terça-feira, 31 de março de 2015

Na cabine da Germanwings, a depressão neoliberal








Carta Maior, 31/03/2015




Na cabine da Germanwings, a depressão neoliberal



Franco Berardi | Tradução Bruno Cava | Imagem: Edvard Munch



Dizem que o jovem piloto Andreas Lubitz sofria de crise depressiva e mantinha escondidas da Lufthansa as suas condições psíquicas. Os médicos tinham aconselhado um período de licença do trabalho. Mas isso não é de fato surpreendente: o turbocapitalismo contemporâneo detesta aqueles que pedem para usufruir licenças médicas, e detesta à enésima potência qualquer referência à depressão

Deprimido, eu? Não se fala nunca disso. Eu estou bem, perfeitamente bem, eficiente, alegre, dinâmico, enérgico e acima de tudo competitivo. Faço jogging toda manhã, estou sempre disponível e preparado para coisas extraordinárias. 

Não seria talvez esta a filosofia do “baixo custo”? Não seríamos talvez rodeados ininterruptamente pelo discurso da eficiência competitiva? Não estaríamos talvez constrangidos no cotidiano a comparar o nosso estado de ânimo com aquela alegria agressiva dos rostos bem sucedidos que aparecem nos anúncios publicitários? Não correríamos talvez o risco de demissão se faltarmos demais ao trabalho por estarmos doentes? 

Agora os jornais (os mesmos jornais que há anos vêm nos chamando de pouco esforçados e elogiam a exclusão dos ineficientes) aconselham-nos a prestar mais atenção nos processos seletivos. Teremos controles extraordinários para verificar se os pilotos de avião não sejam desequilibrados, loucos, depressivos, maníacos, melancólicos tristes e abatidos. De verdade? E os médicos? E os coronéis do exército? E os motoristas de ônibus? E os condutores de trem? E os professores de matemática? E os agentes da polícia rodoviária? 

Depuremos os deprimidos. Depurêmo-los. Pena que sejam a maioria absoluta da população contemporânea. Não estou falando dos deprimidos declarados, que aliás estão crescendo em proporção, mas daqueles que sofrem de infelicidade, tristeza, desespero, aqueles que raramente informam da situação e o fazem com certa prudência. A incidência de doenças psíquicas tem crescido enormemente nas últimas décadas. A taxa de suicídio, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde, subiu 60% (!) nos últimos quarenta anos. 

Quarenta anos? O que isso poderá significar? O que aconteceu nos últimos quarenta anos para que tanta gente se apresse em vestir paletó de madeira? Existirá talvez uma relação entre esse incrível aumento da propensão a abreviar a vida e o triunfo do neoliberalismo, que implica precariedade e competição obrigatória? E existirá talvez uma relação com a solidão de uma geração inteira que cresceu diante da tela, sendo submetida a contínuos estímulos psico-informativos e tocando sempre menos o corpo do outro? Não se esqueçam que, para cada suicídio realizado, existem cerca de vinte tentados sem sucesso. E não se esqueçam que, em muitos países do mundo, os médicos são convidados a ter cautela na hora de atribuir a morte ao suicídio, se não existirem provas evidentes da intenção do falecido. E quantos acidentes de carro ocultam uma intenção suicida mais ou menos consciente? 

Não apenas as autoridades de investigação e a companhia aérea revelaram que a causa do desastre aéreo foi o suicídio de um trabalhador que sofria de crise depressiva e que a mantinha escondida, eis que na internet se coloca em marcha o costumeiro exército de teóricos da conspiração. “Até parece que vou acreditar”, dizem aqueles que suspeitam de um complô. Deve ter a mão da CIA, ou talvez Putin, ou quem sabe foi simplesmente um gravíssimo erro da Lufthansa que agora querem esconder do público. Um chargista que se chama Sartori e acredita ser muito espirituoso mostra um cara lendo um jornal com a manchete “Tragédia Airbus: responsável o copiloto deprimido” e fala: “daqui a pouco vão dizer que o ISIS também é feito por deprimidos”. 

Olha aí, parabéns. Acertou o ponto em cheio: o terrorismo contemporâneo pode ter mil causas políticas, mas a única causa verdadeira é a epidemia de sofrimento psíquico (e social, mas as duas coisas são uma só) que se está difundindo pelo mundo. É possível explicar o comportamento de um terrorista, de um jovem que se explode para matar uma dezena de outros seres humanos, apenas em termos políticos, ideológicos, religiosos? Certo que se pode, mas vai ser conversa fiada. A verdade é que quem se mata considera a vida um peso intolerável, e vê na morte a única salvação, na tragédia a única vingança. Uma epidemia de suicídio se abateu sobre o planeta Terra, porque por décadas se pôs pra rodar uma gigantesca fábrica de infelicidade de onde parece cada vez mais impossível escapar. 

Aqueles que em todo lugar veem um complô deveriam parar de buscar uma verdade escondida, deveriam em vez disso interpretar diversamente a verdade evidente. Andreas Lubitz se trancou naquela maldita cabine porque a dor que sentia dentro de si era de fato insuportável, e porque acusava daquela dor os 150 passageiros e colegas que voavam com ele, e todos os outros seres humanos que como ele são incapazes de libertar-se da infelicidade que devora a humanidade contemporânea, desde que a publicidade nos submeteu a um bombardeio de felicidade obrigatória, desde que a solidão digital multiplicou os estímulos e isolou cada um dos corpos, desde quando o capitalismo financeiro nos constrangeu a trabalhar o dobro para ganhar a metade.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Uma auditora brasileira na Grécia do Syriza

As meninas estão mandando ver em todas!

