terça-feira, 10 de março de 2015

“SwissLeaks”: O HSBC e o estridente silêncio da grande imprensa brasileira







 Terça-feira, 03 de Março de 2015




CASO HSBC
O silêncio da mídia


Por Randolfe Rodrigues 




O HSBC é um gigante do mercando financeiro mundial, com 254 mil funcionários em 6.200 escritórios e agências em 129 países, somando mais de 52 milhões de clientes no mundo inteiro.

No ranking de 2014 da revista inglesa The Banker, o HSBC, com sede em Londres, aparece como a segunda marca bancária mais valiosa do mundo, no valor de quase 27 bilhões de dólares.

Um poderio que se manifesta também no Brasil, onde o banco assumiu as operações do antigo Bamerindus. Com sede em Curitiba, o HSBC opera em 565 municípios brasileiros com 933 agências, além de quase 500 postos de atendimento bancários e mais de 5 mil caixas automáticos, com uma carteira de 3 milhões de clientes individuais e outros 320 mil como empresas.

Numa instituição tão grande, um passo em falso se transforma em desastre.

O desastre virou um escândalo planetário no início de fevereiro passado, quando o HSBC virou protagonista, na definição do jornal londrino The Sunday Times, damaior evasão de impostos da História”. A notícia tem como fonte original um especialista em informática do HSBC, o franco-italiano Hervé Falciani, hoje com 43 anos, que o banco havia transferido de Mônaco para sua filial suíça em Genebra. Lá, ele descobriu o método criminoso que ele definiu assim para a revista alemã Der Spiegel: “Bancos como o HSBC criaram um sistema para enriquecer às expensas da sociedade, através da assistência para evasão de impostos e lavagem de dinheiro”.

Procurado pela polícia suíça como “ladrão de dados bancários”, Falciani fugiu para a França em 2008 carregando uma bagagem explosiva: 600 arquivos com mais de 100 GB (gigabytes) de 60 mil documentos de 2006 e 2007 contendo os dados bancários de 106 mil clientes abonados de 203 países, operando uma fortuna de 204 bilhões de dólares através de 20 mil empresas off-shore ancoradas em paraísos fiscais e numa discreta rede de conexões financeiras internacionais.

Especialistas da Direção Nacional de Investigações Tributárias da França começaram a decifrar os dados codificados fornecidos por Falciani, depois compartilhados com autoridades do Reino Unido, Itália, Espanha, Bélgica e Grécia. Em 2012, Falciani depôs ante um subcomitê de investigação do Senado dos Estados Unidos, mais preocupado com a eventual ramificação da lavagem de dinheiro com o terrorismo. A investigação do Congresso só não evoluiu porque, em julho de 2013, o HSBC aceitou pagar uma multa de 1,9 bilhão de dólares para não ser levado a juízo nos Estados Unidos pela acusação de lavar dinheiro para os cartéis latino-americanos das drogas.

Até que os arquivos explosivos de Falciani chegaram às mãos do mais importante jornal da França, o Le Monde.


O Brasil no topo

A dimensão planetária da denúncia sobre o HSBC era tão massiva que levou o jornal Le Monde a abrir mão da exclusividade do material de Falciani e pedir ajuda na investigação ao Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos – ICIJ, na sigla em inglês –, uma rede global de 185 profissionais de investigação espalhados por 65 países. Concluído o trabalho, o material foi repassado pelo ICIJ a grandes jornalistas de jornais importantes do mundo inteiro.

E o que isso tudo tem a ver com o Brasil? Tem tudo a ver.

A denúncia contra o HSBC mostrou o Brasil no topo da cadeia criminosa. Na lista revelada por Falciani, estão 8.667 brasileiros que respondem por 6.606 contas que movimentaram ou depositaram ali, entre 2006 e 2007, cerca de 7 bilhões de dólares.

Em número de clientes endinheirados do HSBC, o Brasil ocupa um destacado quarto lugar, superado apenas pela Suíça (11.235 nomes), França (9.187) e quase empatado com o Reino Unido (8,844). Em volume de dinheiro depositado, o Brasil conseguiu sua vaga no Top Ten do ranking: é o nono colocado, acima de potências de milionários como Arábia Saudita (11º lugar) e de notórios paraísos fiscais como Ilhas Cayman (15º), Ilhas Virgens Britânicas (17º), Luxemburgo (24º), Liechtenstein (27º) e Jersey (34º).

