governo. Segundo, ele permite a circulação desimpedida do desprezo social por grupos vulneráveis e fragilizados.
O ocupante desses grupos pode variar de acordo com situações históricas
específicas. Já foram os judeus, mas podem também ser os homossexuais,
os árabes, os índios, entre tantos outros. Por fim, ele procura
constituir coesão social através de um uso paranoico do nacionalismo, da
defesa da fronteira, do território e da identidade a eixo fundamental
do embate político.
Bem,
quem começa tirando selfie com a Polícia Militar em manifestações só
poderia terminar abraçando toda forma de violência de Estado.
Por
outro lado, sua luta incansável contra a constituição de políticas de
direito, reparação e conscientização da violência contra grupos
vulneráveis expressa o desprezo que parte da população brasileira sempre
cultivou, mas que agora se sente autorizada a expressar.
Por
fim, o primarismo de um nacionalismo que expressa o simples culto do
direito secular de mando, algo bem expresso no slogan "devolva o meu
país", fecha o círculo.
Ela
operou um desrecalque, já que até então se permitia representar por
candidatos conservadores mais tradicionais. Essa escolha é resultado de
uma reação à "desordem" e à abertura produzida pela revolta de 2013.
Faz parte de um iluminismo pueril a crença de que o outro não pensa como eu porque ele não compreendeu bem a cadeia de argumentos.
De
toda forma, há de se nomear claramente o caminho que parte
significativa dos eleitores tomou. Essa radicalização não desaparecerá,
mas é embalada pelo espírito do tempo e suas regressões. Na verdade, ela
se aprofundará. Contra ela, só existe o combate sem trégua.
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