 










Carta Maior, 30/03/2015




Maria Lúcia Fattorelli: a brasileira que audita a economia grega para o Syriza



Por André Cristi





Uma das pontes entre o Brasil e as novas experiências políticas da esquerda socialista europeia chama-se Maria Lúcia Fattorelli. Auditora da Receita Federal desde 1982, a coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida foi convidada por Zoe Konstantopoulou, deputada do Syriza que ocupa a presidência do Parlamento Grego, a compor o Comitê pela Auditoria da Dívida Grega. 

Maria Lúcia já participou de processo semelhante no Equador, quando o presidente Rafael Correa decidiu pela anulação de 70% da dívida que emperrava o investimento público. “Pela primeira vez na história inverteu-se a equação: os gastos sociais superaram os gastos com a dívida”, lembra em entrevista à Carta Maior.  


O sistema

De acordo com Fattorelli, o significado maior de auditar uma dívida pública é desmascarar o que ela chama de “sistema da dívida. “É um negócio altamente rentável e que beneficia um pequeno segmento social localizado nos mercados financeiros”, descreve. 

Funciona assim: sem transparência e com enormes privilégios (legais, financeiros, políticos) aos bancos e agências de risco, o Estado pega dinheiro emprestado de instituições financeiras públicas ou privadas. O valor emprestado cresce brutalmente em função de juros elevadíssimos. E a dívida vai se tornando meramente contábil - isto é, jogo de juros sobre juros. Segundo Fattorelli, “o endividamento público se converte numa maneira de desvio de recursos públicos em larga escala”.

Segundo o Tesouro Nacional, em 2013 o governo federal gastou R$ 718 bilhões com juros e amortizações da dívida interna e externa, o que representou 40,3% do orçamento federal (o valor gasto em educação, por exemplo, é de 3,4%, em transporte 1%).

Mas não é a corrupção que afasta nosso dinheiro dos lugares em que ele deveria ser investido? 

Pois bem. O mensalão, considerado à época o maior caso de corrupção do país, comprovou R$140 milhões desviados. No ano de 2005, a dívida pública consumia mais de dez mensalões por dia.


O caso grego

A manipulação da taxa de risco levou o governo grego a aceitar acordos muito prejudiciais com o FMI e a União Europeia. Endividada e fragilizada, a outrora obediente Grécia se viu invadida por instituições financeiras internacionais, grandes corporações e, por consequência, pela agenda neoliberal: desmantelamento dos direitos sociais e privatização das empresas públicas mais lucrativas.

“Esse mecanismo de pressão da Troika (comitê de bancos, FMI e Banco Central Europeu) contra os países – que por sua vez têm que negociar de maneira isolada – demonstra uma grande assimetria entre as partes, um claro indício de ilegitimidade”, denuncia Fattorelli. E lembra que o FMI é uma agência especializada da ONU, como a OIT e a FAO. Deveria, portanto, atuar segundo os objetivos da Carta da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos - e não segundo os interesses do mercado financeiro. 

Ainda segundo Fattorelli, o caso grego constitui um forte exemplo do dano provocado pelo Sistema da Dívida às mulheres. “No início da crise”, relembra, “o desemprego em massa de mulheres foi utilizado para expandir ainda mais os cortes de gastos exigidos pelo programa de austeridade fiscal imposto pela Troika: serviços de creches, assistência social e até certos serviços de saúde deixaram de ser prestados pelo Estado”. A justificativa? Ora, se as mulheres estavam em casa, elas assumiriam tais serviços.


O exemplo equatoriano

O Equador, com auxílio de Maria Lúcia, provou a eficiência da ferramenta de auditoria. Em 2007 o presidente Rafael Correa criou uma comissão para realizar auditoria da dívida interna e externa equatoriana, nomeando diversos membros nacionais e 6 internacionais. Maria Lúcia representou o Brasil. O resultado, segundo ela, foi impressionante: “permitiu a anulação de 70% da dívida externa em títulos. Os recursos liberados têm sido investidos principalmente em saúde e educação”.

A auditoria equatoriana consistiu em tornar transparentes os números da dívida; verificar quais foram os mecanismos e operações que geraram dívidas desde a sua origem; quem se beneficiou dos recursos; em que esses foram aplicados; verificar se foram cumpridas as normas legais e administrativas existentes; quais os impactos sociais, ambientais etc. Após o exame, e diante das evidentes ilegalidades, ilegitimidades e mesmo fraudes comprovadas, só restou a Rafael Correa “dar o calote” numa dívida irreal.

O mais repisado argumento contra a auditoria da dívida é bastante simples: partindo do pressuposto que a auditoria é um calote ao sistema financeiro, o mesmo sistema financeiro fecharia o acesso ao crédito dos países caloteiros. Conforme argumenta Fattorelli, o Equador mostra o oposto: o risco-país caiu e o acesso ao crédito passou a custar menos

Também cabe observar que a partir de 2011 os gastos com a dívida voltam a crescer, o que mostra que o país não ficou isolado e continuou acessando crédito. Prova irrefutável de que é possível parar de entregar vastos recursos públicos aos rentistas sem convulsão social - resta esperar que outros governos ouçam Maria Lúcia Fattorelli de forma tão generosa quanto ouvem os chicago boys.

Um lugar só para brancos

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2015/03/30/internas_polbraeco,477659/e-um-lugar-so-para-brancos-diz-pai-de-garoto-vitima-de-racismo-em-lo.shtml


 
 
 
Correio Braziliense, 30/03/2015



'É um lugar só para brancos", diz pai de garoto vítima de racismo em loja
 
 
 
 
 
O depoimento de um pai indignado repercutiu nas redes sociais, alcançando mais de mil compartilhamentos nesta segunda-feira (30/3). Ele acusou a vendedora de uma loja de São Paulo de ser racista com o filho. O garoto tem oito anos e foi expulso da frente do estabelecimento com o pai no sábado (28/3). "É um lugar só para brancos", desabafou o pai, Jonathan Duran, em entrevista ao Correio.