Em reais, isso representa uma quantia equivalente a 20 bilhões de reais, exatamente o que o governo Dilma Rousseff pretende arrecadar com o pacote de maldades que resume o ajuste fiscal desenhado pelo ortodoxo ministro da Fazenda, Joaquim Levy.

O conteúdo dos documentos do HSBC ganhou as manchetes e os espaços da grande imprensa no mundo, sob a grife de “SwissLeaks”.

O Le Monde, durante dois dias seguidos, dedicou vinte páginas para o assunto. O escândalo ganhou a primeira página de jornais importantes como o Financial Times, na Inglaterra, e o The New York Times, nos Estados Unidos. Hervé Falciani, o pivô da denúncia, ganhou a capa da revista L’Express, o mais importante semanário francês, como “O homem que faz tremer o planeta”.

No Brasil, estranhamente, o “SwissLeaks” do HSBC mereceu um estridente silêncio da grande imprensa. Apesar do volume de dinheiro envolvendo brasileiros, que rivaliza com as falcatruas descobertas pela Operação Lava Jato, o assunto ficou pendurado em notas modestas, quase envergonhadas, penduradas em lugares discretos da primeira página ou escondidas nas páginas internas.


Nota seca

Apesar do evidente interesse público de um assunto tão polêmico e bilionário, a pauta do “SwissLeaks” vaza na imprensa brasileira pelo esforço quase solitário de blogs e blogueiros desvinculados da grande mídia. Blogs como Megacidadania e O Cafezinho, sites como Brasil247 e Diário do Centro do Mundo ou blogueiros como Miguel do Rosário e Luís Nassif vasculham e revelam dados que não se vê, nem se lê nos grandes veículos de comunicação.

Na terça-feira (17/2), o site Jornal GGN, de Nassif, repassou uma informação de um jornalista de Hong Kong, na China, que conseguiu descobrir os nomes e endereços de 93 contas da lista do HSBC relacionadas a brasileiros. Uma ninharia perto dos quase 9 mil brasileiros que fazem parte desta listagem ainda inédita.

Para milhões de brasileiros, o Jornal Nacional, da Rede Globo, ainda é a única, talvez a mais importante fonte de acesso às notícias do país e do mundo. No sábado (21), o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, anunciou que o HSBC entrou em sua alça de mira. Esta decisão mereceu do JN daquela noite uma nota seca, de apenas três frases e 59 palavras, lidas em 25 segundos pela apresentadora do telejornal, sem qualquer imagem:

“A Procuradoria Geral da República abriu investigação para apurar se brasileiros mandaram dinheiro ilegalmente para a Suíça, no caso que ficou conhecido como SwissLeaks. De acordo com a Associação Internacional de Jornalistas (sic), o banco HSBC teria ajudado clientes a esconder bilhões de dólares entre 2006 e 2007. Entre os investigados estão acusados da Operação Lava Jato”.

E mais não disse, nem mostrou o Jornal Nacional.

Nesse imenso cone de silêncio sobre questão tão grave, é ainda mais surpreendente que uma lista tão importante seja de conhecimento de um único jornalista brasileiro, Fernando Rodrigues, do portal UOL. Membro no Brasil do ICIJ, que espalhou a lista pelo mundo, Rodrigues é um renomado profissional, vencedor por quatro vezes do mais importante troféu da imprensa nacional, o Prêmio Esso – um sobre a compra de votos para a emenda da reeleição inaugurada por Fernando Henrique Cardoso, outro sobre a criação do banco de dados “Controle Público”, com a declaração de bens de seis mil políticos brasileiros. O UOL é o portal de maior conteúdo da língua portuguesa no mundo, com mais de 1.000 canais de notícias e sete milhões de páginas com quase sete bilhões de acessos a cada mês.

Apesar dessas honrosas credenciais, o jornalista e o portal não revelam a íntegra da lista com os nomes de brasileiros. Apenas 11 nomes do HSBC, todos ligados à corrupção na Petrobras investigada pela Lava Jato, foram apontados. A política editorial que explica esta revelação seletiva foi assim justificada pelo exclusivo detentor da lista brasileira: “A lista completa nunca será publicada? Não, pois seria uma invasão de privacidade indevida no caso de pessoas que podem ter aberto contas no exterior de boa fé, respeitando a lei e pagando impostos. O ICIJ vai publicar algum dia todas as informações? Não”, antecipa Rodrigues, frustrando quem imaginava ver luz sobre este breu financeiro.


