Carta Maior, 18/03/2015
Os dois problemas do Brasil: a direita de dentro e a direita de fora
Por Leonardo Wexell Severo
Certamente existem muitos problemas no Brasil. Mas, hoje, há dois que poderiam ser considerados os principais. São gravíssimos e imensos. O primeiro é representado pela mistura explosiva de uma direita política raivosa, uma elite reacionária, uma imprensa golpista e uma massa supostamente apolítica. A elite controla a imprensa, a direita controla o parlamento e a imprensa controla a massa. O chamado terceiro turno continua e promete atormentar um governo que recém inicia. A oposição já tentou deslegitimar os resultados das urnas. Depois, fez de tudo para impedir a posse. Agora, quer ganhar no tapetão. O candidato derrotado à vice-Presidência pelo PSDB transpareceu a linha de ação ao expelir que, mais importante do que impeachment, agora o plano é “sangrar a Dilma”.
Os jornalões se atrapalharam feio ao combinar com os policiais a quantidade de presentes nas ruas no dia 15 de março. Ainda assim, foi uma jornada importante. Levar quase duzentas mil pessoas à avenida Paulista tem algum valor. Mesmo que, em sua imensa maioria, se trate de uma elite branca, conservadora, moralista, alienada e noveleira. Foi como um rolezinho de gente diferenciada. Muitas socialites, artistas de reality shows, modelos acompanhantes de luxo, ex-jogadores de futebol, cantoras de músicas de rodeio e descendentes de militares torturadores. Também compareceu o desacreditado ex-cantor Lobão, que havia prometido ir para Miami em caso de nova vitória progressista, em 2014, e ainda não cumpriu.
As gravações dos depoimentos, disponíveis nas redes sociais, demonstram que o mote dos gritos raivosos foi a ameaça comunista, o perigo da revolução, a cubanização e a venezuelização do Brasil, uma iminente ditadura marxista e o avanço do exército do MST. Sem qualquer vergonha do ridículo, os entrevistados repetiam chavões dignos do período mais assado da Guerra Fria, com meio século de demora. Uma das saídas para o país seria a intervenção militar, bradavam musculosos truculentos, senhoras com uniformes camuflados e moças disfarçadas de Barbie. “Os militares devem assumir o poder até a realização de novas eleições”, recomendava uma jovem de 35 anos, estreante em protestos de rua, que se mostrava fascinada por conhecer o metrô. As explanações são dignas de internação por demência ou até de prisão por incitação ao golpe de Estado.
Esta é a nossa elite culta, estudada e viajada, protetora da sua propriedade privada, sedenta da sua democracia e forjadora da sua liberdade. A cada movimento, exala remordimento e intolerância por ter perdido, na última década, uma reduzida parcela de sua condição de VIP. Não admite que negros e brancos ex-pobres estejam viajando de avião. Não entende como que um ser sem pedigree nem sangue azul possa comprar um carro ou um apartamento com financiamentos do Estado. Não aceita que os filhos de empregadas domésticas, agora melhor amparadas pela lei, estejam estudando medicina nas universidades públicas. Não percebe minimamente o lugar do Brasil no mundo e nem a importância da integração da América do Sul. Contraditoriamente, se vestem de verde e amarelo e cantam o hino nacional, demonstrando um falso nacionalismo, como fizeram seus generais Dutra, Médici e Costa e Silva, além de tantos outros subalternos.
A raiva, o rancor e a cegueira impedem que muitos brasileiros vejam as transformações do país nos últimos 12 anos. Há quem fique triste com o progresso dos outros. Não enxergam ou menosprezam a construção de milhões de residências populares, a geração de milhões de empregos com carteira assinada, o acesso de milhões à eletricidade subsidiada, a inauguração e a potencialização de universidades públicas e de qualidade, a expansão do SUS e o lançamento do “Mais Médicos”, o aumento do poder de compra do salário mínimo, a ativação do mercado interno e a política externa altiva, entre outras conquistas. Nas passeatas, faixas diziam que “Lula e o PT quebraram o Brasil”, sem saber (ou apagando da memória) que, nos anos 1990, o desgoverno de FHC – com o apoio da grande imprensa e de maioria da elite – privatizou o Estado e colocou a economia brasileira de joelhos para o FMI.