A família estava passeando pela Rua Oscar Freire, e após comprar um sorvete para o garoto, Duran ligou para a esposa, que estava em outra loja para comprar sapatos. Neste momento, para fugir da rua movimentada de carros, eles ficaram na frente de uma loja de roupas. "A vendedora chegou e falou brava: 'ele não pode vender coisas aqui'", contou Jonathan, que ficou chocado com a situação. Ele limitou-se a informar: "Ele é meu filho", antes de ir embora.


Lava Jato: De cada 100 reais enviados aos partidos, 42 chegaram aos cofres tucanos

 





30 de março de 2015



E agora, Sérgio Moro?


Por Paulo Moreira Leite



A descoberta de que o conjunto das empreiteiras investigadas na Lava Jato responde por 40% das doações eleitorais aos principais partidos políticos do país – PT, PMDB, PSDB – entre 2007 e 2013 é uma dessas novidades imensas à espera de providências a altura.
Permite uma nova visão sobre as denúncias envolvendo a Petrobrás, confirma uma distorção absurda nas investigações e exige uma reorientação no trabalho da Justiça e do Ministério Público.
É o caso de perguntar: e agora, Sérgio Moro? O que vamos fazer, Teori Zavaski?
Explico.
Conforme o Estado de S. Paulo, entre 2007 e 2013 as 21 maiores empresas da Lava Jato repassaram R$ 571 milhões a petistas, tucanos, peemedebistas. Desse total, 77% saíram dos cofres das cinco maiores, que estão no centro das investigações: Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Camargo Corrêa, Grupo Odebrecht e OAS.
Segundo o levantamento, o Partido dos Trabalhadores ficou com a maior parte, o que não é surpresa. As doações ocorreram depois da reeleição de Lula. Cobrem aquele período do calendário político no qual Dilma Rousseff conquistou o primeiro mandato e Fernando Haddad venceu as eleições municipais de São Paulo. Mas o PSDB não ficou muito atrás. Embolsou 42% do total. Repetindo para não haver dúvidas: conforme análise do Estado Dados, de cada 100 reais enviados aos partidos, 42 chegaram aos cofres tucanos.
Gozado, não?
Agora dê uma olhada na relação de beneficiários denunciados na Lava Jato e pergunte pelos tucanos. O personagem mais ilustre, senador Sérgio Guerra, já morreu. É acusado de ter embolsado dinheiro para inviabilizar uma CPI. Infelizmente, não está aqui para defender-se – o que permite imaginar até onde pode chegar a largura de suas costas.
O outro implicado é o senador Antônio Anastasia, aliado número 1 de Aécio Neves, forte candidato a um carimbo de “falta de provas” amigo nas próximas etapas do percurso.
Como chegaremos aos 42%? Alguém vai investigar, vai explicar? Ninguém sabe. Nem uma pista.
Onde estão as delações premiadas, as prisões preventivas?
Apoiado na delação premiada de Paulo Roberto Costa, que chegou à diretoria da Petrobras com proteção do lendário Severino Cavalcanti, do PP pernambucano, a investigação concentrou-se no condomínio Dilma-Lula e legendas aliadas. Esbarrou no PSDB, de vez em quando, quase sem querer, por acaso. E só.
A descoberta da fatia de 42% do PSDB na Lava Jato pode ser mais útil do que se imagina.
Deixando de lado, por um momento, a demagogia moralista que tenta convencer o país que todo político é ladrão cabe reconhecer um aspecto real e relevante.
Estamos falando de um sistema no qual todos os partidos se envolvem na busca de recursos financeiros para tocar as campanhas. Todos. São as mesmas empresas, com os mesmos clientes, com os mesmos doadores que se ligam às mesmas fontes.
Isso quer dizer o seguinte: ou todos são tratados da mesma forma, conforme regra elementar da Justiça, ou teremos, na Lava Jato de 2015, o mesmo tratamento preferencial dispensado aos tucanos do mensalão PSDB-MG. Não dá para dizer que um recebe “propina” e o outro ” verba de campanha,” certo?
Acho errado por princípio criminalizar as campanhas financeiras dos partidos políticos. Por mais graves que sejam suas distorções – e nós sabemos que podem ser imensas – elas envolvem recursos indispensáveis ao funcionamento do regime democrático. Mesmo a Nova República, que substituiu o regime militar, nasceu com auxílio de um caixa clandestino formado pelos maiores empresários e banqueiros do país, na época. Não conheço ninguém que, mesmo informado dessa situação, sentisse nostalgia da suposta — sim, suposta e apenas suposta — moralidade do regime dos generais.
Se queremos uma democracia emancipada do poder econômico, precisamos de novas regras – como financiamento público, como proibição de contribuições de empresas – para isso. E temos de ter regras transitórias para caminhar nessa direção, que não joguem fora a criança junto com a água do banho, certo?
Mas não é isso o que tem ocorrido. Pelo contrário. A tradição é criminalizar os indesejáveis, submetidos a penas rigorosas, e poupar amigos e aliados, através de uma prática conhecida.
Comparece-se a AP 470 com o mensalão PSDB-MG.Julgados pelo mesmo crime que conduziu importantes dirigentes do Partido dos Trabalhadores a prisão, os acusados da versão tucana sequer foram julgados – até hoje. Muitos já tiveram a pena prescrita. Não faltam acusados que dormem o sono dos justos com a certeza de que jamais correrão o risco de qualquer condenação. Os acusados tucanos que forem condenados – se é que isso vai acontecer um dia — terão direito a um julgamento com segundo grau de jurisdição, que foi negado aos principais réus do PT
A última notícia do caso é que a juíza que presidiu o julgamento em primeira instancia aposentou-se antes de terminar o serviço e ninguém foi nomeado para seu lugar. Se esse filme parece velho, lembre das denúncias que envolvem as obras do metrô paulista.
Muito instrutivo, não?