A história dos anônimos

O jornalista adianta, sem dar nomes, que há uma minoria de pessoas conhecidas – empresários, banqueiros, artistas, esportistas, intelectuais – e garante que a imensa maioria dos brasileiros da lista do HSBC é “desconhecida do grande público”. Seria gente anônima, portanto.

É bom lembrar que pessoas anônimas também fazem história. No passado recente, dois anônimos, desconhecidos do grande público, vieram à luz para mudar o destino e a biografia de pessoas importantes de nossa República.

O motorista Eriberto foi crucial no desfecho das investigações que levaram ao impeachment do presidente Fernando Collor. O caseiro Francenildo foi decisivo no caso que culminou com a demissão do ministro da Fazenda, Antônio Palocci.

O jornalista Fernando Rodrigues avisou na quinta-feira (12/2), sem esclarecer, que “uma fração mínima de nomes sobre os quais há alguma suspeita foi mostrada ao governo, de maneira reservada”. No dia seguinte, sexta, Rodrigues foi um pouco mais claro: ele forneceu em novembro passado, sob “reserva”, uma amostra de 342 nomes de nomes de brasileiros do HSBC ao Conselho de Atividades Financeiras (COAF), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda. O COAF respondeu que apenas 15 daqueles nomes indicavam possível atividade criminosa, como corrupção, tráfico de drogas e crimes fiscais.

O país continua sem saber quem são os 15 nomes suspeitos, ou os 342 da amostra, ou os 8.667 nomes da lista brasileira integral.

Este caso do HSBC é importante demais para ficar restrito à decisão pessoal, privativa, seletiva, monocrática de um único jornalista, de um só blog, de apenas um veículo poderoso da internet.

O dinheiro sonegado e subtraído ao Brasil e aos brasileiros não pode ser envolvido pelo segredo, pelo sigilo, pela impunidade que todos combatemos.

Em 2010, os super-ricos brasileiros somavam cerca de US$ 520 bilhões em paraísos fiscais, segundo um estudo feito por James Henry, ex-economista-chefe da Consultoria McKinsey, e encomendado pela Tax Justice Network. O estudo cruzou dados do Banco de Compensações Internacionais, do FMI, do Banco Mundial e de governos nacionais.

A taxa de sonegação nacional, segundo o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), atingiu R$ 415 bilhões em 2013, cerca de 10% do PIB brasileiro, a soma de todas as riquezas produzidas pelos brasileiros honestos.

Nada disso foi publicado nos nossos grandes veículos da mídia. Saiu num pequeno blog de nome sugestivo – Limpinho & Cheirosinho – e com um slogan veemente: “A gente resiste, insiste e não desiste”.

Quero ser leal a este lema inspirador: não vou desistir e vou insistir na revelação integral dos nomes desses 8 mil brasileiros, justa ou injustamente envolvidos com a denúncia sobre a maior evasão de impostos da História.

Estou requerendo às autoridades do meu País as informações que todos nós, brasileiros, merecemos e ainda não recebemos.

Ao Ministério da Fazenda, a quem está subordinada a Receita Federal, e ao Ministério da Justiça, a quem se reporta a Polícia Federal, estou solicitando informações sobre os nomes e as condutas ilícitas supostamente imputadas aos brasileiros do HSBC.

Queremos saber quais as providências e medidas tomadas no âmbito do Governo Federal para dar ao País a satisfação que exige a opinião pública brasileira.


O dever dos jornais

Mas, quero ir além destes requerimentos. Na condição de Senador da República e de cidadão brasileiro, quero fazer um apelo público aos jornalistas e aos empresários de comunicação, para que se unam a nós em defesa da livre expressão e da absoluta transparência num caso de repercussão internacional que, para os brasileiros, ainda aparece nebuloso, pouco informado e nada claro.

Conclamo aqui os jornalistas e os empresários da mídia, patrões e empregados – reunidos em torno da FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas) e da ANJ (Associação Nacional dos Jornais), da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e ABERT (Associação Brasileira de Rádio e Televisão), que defendem juntos a livre informação e combatem qualquer tipo de censura –, para que juntem seus esforços e emprestem seu prestígio para quebrar este cone de silêncio que paira sobre a lista de brasileiros passiveis de investigação nos arquivos do HSBC.

É um apelo que estendo ao jornalista Fernando Rodrigues, ao portal UOL e ao ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos), na pessoa de seu diretor-geral, Gerard Ryle, a quem estarei me dirigindo formalmente, via internet.

