Carta Maior, 14/03/2015
A virada paulista
Por Saul Leblon
Se existe aprendizado em política, as mobilizações registradas no Brasil nesta sexta-feira, 13, mas sobretudo, a passeata de cerca de 50 mil pessoas que tomou conta da avenida Paulista, em São Paulo debaixo de um temporal diluviano, não deve ser tratada com negligência.
Nem pela direita.
Quanto mais pela esquerda.
A manifestação robusta que irrompeu na avenida representativa do coração do conservadorismo brasileiro surpreendeu o mundo político, surpreendeu a mídia conservadora, surpreendeu os sindicalistas, surpreendeu um PT, de lideranças graúdas inexplicavelmente ausentes, e certamente surpreendeu também o golpismo, assim como não era esperada tampouco pelo governo.
Quem esteve lá sabe do júbilo estampado nas faces de homens e mulheres de origem predominantemente popular que ali se reuniram vindos de pontos distantes da Grande São Paulo, igualmente deslumbrados ao se identificarem com a alma e o corpo lavados como protagonistas de um acontecimento ímpar.
Uma virada paulista.
O ato que que se estendeu pelos três quilômetros da avenida, de dimensões absolutamente impensáveis horas antes, desafiou todas as circunstancias adversas que o cercavam.
Tinha tudo para dar errado.
Uma agenda ambígua de apoio e crítica ao governo, a convocação confusa, quase revogada no meio do caminho, o distanciamento desencorajador do governo, o vai não vai das lideranças do PT – que, ao final, não vieram, o fim de tarde de uma sexta-feira, ainda por cima 13, a chuva -- imprevista pela meteorologia, que para cúmulo das provações desabou como um temporal copioso na descida da Consolação, ademais do medo de enfrentamentos com a direita, martelado insistentemente pela mídia, etc.
Enfim, só um milagre autorizava apostar no êxito de um ato num quadro político até então tomado por uma vertiginosa e aparentemente incontrolável escalada golpista.
Daí o olhar cúmplice do tipo ‘nós fizemos’’ que os marchadores trocavam em meio à cortina de água que chicoteava de cima e gelava os pés à caminho da praça da República, na altura do cemitério da Consolação, quando a culatra da passeata ainda deslizava sua grandiosidade pela Paulista.
Alguns preferiram não acreditar no que viam.
Caso escandalosamente deliberado do O Globo, por exemplo.
Incapaz de explicar o que deu errado com a sua esférica avaliação de um governo Dilma crepuscular e isolado, o jornal dos Marinhos, sapecou em seu site um irrisório ‘atos pró-governo reúnem 33 mil em 24 estados’.
Assim, numa aritmética sem pejo, sonegou aos heróis da virada paulista uma existência física, mas sobretudo política, inscrita no caudal sem fim que o seu telejornalismo não teve a coragem de mostrar em perspectiva e tampouco nas imagens aéreas feitas e sonegadas aos seus telespectadores.
A blindagem cognitiva fica escancarada quando a própria e insuspeita Datafolha, de conhecidas tradições, reconhece o que era ostensivamente incontornável: havia mais de 40 mil pessoas emendando toda a extensão dos três quilômetros da avenida Paulista até as proximidades da Igreja da Consolação, mais dois quilômetros abaixo.
Alguns, os mais entusiasmados, falavam em 100 mil lavadas pelas das águas de março na descida da Consolação, rumo à praça da República.
Que tenham sido 50 mil. Ou, por baixo, os 41 mil do Datafolha.
A verdade é que depois de aguaceiro humano e político desta improvável sexta-feira 13, o Brasil não é o mesmo.
E o Brasil não é o mesmo porque em São Paulo a rua não é mais da direita.
Não sendo mais da direita no coração do conservadorismo brasileiro, a agenda política nacional mudou.
E de tal forma que não importa o que acontecer domingo na mesma avenida porque ela já não é mais o balneário da reação.
Poucas vezes foi tão importante a presença das forças progressistas e democráticas nas ruas como aconteceu nesta sexta-feira.
Não importa o que ocorrer dia 15 , a virada já aconteceu.
A agenda do golpe foi maciçamente afrontada – no seu núcleo duro e em mais 23 cidades brasileiras.