A fraudulenta superioridade dos economistas

Apesar de ser Bacharel em Economia, concordo integralmente com este artigo.

Nos tempos atuais, mal consigo contar nos dedos de uma só mão economistas dignos de credibilidade.
 
 
 
 





Jornal do Brasil, 30/03/2015




A fraudulenta superioridade dos economistas



Jornal do Brasil



 
O jornal espanhol El País  publicou neste domingo (29/03) um artigo do escritor e colunista venezuelano Moisés Naím. Ele desconstrói a imagem dos economistas, que seriam superestimados no mundo atual, e relembra um texto seu publicado há dez anos, em que já tratava do tema.  

"'A arrogância dos economistas foi rigorosamente confirmada por uma pesquisa publicada em uma de suas revistas especializadas. O Journal of Economic Perspectives  revela que 77% dos alunos de doutorado em economia das mais prestigiosas universidades dos Estados Unidos pensa que 'a economia é a ciência social mais científica'. Entretanto, tão somente 9% dos entrevistados afirmam que há consenso a respeito de como responder perguntas básicas da ciência econômica'.

Naquele texto também dei exemplos da surpreendente brecha que havia entre o pouco que sabiam e o muito superiores que se sentiam os economistas em relação a outros cientistas sociais, como cientistas políticos ou sociólogos", relembra Naím. Ele prossegue: "E em vista de sua vasta ignorância sobre temas básicos da ciência econômica, sugeri que ‘seria conveniente que os economistas trocassem a arrogância intelectual por uma atitude mais humilde e ver o que podem aprender com os outros". Isso não aconteceu. E não por que a ciência econômica tenha preenchido os vazios de conhecimento que a infestavam uma década atrás".

"A mesma revista em cujos dados baseei minha coluna há dez anos acaba de publicar um artigo intitulado (ironicamente) 'A superioridade dos economistas'. Nele se demonstra que uma década depois, e apesar da catastrófica crise mundial que não foram capazes de prever e cujas razões e soluções ainda debatem ferozmente, os economistas continuam acreditando que sua ciência é superior a todas as demais. Embora existam incipientes tentativas de recorrer a outras disciplinas para enriquecer suas teorias, a realidade é que os economistas estudam — e citam — predominantemente seus colegas", aponta Naím.

Os autores do artigo, Marion Fourcade, Etienne Ollion e Yann Algan, examinaram as 25 publicações científicas mais respeitadas em Economia, Ciência Política e Sociologia. Constataram que, entre 2000 e 2009, em todos os artigos publicados na The American Economic Review (AER), a mais importante, 40% das referências são a artigos publicados nas outras 24 principais revistas de economia. Tão somente 0,3% dos artigos citados provêm das revistas de sociologia e 0,8% das principais revistas de ciência política. Ou seja, em todos os textos publicados nas 50 revistas mais importantes de outras disciplinas durante toda uma década os economistas só encontraram cerca de 1% de artigos dignos de serem citados.

E há mais. À pergunta 'Você está de acordo ou em desacordo com a afirmação de que o conhecimento interdisciplinar é melhor que o conhecimento obtido por uma só disciplina?', a maioria (57%) dos professores de economia dos EUA ouvidos pela pesquisa estava em desacordo. Por outro lado, 75% dos professores de sociologia e 72% dos cientistas políticos pesquisados disseram que trabalhar de modo interdisciplinar era melhor.

Mas o desdém dos economistas pelas ideias de outros campos não é universal. Há disciplinas que os atraem muito. As finanças e os negócios, por exemplo. Enquanto que as citações dos economistas a outras disciplinas vêm diminuindo, as referências a artigos publicados em revistas acadêmicas especializadas em finanças experimentaram um vertiginoso crescimento

Luigi Zingales, um respeitado economista, adverte que a proximidade de seus colegas em relação ao mundo dos negócios e das finanças pode ameaçar sua independência e condicionar sua agenda, suas conclusões e recomendações.

Zingales constatou, por exemplo, que quando os autores de artigos acadêmicos não trabalham em faculdades de negócios seus textos são significativamente menos propensos a justificar os elevados salários que os executivos recebem e com frequência têm uma posição crítica a respeito. Dois terços dos sociólogos norte-americanos ouvidos pela pesquisa afirmaram que as empresas privadas têm lucros excessivos, enquanto que apenas um terço dos economistas acredita nisso. Quase nenhum professor de finanças ouvido estava de acordo.

A crise econômica que o mundo ainda vive e a incapacidade dos economistas para oferecer soluções sobre as quais há um significativo consenso revela que seu instrumental teórico necessita urgentemente de uma injeção de novas ideias, de métodos e hipóteses sobre a conduta humana. É difícil que isso ocorra enquanto prevalecer o arrogante isolamento intelectual da elite que atualmente rege de maneira férrea e míope as pesquisas econômicas”, conclui o artigo do El País.

Os interesses internacionais por trás da crise na Petrobrás







Jornal da AEPET,  30/03/2015 



Os interesses internacionais por trás da crise na Petrobrás


Por  Eduardo Maretti



A queda do preço das ações da Petrobras e fatos que se originam em entidades do chamado mercado, como a perda de grau de investimento, em 24 de fevereiro, ou a exclusão do índice Dow Jones de sustentabilidade, como na última semana, fazem parte de uma estratégia deliberada de ataque à estatal brasileira, com motivações político-econômicas internacionais. A avaliação é do professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), consultor da ONU e economista Ladislau Dowbor.