É oportuno, aqui, repetir as palavras candentes de um dos mais importantes jornalistas britânico, Peter Oborne, o veterano comentarista-chefe de política do jornal conservador Daily Telegraph, que se demitiu publicamente de seu posto na semana passada, esclarecendo logo na primeira frase: “A cobertura do HSBC no Telegraph é fraudulenta com seus leitores”. As palavras a seguir de Peter Oborne devem servir de inspiração para todos nós, políticos e jornalistas, que acreditamos na livre expressão e na transparência como primados de uma sociedade democrática:

Ensina Oborne:

Uma imprensa livre é essencial para uma democracia saudável. Há um propósito no jornalismo, é não é só entreter. Não deve ceder ao poder político, grandes corporações e homens ricos. Os jornais têm o que no final das contas é um dever constitucional de dizer a seus leitores a verdade”.

Que assim seja!


Randolfe Rodrigues é historiador e senador pelo PSOL do Amapá
 

 

 


 Terça-feira, 10 de Março de 2015



CASO HSBC
A ética pisando em ovos


Por Sylvia Debossan Moretzsohn



Um jornalista tem nas mãos, com exclusividade, uma informação explosiva. Tem certeza de que os dados são verdadeiros. Por que não publica tudo imediatamente?

O repórter Fernando Rodrigues, único no Brasil a ter acesso integral à lista do escândalo conhecido como SwissLeaks – o vazamento das contas secretas do banco HSBC na Suíça –, já havia exposto em seu blog, em 12/2, os motivos pelos quais não revelava a relação completa dos brasileiros envolvidos no caso. A julgar pelos comentários recebidos, não convenceu muito. A entrevista concedida a João Paulo Charleaux, publicada no site Vice na quinta-feira (5/3), fornece mais elementos para uma discussão sobre a ética em torno desses procedimentos. Mas não só: permite pensar também sobre certa concepção mais geral a respeito do jornalismo e da sociedade.

Rodrigues obteve a lista por integrar o ICIJ (International Consortium of Investigative Journalism), que vem trabalhando sobre o caso HSBC desde fins do ano passado. Diz que não divulga a relação integral, de 8.667 nomes, porque não quer expor pessoas que podem ter cumprido todos os trâmites legais dessa transação financeira.

“A
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parte jornalística da apuração tem limites fixados pela lei. Os jornalistas podem ir até onde o ofício permite. A partir daí, a outra parte sempre terá de ser apurada pelos órgãos de controle do governo. Quais dessas contas foram declaradas à Receita Federal do Brasil? Ninguém tem resposta a essa pergunta, com exceção do governo. O governo é quem tem os meios para pesquisar”.

Sua resposta poderia ser tida como um modelo de procedimento ético, por mais que salte aos olhos que a nossa imprensa, de modo geral, está longe de seguir esse padrão. Este foi, aliás, um dos motivos pelos quais se multiplicaram as críticas a respeito do silêncio da nossa mídia em relação a esse escândalo, amplamente divulgado em grandes jornais mundo afora. De fato, se tais cuidados fossem tomados, teríamos poupado muitas pessoas da irreparável execração pública, em sucessivos episódios reveladores de mau jornalismo, ontem e hoje.


Excesso de zelo

O problema é saber se há inocentes nessa história. Em tese, qualquer pessoa pode ter contas no exterior, desde que as declare e pague os devidos impostos. Mas é evidente que a maioria não tem dinheiro suficiente para habilitar-se a abrir uma conta dessas. Além do mais, por que o faria? E qual o sentido de se declarar uma conta secreta?

Essas perguntas não são feitas, mas acabam sendo respondidas por outras vias. Rodrigues começa por argumentar com um hipotético – e totalmente inverossímil – “José da Silva”, um suposto pequeno investidor, perfeito cumpridor da lei, que seria arrastado indevidamente no rol dos fraudadores, caso a lista fosse publicada imediatamente. Por fim, descreve o que deveria ser óbvio:

“Conversei com o ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel. Pedi que ele especulasse o seguinte: o senhor acha que existe uma razão para alguém do Brasil ter uma conta numerada, sem que apareça o nome, na Suíça, para depois declarar essa conta no Imposto de Renda? ‘Seria um situação muito inusitada. Ter uma conta numerada na Suíça é um indício muito grande, justifica a abertura de uma investigação’, ele respondeu. Eu não posso afirmar de maneira peremptória, mas posso suspeitar que a maioria abriu uma conta na Suíça para não declarar ao fisco brasileiro. Essas pessoas podem ter cometido um crime”.