Mas o que se deu em São Paulo foi adicionalmente significativo por enviar um recado de uma parcela específica da população para o centro da disputa política.
O que se via debaixo do aguaceiro era maciçamente um painel do rosto da periferia brasileira.
Um rosto de maciça composição popular que demonstrou o poder de mobilização da CUT e dos movimentos populares.
O rosto de um personagem que não tocou panelas no levante da varanda gourmet no domingo anterior.
Mas que agora mandava um recado líquido e pluvial a quem possa interessar.
A contrapelo de muitos, São Paulo provou que o capital político do governo Dilma é maior do que diz o agendamento conservador. Maior do que o próprio governo e o PT supõem.
Resta não desperdiçá-lo.
Um bom começo é aprender a lição do poder que tem o desassombro político.
A política não é uma equação estática.
A mudança de uma peça altera o equilíbrio de todo o tabuleiro.
A pretensão tucana de sangrar o governo Dilma até 2018 e assim ferir de morte também uma eventual candidatura de Lula, só ganha aderência real se o outro lado se enquadrar no figurino da paralisia política.
A prostração pode mudar com uma iniciativa que inaugure uma nova referência política.
Ou não foi a versão extremada disso que aconteceu em 24 de agosto de 1954?
O sacrifício pessoal de Vargas e uma carta testamento memorável escancaram a natureza antipopular do cerco conservador ao seu governo incendiando a revolta nas ruas contra os adversários golpistas.
Não é preciso o gesto extremo, porém, para reverter a escalada de um golpe de Estado.
O importante a reter – que a virada paulista desta sexta-feira reafirmou — é a coragem da iniciativa política.
Em 1961, a mesma cepa que hoje se propõe a sagrar o Brasil tentou impedir a posse de Jango, após a renúncia de Jânio Quadros.
Só uma resistência organizada – é oportuno escandir a palavra or-ga-ni-za-da – impediria a consumação do golpe branco.
Mas ela tardava.
Foi então que Leonel Brizola mexeu uma peça no tabuleiro do xadrez político.
Em 27 de agosto, ele personificou o gesto redefinidor com a criação da ‘Cadeia da Legalidade’.
De início, formada por uma rede de rádios gaúchas, a resistência operava do porão do Palácio Piratini, para onde o líder gaúcho requisitara os transmissores da rádio Guaíba, de Porto Alegre.
As tropas da Brigada Militar protegiam o Palácio em vigília diuturna.
Através das ondas médias e curtas ocupava-se o noticiário 24 horas por dia.
Brizola conclamava o povo a ir às ruas em defesa da legalidade democrática, contra o golpe da junta militar que, em Brasília, recusava autorização para Jango, em viagem oficial ao exterior, retornar ao país.
Aos poucos, outras emissoras de Porto Alegre e do interior do Estado uniram-se à Rede, que chegou a cravar 100% de audiência no estado.
O efeito contagiante da resistência romperia a fronteira gaúcha para formar uma cadeia com 104 emissoras de todo o Brasil e de países vizinhos.
Boletins noticiosos em inglês, espanhol e alemão passaram a ser emitidos.
Foram 10 dias que abalaram o Brasil.
Finalmente, o III Exército rachou e declarou solidariedade ao movimento.
O conjunto forçou o Congresso conservador a buscar uma solução negociada.
Em 7 de setembro de 1961, Goulart receberia a faixa presidencial.
O inusitado ocorrido na avenida Paulista nesta sexta-feira 13 contém a contagiante vitalidade dos gestos que devolvem o poder de iniciativa ao campo progressista.
Forças que se imaginava menos mobilizáveis e mais frágeis ergueram-se pelos próprios cabelos para devolver a bola do jogo ao governo e ao PT.
Cabe-lhes não desperdiçar o precioso espaço reconquistado.
Um bom começo é perder o medo da rua.
Mais que perder o medo.
Apostar na rua.
Nas próximas manifestações - porque serão necessárias - seria interessante que lideranças do partido, inclusive as mais graúdas, voltassem a essa origem.
E marchassem ao lado do povo.
Esse povo ‘pago’, segundo a mídia, que veio das periferias distantes tem algo a ensinar às suas lideranças.
Em defesa da democracia, do pré-sal e do Brasil é preciso sair na chuva para se molhar.
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