Essas coisas têm que ser vistas num plano geopolítico. Fazem parte da mesma guerra que levou à invasão do Oriente Médio, às tentativas de desestabilização do governo da Venezuela, outra grande fonte de petróleo. No nosso caso, é o pré-sal que desperta interesse internacional”, diz Dowbor. “A Petrobras está num processo de pressão internacional que se apoia em forças locais.”

O preço das ações preferenciais da Petrobras caiu 52%, considerando o preço em real convertido em dólar, na comparação entre o que valia em 19 de março de 2014 e um ano depois, 19 de março de 2015. “Não tem nada de incorreto nessa conta. O que é incorreto é achar que isso significa o que realmente a Petrobras está perdendo em valor”, afirma Dowbor.

O professor vê ingenuidade na crença largamente alimentada pela imprensa tradicional de que é apenas o mercado ou seus mecanismos que promovem fatos como a queda do preço do petróleo, que em junho de 2014 custava US$ 115 o barril e hoje está em US$ 54. Em artigo que publicou em seu blog, Dowbor afirma: “A visão que temos, em grande parte devida aos comentários desinformados ou interessados da imprensa econômica, é que as flutuações de preços da commodities resultam das variações da oferta e da demanda”.

Não são mecanismos de mercado que fazem cair o preço para a metade. Isso tem que ser visto pela área política, e não pela econômica. É um sistema especulativo planetário. É a mesma coisa que aconteceu com a degradação do grau de investimento (da Petrobras, em fevereiro). Faz parte de um ataque”, completou à Rede Brasil Atual.

A conta do economista se baseia no fato real de que as reservas do pré-sal não se desvalorizaram e o estoque de petróleo continua sendo o mesmo. “Se, com todo o ataque, conseguirem mudar a situação política do país, com a troca de presidente ou o que seja, e conseguirem privatizar a Petrobras, as ações vão explodir e quem tiver comprado na baixa vai ganhar. São os mesmos especuladores. O ataque é esse, é um ataque nacional e internacional. Estão fazendo isso com a Argentina, com a Venezuela, com os países que não se dobraram aos interesses do ‘mercado’.”

O secretário de Relações Internacionais da Federação Única dos Petroleiros (FUP), João Antônio de Moraes, analisa da mesma forma os fatos gerados por entidades vinculadas ao mercado ou que refletem seus índices. “O Brasil está sob um cerco de ataques. A Petrobras, como maior agente econômico do país, está neste contexto. É uma ação internacional muito bem montada que busca abalar o Brasil.”

Moraes acredita que o governo brasileiro teria como, no mínimo, minimizar os efeitos dos ataques. Para ele, o país deveria se aproveitar do momento em que as ações da Petrobras estão baixas e comprar papeis da companhia. “Essa medida teria dois efeitos: aumentaria o controle do povo sobre a empresa, tão estratégica, e ajudaria a derrubar a tática deles de prejudicá-la.

domingo, 29 de março de 2015

Distorções no combate à corrupção

 
 
 




Carta Capital, 29/03/2015




Distorções no combate à corrupção



Por Pedro Estevam Serrano




A presidente Dilma Rousseff assinou decreto que regulamenta a  Lei Anticorrupção e enviou ao Congresso um conjunto de medidas com as quais pretende, entre outros, tornar crime o enriquecimento ilícito de servidores públicos, a prática de caixa dois e a lavagem de dinheiro para fins eleitorais. Promessa de sua campanha à reeleição, as propostas foram apresentadas também como resposta do governo às  demandas da sociedade.

A centralidade do tema da corrupção nas manchetes dos jornais, fruto de uma relação complexa que a mídia estabelece com casos mais rumorosos, acompanhada de uma onda moralista e conservadora que tem contaminado o ambiente político e social, explica a extrema relevância que o tema vem ganhando na agenda pública.

Não há dúvidas de que há méritos nas medidas anunciadas, mas o combate à corrupção no Brasil já tem se intensificado muito desde a redemocratização e, em especial, a partir do governo Lula, que, além de garantir maior autonomia ao Ministério Público Federal, valorizou significativamente a carreira dos delegados federais, atraindo para a Polícia Federal os melhores quadros, conferindo à instituição autonomia no exercício de suas funções nunca antes vista. O Judiciário tem acompanhado esse movimento e, ao contrário do que diz o senso comum, existe hoje no plano federal uma máquina de combate à corrupção muito mais independente, autônoma, e ativa – realidade que não se espalhou para a esfera dos Estados e municípios.

Essa inegável melhoria ocasiona, como primeira consequência, maior percepção da corrupção pela população. Apesar de ser um fenômeno que acompanha o Estado brasileiro desde antes da sua origem, hoje, a prática de corrupção tem maior visibilidade justamente porque é mais punida. Não vivemos o auge da corrupção, como muitos querem acreditar, mas um momento emblemático de punição daqueles que cometem crimes de corrupção.

A exposição da corrupção, ao mesmo tempo que, em alguma medida, inibe sua prática, também gera distorções, quando a ideia de um sistema impessoal de combate à corrupção é substituída, na narrativa da mídia, pela figura do “justiceiro”, ou seja, de um determinado agente do judiciário, do MP ou da polícia, apresentado como autor de uma operação ou de um procedimento que, na verdade, tem como sustentáculo uma engrenagem de que ele é apenas uma peça.

Essa sinergia estabelecida entre mídia e órgãos de apuração, em muitos casos, envolve inclusive cometimento de crime pelo agente público, que, para assumir o protagonismo midiático de um determinado caso, vaza informações sigilosas, prejudicando o próprio curso da apuração e vulnerabilizando os direitos fundamentais dos acusados. Na mídia, a narrativa da defesa tem voz nitidamente reduzida e é o espaço antes do linchamento do que do julgamento público.