As manifestações de 15 de março foram majoritariamente de direita, reacionárias, rancorosas, tristes, conservadoras e racistas. Dizer que o povão insatisfeito estava na rua se trata de um oportunismo deslavado ou de fanatismo anti-Dilma. Além do medo do “comunismo”, o escudo para as mobilizações segue sendo a sigla ICIA (a Inflação, a Corrupção, a Insegurança e o Autoritarismo). Este vem sendo o lema usado pela direita golpista no Brasil, na Argentina, na Venezuela e nos países onde a elite atada ao imperialismo decidiu partir para a ofensiva. É como se a corrupção, que deve ser julgada, tivesse surgido agora. Seguindo o mesmo script moralista da UDN, os maiores corruptos estão denunciando a corrupção.
Mas, e as escandalosas privatizações dos anos 1990? E o caso da telefonia e do grampo do BNDES? E os tucanos Sérgio Motta e Mário Covas? E o propinoduto de Serra e Alckmin? E o mensalão mineiro de Aécio, Azeredo e Anastasia? Naquela época a Polícia Federal e o Ministério Público não podiam investigar como hoje. Os presentes na caminhada dominical da Paulista e de Copacabana não querem saber de corrupção. Querem cortar a cabeça de Lula, do PT e do progressismo. Além disso, é como se a inflação de 7% fosse algo totalmente inaceitável. É inaceitável para o sistema financeiro, que exige a elevação dos juros. O povão ainda não foi para a rua. Não foi exatamente porque é uma parcela da elite tupiniquim a que sobredimensiona a sigla ICIA, bandeira internacional de luta contra os governos progressistas.
No entanto, como se este primeiro problema não fosse imensamente complexo, ainda há um segundo: o governo de Dilma está se distanciando dos seus eleitores e, cada vez mais, rendendo-se aos interesses do capital especulativo internacional e à teologia do mercado. Cada vez que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy Mãos de Tesoura, aparece na mídia é para fazer alguma macaquice tentando alegrar aos seus patrões do sistema financeiro. As declarações que faz têm a função primordial de sinalizar ao mercado que este conta com um aliado incondicional. Economista convencional e ortodoxo, Levy não representa os interesses do Brasil nem dos brasileiros, mas dos seus amos banqueiros e especuladores.
O atual ministro da Fazenda possui estreitos vínculos com o FMI, o BID e o Banco Central Europeu. Serviu ao governo de Fernando Henrique Cardoso e, ultimamente, trabalhou para o Bradesco. Apesar de a presidenta Dilma tentar argumentar o contrário, sem crescimento, a política de valorização do salário mínimo e os programas sociais tendem a ser seriamente comprometidos. O ajuste não é a única opção. É a alternativa mais custosa para a grande maioria dos brasileiros e a mais covarde para a coalizão no governo. Além de covarde, nesta altura do campeonato, é suicida.
Normalmente, os ajustes aprofundam os problemas econômicos, sociais e políticos. Sempre, a mal chamada austeridade recai sobre os trabalhadores, a classe média e o setor produtivo, reduzindo as margens de crescimento. O ajuste e a suposta austeridade só serviriam para beneficiar ainda mais o mercado financeiro, que exige taxas de juros altas e o fiel pagamento da dívida pública. Como bem se sabe, isto já vem ocorrendo. Nos ajustes neoliberais, os gastos cortados são com pessoal, com investimentos e com a infraestrutura social. As despesas reservadas para o pagamento de dívida são crescentes e consideradas intocáveis. Por isso, há histeria com relação ao superávit primário, diminuem os investimentos públicos e continuam subindo as taxas de juros. Somente depois da eleição, a SELIC foi elevada em quatro ocasiões. Este aumento serve especialmente para encher as arcas do setor bancário, mas encarece o crédito, reduz o consumo, freia o comércio e desestimula a produção.