Não será demais dizer que estamos aqui diante de um exemplo típico de excesso de zelo, que leva a indagar se o silêncio sobre a lista resulta apenas de um cuidado ético ou também, e talvez principalmente, de uma preocupação com os interesses a serem confrontados nesse escândalo.

Inclusive porque Rodrigues, que antes criticara certos “professores de jornalismo” por quererem a divulgação “indiscriminada e irresponsável” do tal José da Silva, considera correta a divulgação dos depoimentos decorrentes de delação premiada na cobertura da Operação Lava Jato, argumentando que tais depoimentos “tem valor de notícia, tem interesse público”.

“É mentira? Verdade? Não sei, mas a mídia não vai divulgar? Alguns professores de jornalismo questionam, ‘vai divulgar uma delação premiada?’. Eu digo, ‘ora, vai esconder uma delação premiada?’.”

Não apenas professores de jornalismo, mas notáveis jornalistas, como Janio de Freitas, questionaram várias vezes o próprio instituto da delação premiada. Aqui mesmo, neste Observatório, alguns desses professores insistiram reiteradamente sobre o risco de distorção resultante dos vazamentos seletivos dos depoimentos. O caso mais escandaloso foi o da capa da Veja, às vésperas do segundo turno da eleição para presidente. Se é mentira ou se é verdade, esta não deveria ser uma preocupação ética elementar para qualquer jornalista, em qualquer situação?


Generalizações indevidas?

Indagado sobre o comportamento distinto da mídia em casos similares, o repórter utilizou um argumento cada vez mais comum no meio profissional: criticou o que seriam generalizações indevidas, de tal modo que não poderíamos falar na “mídia”, pois seria preciso verificar as diferenças de conduta entre os vários jornalistas.

De fato, Rodrigues só pode responder por si, e sua trajetória, ademais de premiada, atesta um comportamento rigorosamente ético. Porém, é impossível desconsiderar a existência disso que chamamos “mídia” como estrutura: do contrário, seriam impensáveis a sociologia e os estudos que, no caso do jornalismo, demonstram os constrangimentos impostos pelas rotinas profissionais e os interesses que prevalecem nos critérios editoriais das empresas.

Mas, com certeza, certas generalizações são mesmo indevidas. Diante da pergunta sobre se o que está em questão, neste caso do SwissLeaks, é a qualidade ética do jornalismo brasileiro, o repórter discorda, dizendo que o Brasil “é um país infantilizado no qual a maioria das discussões são quase sempre rasteiras, epidérmicas e inúteis”. Ao fim da entrevista, reitera: “O Brasil é um país muito caipira, subdesenvolvido e atrasado”.


Interesse público

Inicialmente, Rodrigues divulgou apenas uma relação com 11 nomes, todos ligados à Operação Lava Jato, argumentando com um critério jornalístico: “É o assunto que as pessoas estão vendo mais”.

É redundante dizer que os assuntos mais em evidência atraem mais a atenção, o que acaba criando um círculo vicioso que põe na sombra outros assuntos, talvez inconvenientes. E, pior que isso, pode levar a descartar pistas de investigação que no futuro se revelarão relevantes.

“Se eu puder provar que José da Silva não pagou Imposto de Renda, aí tem interesse público”, diz o jornalista. Mas por que desconfiaria dele? “É empreiteiro? Tem obra pública? Tem expressão nacional? Se não, por que eu vou ligar para o José da Silva?” 

Não custaria lembrar que Watergate, no início, era só uma invasão a um escritório do Partido Democrata.

Ao divulgar a entrevista em seu mural no Facebook, João Paulo Charleaux publicou um trecho extra que ajuda a entender “um dos nós da investigação”, no qual Rodrigues detalha algo que já havia informado em seu blog (ver aqui):

Quando saiu o primeiro relatório do ICIJ, um relatório ainda pequeno, com erros e imprecisões, eu peguei um pequeno extrato disso, equivalente a menos de 3% do total de nomes vinculados ao Brasil e, de maneira muito reservada, num acordo jornalístico de interesse público, mostrei ao Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que havia uma suspeita ali de possível evasão de divisas, possível sonegação fiscal. O Coaf não fez nada. O presidente do Coaf, Antônio Gustavo Rodrigues, não fez nada. Por quê? Não sei. Acho que foi um grave erro dele”.