A título de combater a impunidade e a corrupção, o MP tem defendido mudanças no Código de Processo Penal, para que provas ilícitas possam ser consideradas para fins de condenação, quando isso atender ao interesse público. Ou seja, propõe a flexibilização de um direito fundamental, que é o direito de só ser acusado ou condenado mediante provas lícitas, em favor de um conceito indeterminado de interesse público, que, na prática e no caso concreto , será determinado pela vontade arbitrária da autoridade, uma distorção característica de regimes de exceção.

Antes de exigir que a corrupção seja combatida a qualquer custo e por quaisquer meios, é preciso revisitar a história e lembrar que foi sob o pretexto de extirpar a corrupção que Robespierre instituiu o Terror e o genocídio na França, a Alemanha nazista produziu o Holocausto e a ditadura militar brasileira torturou e matou seus opositores. O que uma sociedade que vive sob um real Estado Democrático de Direito precisa perseguir é o equilíbrio entre um sistema impessoal de combate à corrupção e a garantia aos direitos fundamentais do acusado. Só assim será possível afastar o perigo da barbárie e da incivilidade que nos ronda.

Uma enfermeira brasileira no front do ebola

 
 
 
 




Estadão, 29 de março de 2015



A enfermeira brasileira no front do ebola



Por Adriana Carranca
 
 
A enfermeira gaúcha Halima Husein (de hijab preto), entre colegas na Etiópia
 
 
Das quatro tendas que abrigavam os 60 pacientes infectados pelo vírus Ebola sob seus cuidados em um hospital de campanha erguido às presas em Monróvia, capital da Libéria, a enfermeira brasileira Halima Husein via desaparecer uma “tenda” a cada dia. Quinze mortos diários, dia após dia. É uma baixa impensável mesmo para os mais habituados às tragédias.

Os corpos eram desinfetados e enterrados a uma distância segura, com todos os pertences. Não restavam vestígios deles. Não cabiam despedidas. O Ebola mudou os hábitos de vida e os rituais de morte por onde passou.

À medida que o contágio avançava para um surto descontrolado, somaram-se a esse cotidiano macabro as cremações arbitrárias. Era uma questão de saúde pública, mas não só isso – os responsáveis por abrir covas e enterrar os mortos estavam à beira do colapso. Foi a primeira vez em toda sua história de socorro a tragédias que a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), para a qual Halima trabalha, teve de importar incineradores para dar vazão aos cadáveres.

Em um ano, desde seu início, em março de 2014, o surto fez mais de 10 mil mortos. É o equivalente a cinco vezes o número de vítimas fatais em todos os 28 surtos da doença somados desde que o vírus foi identificado, em 1976. Ele não se alastrou apenas em número, mas geograficamente. Antes concentrado na África Central, o Ebola chegou ao oeste do continente com rapidez nunca vista. Foi uma tragédia sem precedentes.

Agora que a epidemia dá sinais de esmorecer, com redução da velocidade de contágio, as organizações internacionais começam a avaliar seus efeitos mais duradouros e menos visíveis, porém profundos, como o impacto psicológico nos que vivenciaram a calamidade perto demais para se esquecer, como Halima.

Filha de refugiados palestinos que sonhava desde pequena em trabalhar com ajuda humanitária, Halima viu a fome secar o corpo de crianças em um hospital no sul desértico da Etiópia. Acompanhou o flagelo de vítimas da doença de Chagas no Paraguai, da malária no Sudão do Sul e da desnutrição infantil no Iêmen, até uma revolta estourar na capital do norte iemenita, onde estava, e os feridos inundarem o hospital.

Em Misrata, na Líbia, esteve “muito perto da frente de batalha”, em meio a “um conflito direto”; feridos e amputados chegavam-lhe às mãos no eco das explosões. No Líbano e Turquia, recebeu refugiados sírios massacrados no fogo cruzado entre as forças do presidente Bashar Assad e rebeldes. Nesse território sem lei Halima ingressou três vezes, em missões de socorro. “Num hospital onde passávamos as noites você podia ouvir os aviões do governo bombardeando a cidade. A gente sabia que eles estavam bombardeando escolas, comércios… E a gente sabia que naquele momento havia muita gente morrendo”, descreveu Halima ao Aliás.

Lidar com a morte faz parte do cotidiano de médicos e enfermeiras como ela. Mas não da maneira vista na epidemia do vírus. Ao falar da experiência no hospital de Monróvia, sua voz se torna ofegante, o ar parece faltar-lhe. “Você vê os corpos… Você vê corpos deixando as tendas toda hora, a ponto de aquilo se tornar natural e você… você, imune a emoções”, ela relembra. “Nada te prepara para ver a morte desse jeito. Não nessa dimensão. Não desse jeito.”

A gaúcha Halima iniciava o dia às 7 horas reunida com o restante da equipe para discutir os casos do dia anterior. Ao chegar à clínica, por volta das 8, parte dos pacientes havia desaparecido de noite. Até o fim do expediente, por volta de 20 horas, outros sucumbiriam. Entre um quarto e metade, no total. Era uma rotina mórbida de dimensão assustadora até nas pandemias. “Nunca tinha visto tanta gente morrer. Bá, é uma das piores coisas que tu podes ver. De a pessoa estar sentada, conversando contigo, você se vira para dar atenção a outro paciente e, quando volta, ela caiu morta do teu lado. Nas guerras, pelo menos temos a chance de salvar os que chegam até nós. Com o Ebola é diferente. Você tem uma sensação muito forte que é a de incapacidade. Não está nas suas mãos, não importa o que você faça, como enfermeira ou como pessoa. É um sentimento difícil. Eu vi muitos colegas chorando.”

A impossibilidade de contato direto com os pacientes, o estigma da doença, as condições precárias, o dilema vivido entre o desejo de ajudar e o medo constante de ser contaminado, tudo agrava o calvário dos que cuidam dos infectados pelo Ebola. “O que eu mais temia era morrer sem ter minha família por perto”, diz Halima. Ela estava em treinamento na Bélgica quando houve o primeiro caso de contaminação de um profissional da MSF, uma enfermeira francesa. “Foi o momento de sentar, pensar e tomar a decisão”. Ela decidiu embarcar para a Libéria.

Àquela altura, julho de 2014, o Ebola havia chegado às portas de Monróvia com força assustadora, ceifando vidas entre os que estavam ali para salvá-las – quatro enfermeiras do Hospital Phebe, na periferia da cidade, e um médico do Centro John F. Kennedy Memorial morreram. Em agosto, o sistema de saúde do país entrou em colapso. Pacientes com doenças como malária eram recusados para dar lugar a contaminados pelo Ebola. Mesmo assim, os leitos se tornaram insuficientes. Em 5 de agosto, o presidente da Libéria decretou estado de emergência. Três dias depois, com incompreensível letargia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o Ebola emergência global. A declaração coincidiu com o contágio de dois americanos da organização cristã Bolsa Samaritana.


Negligência

Convencidos da catástrofe, ONU, OMS e o Centro de Controle de Doenças dos EUA mobilizaram a maior operação da história para o controle de uma epidemia. Nos três meses entre o primeiro caso e o despertar da comunidade internacional, no entanto, milhares de pessoas já tinham sido infectadas. Muitas morreram antes de saber o que debilitara seus corpos.

Para o surto de Ebola ter chegado a tal nível de descontrole foi preciso que muitas instituições falhassem. E elas falharam, com consequências trágicas e evitáveis”, declarou Christopher Stokes, diretor-geral da MSF, na semana passada. Em 31 de março, a MSF alertara para a disseminação geográfica do vírus de forma “sem precedentes”, após a doença ingressar na Libéria pela fronteira com a Guiné. Na ocasião, a OMS negou qualquer diferença de surtos passados. Novo alerta foi feito em 21 de junho, quando a epidemia já estava “fora de controle”, segundo a MSF. 

Muitos enfermeiros e médicos morreram no início da epidemia porque desconheciam os protocolos, não sabiam sequer que estavam diante do Ebola. Quando a MSF chegou a campo, havia desinformação, desconfiança e medo”, relata Halima. Àquela altura, corpos eram largados no asfalto. Hospitais e clínicas superlotadas, inclusive da MSF, eram obrigados a recusar doentes infectados mesmo sabendo que, nas ruas, contaminariam outros. Sobrecarregados e amedrontados, médicos e enfermeiros liberianos entraram em greve. A violência se espalhou no rastro do vírus.

O que me motivou (a ir para a Libéria) foi saber que as pessoas precisavam ser atendidas, mas não tinham mais como. Não que meu medo fosse zero, porque o medo é algo natural. Mas, quando você tem a oportunidade ajudar numa situação como essa, é difícil recusar”, disse Halima. Em um ano desde o início do surto, 500 trabalhadores da saúde morreram infectados pelo Ebola na Guiné, Libéria e Serra Leoa, países onde a escassez de médicos e enfermeiros era realidade mesmo antes da epidemia. Desses, 14 eram da MSF.

Para evitar contaminação, os protocolos de segurança eram rígidos. No início, Halima teve dificuldade para se adaptar à forma de lidar com os pacientes, separada deles por um macacão de denso material impermeável, avental e touca cirúrgica, botas, máscara, óculos de proteção, duas luvas e um respirador. Nada atravessava o aparato, nem mesmo o ar, e a temperatura lá dentro chegava a 50°C. “Eu os via inteiros, mas eles só podiam ver meus olhos”, lembra. Os doentes a reconheciam pelo nome escrito no jaleco. E o que eles diziam, não trazia alento algum. “Halima, por que está fazendo isso? Eu vou morrer, ouviu muitas vezes, enquanto tentava alimentá-los e aplicar-lhes a medicação.

Ao todo, o hospital tinha 180 leitos – e não parava de crescer. Quando chegavam aos cuidados de Halima, os pacientes já tinham percorrido o caminho dos condenados pelo vírus, como num corredor da morte. A entrada era a ala de triagem, onde eram isolados aqueles com sintomas de contágio. Estes eram, então, levados para a ala dos suspeitos e testados. Poucos voltavam daquele ponto. A maioria seguia dali para a “enfermaria de confirmados”, onde Halima os aguardava. “Havia tanta dor nos olhos deles…”


‘Acabou o tempo’

Dentro do uniforme de proteção amarelo, Halima tentava não ceder ao calor intenso, nauseante. “É muito, muito quente. Você transpira o tempo todo”, disse. “Um dia, eu estava com uma criança no colo e comecei a passar mal. Minha colega percebeu e disse: Acabou o tempo’. É um comando do protocolo e temos de obedecer, para não correr riscos. Tive de largá-la e sair. Mas é duro ver os pacientes sem a família, na companhia apenas de outros que estão morrendo. Então, você tenta se segurar. À noite, dormíamos de exaustão.” 

De volta da missão, já em Bruxelas, onde teve atendimento psicológico, um sonho perturbava Halima: ela estava de volta à clínica de Monróvia, com os colegas da equipe, todos infectados e aprisionados àquele lugar. Cenas reais ainda voltam a sua mente, em flashbacks involuntários e inoportunos. Como a de uma mãe que Halima orientava a alimentar o filho de 6 anos, enfraquecido pelo Ebola. “Ela conversava comigo e simplesmente caiu para o lado, morta, na frente do filho”, lembra. “Eu vi aquela criança apática. Ele não teve reação, apenas virou o rosto. Eu desinfetei o corpo e o cobri, porque outros pacientes olhavam. Não gosto nem de pensar para não ficar remoendo o que a gente viu ali.” 