E prossegue:

“A minha proposta ao Coaf era: ‘veja esses dados e verifique se há algum alerta em relação a essas pessoas, se elas declararam nos seus impostos de renda essas contas no exterior no período em questão. Feito isso, comunique ao jornalista, sem precisar quebrar o sigilo, sem dizer especificamente quem, mas comunique pelo menos se a maioria não declarou esses investimentos no imposto de renda’. Se eu soubesse que uns 90% daqueles nomes não declararam as contas no Imposto de Renda, eu teria segurança absoluta para começar a trabalhar uma eventual divulgação de nomes (...). Fiz isso de boa fé, fazendo bom jornalismo e fazendo propostas absolutamente legítimas para estes agentes que foram protagonistas de desídia, preguiça e talvez má-fé. Essa minha tentativa foi um fracasso. Eu fracassei. Quem perdeu mais foi o Estado por ter maus funcionários, mal preparados e talvez desleais e criminosos”.

À parte a gravidade das acusações, que mereceriam ser formalizadas, restaria saber como o jornalista trabalharia caso tivesse obtido as informações desejadas, já que, aparentemente, não teria elementos para confirmar quem estaria efetivamente implicado em fraude: em princípio, sempre seria possível divulgar indevidamente algum “José da Silva” constante dos eventuais 10% que teriam supostamente agido de maneira plenamente legal.


A mídia na lista?

No seu blog, Rodrigues afirmou que “a
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imensa maioria dos nomes contidos na listagem brasileira do HSBC da Suíça é desconhecida do grande público. Há uma minoria de pessoas conhecidas. Empresários, banqueiros, artistas, esportistas, intelectuais”. “Há empresários dos meios de comunicação?”, quis saber Charleaux. “Eu não posso te falar”, respondeu o repórter, “senão, você vai começar a me perguntar por nomes. Então, prefiro não dizer. Agora, numa lista de quase nove mil clientes, você pode imaginar que uma parte considerável da elite brasileira esteja nela.” “E é difícil imaginar que entre uma parte considerável da elite brasileira não haja empresários de meios de comunicação”, concluiu Charleaux.

[A entrevista foi divulgada no dia seguinte ao da publicação de um artigo no qual a diretora adjunta do ICIJ, Marina Walker Guevara, anunciou que a entidade passaria a trabalhar também com o jornal O Globo nessa investigação, o que provocou comentários irônicos como o do jornalista Rodrigo Vianna (ver aqui), tendo em vista as conhecidas denúncias de sonegação contra as Organizações Globo.]

Em sua coluna de 1/3, a ombusdman da Folha de S.Paulo ironizou a “teoria conspiratória” que acusa o silêncio da imprensa brasileira sobre o caso como forma de proteger interesses “de políticos ou poderosos”, sem mencionar as empresas de comunicação. Segundo ela, “a realidade é mais prosaica: os jornais levaram um furo na testa”. De fato: mas, mesmo diante da dificuldade de acesso aos dados, até o momento nas mãos de apenas um jornalista, não seria óbvio que a simples existência de um escândalo dessas proporções deveria ser uma notícia a ser escancarada?


“Obsessões oligárquicas”

Já o economista Luiz Gonzaga Belluzzo faz outro tipo de ironia em artigo na CartaCapital, publicado em 23/2 e modificado pela última vez em 2/3:

“Não creio, sinceramente, que os senhores da mídia nativa tenham sucumbido às mesmas tentações que levaram o grupo do jornal argentino Clarín, a enfiar a mão na cumbuca, engrossando o ervanário do HSBC. Prefiro entender o silêncio midiático como uma manifestação das muitas obsessões oligárquicas que assolam os senhores de Pindorama: nas sinapses dos patrícios da Pátria, sobrevive a hierarquia ‘natural’ que organiza a sociedade brasileira desde os tempos da escravidão. Nem mesmo os corruptos e a corrupção conseguem escapar da fúria classificatória e classista”.

É o que nos permite entender a pergunta do presidente do Coaf, em reportagem na mesma revista (3/3): “Você gostaria de ver seu nome no jornal se um funcionário do seu banco conseguisse os dados de correntistas e você fosse um deles?”. Pois essa pergunta – “e se fosse com você?” – não é feita quando suspeitos pés de chinelo são fotografados em delegacias.