Nos 21 dias de isolamento no Brasil, Halima “não queria tocar em nada nem em ninguém”. “Você fica um pouco paranoica. Tem o choque de ter visto tantas mortes, o choque de saber que não tem cura. Você sempre se pergunta: será que eu podia ter feito mais por eles?


‘O vírus da morte rápida’

Na África ocidental pós-epidemia de Ebola não há apertos de mão ou abraços. As pessoas conversam mantendo certa distância, pelo menos o suficiente para não se deixar alcançar pela saliva do outro. A peste que os africanos chamam de “vírus da morte rápida” deixou no rastro da passagem mudanças econômicas e socioculturais que afetaram comunidades inteiras.

“Não há dúvida de que o surto está afetando seriamente nossa existência como nação. O Ebola está nos forçando a mudar a forma como nos cumprimentamos, como mostramos afeição uns pelos outros, como cuidamos dos doentes”, escreveu o reverendo James B. Sellee, no Liberian Observer. “O Ebola está minando laços de família e causando divisões. Está matando nossa já frágil economia e faz isso rapidamente.”

A queda no número de infectados pelo Ebola em 2015 foi recebida com entusiasmo pela comunidade internacional, mas a velocidade de contágio hoje ainda é maior do que em qualquer surto anterior. Em 20 de março, um novo paciente testou positivo na capital Monróvia após mais de duas semanas sem casos confirmados.
 
 

O ajuste é um grande desajuste








Folha.com, 29/03/2015



Desajuste



Por Janio de Freitas




A realidade econômica e social vivida pelo Brasil em 2014 começou a ser mostrada no final da semana pelo IBGE, que tem as estatísticas menos desconfiáveis. São dados, incluído o cabalístico PIB, que não atestam a escandalosa crise econômica na qual o nosso dia a dia mental e físico está atolado há mais de quatro meses.

O Brasil, a partir do próprio governo e com os alto-falantes de sempre, diz-se, e diz ao mundo, que 2014 o deixou em estado de coma. Não é verdade. O Brasil não é, como está apresentado, a Grécia, não é a Espanha, não é Portugal, nem se assemelha a esses ou qualquer outro posto em desgraça pela crise ocidental criada por corrupção e golpes da rede bancária dos Estados Unidos.

Os economistas alimentados pelo "mercado" e a classe que busca fáceis lucros financeiros ou políticos podem dizer, como lhes convém, que o Brasil está em estagnação. Os governistas e seus aliados menos ou mais falsos podem dizer que o Brasil está em situação estável. O que importa nas duas qualificações é ambas significarem que, se o país não evoluiu em muitos sentidos, também não sucumbiu nem, guardadas as proporções, resistiu menos aos efeitos da crise americana do que as potentes Alemanha, França e Itália.

Como se explica a espetaculosa catástrofe de que se fala em todas as horas por todos os meios? Na campanha da eleição presidencial, Aécio Neves e Marina Silva referiam-se a inflação alta e a desempenho pífio da indústria, atribuído ao governo. Não era de crise que falavam. Mal se decidira a eleição, e sem qualquer motivo perceptível, Dilma de repente atira a notícia de que seu ministro da Fazenda será o neoliberal Joaquim Levy, para fazer um tal "ajuste econômico". Que ajuste? Por quê? E por que um adepto da política mais conservadora, que antes mesmo de assumir já justificava o "desempenho fiscal mais sólido" como "melhor para as ações"?

Com tamanho desajuste de ideias, Dilma decretou estar o país em crise. Mesmo que não estivesse, Dilma acabava de criar o veio a ser explorado pelo vício dos conservadores brasileiros, o de reverter sem eleições o resultado eleitoral.

É claro que nada senão o mau passo de Dilma pode explicar a criação do pessimismo e da crença generalizada nas manipulações de aspectos da economia. Não é a realidade de 2014 a responsável pela realidade de 2015.

O tal PIB cresceu 0,1%, que a rigor não é mais que um zero envergonhado, e a produção industrial recaiu 1,2%, o que não é novidade porque pífio não foi o desempenho no ano, é a indústria brasileira. No maior número de quesitos a economia esteve bem, ou não foi mal ou, ao menos, foi melhor do que a vizinhança. Mesmo pequenos indicadores o refletem: quando se lê a notícia de que "setor de biscoitos e massas fatura 11,5% mais em 2014", os dispensáveis biscoitos mostram a que gastos o bom nível de consumo até se permitiu. Nada de crise.

A tão falada alta da inflação não pôde evitar o desprazer de vê-la fechar o ano abaixo do teto fixado de 6,5%. Resultado muito bom considerados o problemático e longo período eleitoral e outras circunstâncias. Só em janeiro e no curto e carnavalesco fevereiro deste ano, a inflação do ajuste de Levy/Dilma chegou a 2,48% no IPCA e 2,66% no INPC.

O desemprego estava reduzido a 4,3% em dezembro, e a remuneração do trabalho, com altas no ano que chegaram a 4% (outubro), em dezembro ainda conseguia aumento de 1,7%. O desemprego em fevereiro de 2015 chegou a 5,9%, e cresce em março. A remuneração do trabalho teve resultado negativo de 0,5%.

Desde 1888, com o fim da escravidão, o emprego remunerado é o direito primordial dos que lutam pela vida. E o primeiro atingido quando predomina a política em favor dos que têm a vida a lutar por eles. É o que retorna com o ajuste de Levy e Dilma.

Mas Dilma traz ao menos uma novidade, em comparação com outros praticantes do neoliberalismo e com os submetidos ao FMI: Dilma pressiona contra uma emenda parlamentar que dê aos aposentados a correção que uma medida provisória concede ao salário mínimo. Desse modo, tão original, os aposentados passam a pagar, com a correção que deixam de receber, o salário mínimo dos outros.

O ajuste é um grande desajuste.