(Na mesma reportagem, o presidente do Coaf insiste em que “é comum imaginar que ‘ter conta fora é coisa de bandido‘, mas que isso não é necessariamente verdade”. Pois é: não necessariamente.)

Belluzzo conclui seu artigo lembrando do “fiasco do Fisco” no caso Banestado – o banco que facilitou a evasão de divisas do Brasil para paraísos fiscais entre 1996 e 2002, e virou objeto de CPI no ano seguinte –, e que sintetiza como as instituições se articulam para proteger os interesses privilegiados:

A investigação iniciada pelo procurador federal Celso Três naufragou no ‘Acordão’ costurado na CPI do Banestado e vazou para os subterrâneos, filtrada entre as decisões e acórdãos do ‘novo’ Judiciário brasileiro. Os nomes dos transgressores estavam gravados no então famoso ‘disco rígido’, cujo acesso foi bloqueado pelo Supremo Tribunal Federal”.


Os crimes do capital

E aqui entram as questões mais gerais a respeito das concepções sobre o funcionamento da sociedade, a partir do qual o jornalismo estabelecerá sua pauta. No Facebook, ao comentar a entrevista com Fernando Rodrigues, João Paulo Charleaux afirmou que o repórter estava certo: precisava “separar o joio do trigo”, uma vez que “ter dinheiro fora não é crime. Ser rico, também não é”.

Certamente, ser rico não é crime, sobretudo quando internalizamos as regras do jogo capitalista, que nos leva a ver como natural algo que é aberrante. Pois, se indagarmos a origem histórica dessa riqueza, talvez nos deparemos com uma monstruosidade. Exemplo disso é a própria constituição do HSBC, que remete à Guerra do Ópio deflagrada pela Inglaterra contra a China em meados do século 19. O professor Vladimir Safatle trata do tema em artigo na CartaCapital (15/2). Classifica a história do HSBC como “o exemplo mais bem acabado de como o desenvolvimento do capitalismo financeiro e a cumplicidade com a alta criminalidade andam de mãos dadas”. E aponta a relação entre a vida cotidiana e o sistema, num exercício para “qualquer interessado em juntar os pontos”:

“Você poderia colocar seus filhos em boas escolas públicas e ter um bom sistema de saúde público, o que o levaria a economizar parte de seus rendimentos, se especuladores e rentistas não tivessem a segurança de que bancos como o HSBC irão auxiliá-los, com toda a sua expertise, na evasão de divisas e na fraude fiscal. Traficantes de armas e drogas não teriam tanto poder se não existissem bancos que, placidamente, oferecem seus serviços de lavagem de dinheiro com discrição e eficiência. Se assim for,
​​
por que chamar de ‘bancos’ o que se parece mais com instituições criminosas institucionalizadas de longa data?

Por isso será sempre atual a pergunta de Brecht, em sua famosa Ópera dos Três Vinténs: “O que é roubar um banco
quando
 comparado a fundar um?
”.


A alma do negócio

Ainda em fevereiro, também na CartaCapital (12/2, ver aqui), o editor de economia Carlos Drummond mostrava que o caso HSBC não era uma exceção. Semanas depois, na Folha de S.Paulo(1/3), a repórter Deborah Berlinck (ver aqui) daria uma pista de como funciona o esquema de assédio aos milionários brasileiros “interessados em tirar parte da fortuna do Brasil” – o que, por tabela, descartaria a existência de algum “José da Silva”. No mesmo dia, O Estado de S.Paulo recordava as denúncias do livro
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A Suíça lava mais branco
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, publicado há 25 anos, em entrevista com seu autor, Jean Ziegler.
Finalmente, no domingo seguinte (8/3), deu na primeira página a chamada para uma entrevista com Hervé Falciani, o ex-funcionário do HSBC responsável pelos vazamentos, que apontava o Brasil como alvo principal do esquema e perguntava:

Por que o Brasil abre investigações só sobre os clientes, no momento em que está claro há muitos anos que são os bancos que precisam ser investigados? Quanto tempo será necessário para que a decisão de investigar os bancos seja tomada? Quanto tempo será necessário para ir além dos sintomas, os clientes, e chegar às causas da doença, que são os bancos?

Faz sentido: se não houvesse a estrutura, os clientes – esses que, no Brasil, ainda são uma incógnita – não poderiam se beneficiar dela. Desvendar esse segredo é destruir a alma do negócio.

Será possível?



Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)


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