A preocupação central da coalizão de poder governante não é com a economia nacional ou com o desenvolvimento das forças produtivas internas. Até agora, a proposta governamental expressava uma ideia vaga de crescimento com transferência de renda, em que todos ganhassem. De fato, foi promovida a melhoria dos indicadores sociais e a ampliação das oportunidades dos mais pobres via transferência de recursos financeiros oriundos de um crescente processo de desnacionalização. Os rendimentos foram um pouco melhor distribuídos, mas não houve melhora na divisão da riqueza e continuaram praticamente livres de impostos os grandes detentores do capital, as maiores fortunas, os latifundiários, as heranças e os exportadores de bens primários. Mas esta estratégia é finita e insustentável. Aliás, o PIB já vem ribanceira abaixo.
Recentemente, vêm sendo ampliadas as concessões de estruturas públicas para usufruto de privados nacionais e estrangeiros. No dia 8 de março, Dilma prometeu, em rede nacional de rádio e televisão, continuar com esta política. Seguindo um caminho oposto ao dos países que historicamente buscaram o desenvolvimento das forças produtivas e uma maior autonomia internacional, o Brasil cede o controle de portos, ferrovias, aeroportos, estradas, hidrelétricas e termoelétricas para conglomerados privados nacionais e empresas estrangeiras. E a maioria dos recursos utilizados pelas concessionárias privadas é oriunda do próprio BNDES. Ou seja, o banco público voltou a financiar um processo de privatização e de desnacionalização da infraestrutura. A economia brasileira, subdesenvolvida e pobre, está financiando as maiores empresas e bancos do mundo.
A retomada do crescimento depende de políticas anticíclicas. Depende do Estado, do planejamento, do fomento à industrialização e da expansão do poder de compra dos trabalhadores. No entanto, na mais recente entrevista de Levy, fica claríssima a sua interpretação: o Capitalismo de Estado, disse, é incompatível com a democracia. Com um discurso de professor de microeconomia de quarta-categoria, falando em termos de homem econômico racional, o ministro considera que o mercado sim seja democrático. “O que a gente tem que fazer é ter preços adequados, que motivem as pessoas a tomarem decisões que vão levar ao crescimento”. Aí fica complicado.
Hoje em dia, os temas centrais da pauta política no Brasil são essencialmente conservadores e sequer se aproximam de assuntos cruciais como reforma agrária e impostos sobre o agronegócio; auditoria da dívida pública; suspensão e revisão das concessões de estruturas públicas para usufruto de privados nacionais ou estrangeiros; fim da ditadura dos meios de comunicação por parte de conglomerados familiares; suspensão do incentivo aos “campeões nacionais” e ao “clube do bilhão”, via financiamentos públicos para oligopólios privados (construção civil, alimentos, siderurgia, bancos, etc.); interrupção dos créditos benevolentes do BNDES para empresas transnacionais instaladas no Brasil; estatização e criação de empresas públicas em setores estratégicos da economia; controle protecionista da taxa de câmbio; redução das taxas de juros; entre outras medidas que são essenciais para que o país cresça, se democratize e se posicione mais soberanamente no cenário mundial.
Mas, de tão longe da realidade atual, a agenda comentada no parágrafo anterior, elementar para a edificação de um projeto de desenvolvimento e de maior autonomia, soa excêntrica e até lunática. Na vida real de Pindorama, a ministra de Agricultura é a senadora Kátia Abreu; os processos de auditoria da dívida pública, realizados na América do Sul e pelo mundo afora, são ignorados; as experiências de leis de democratização dos meios de comunicação, adotadas em diversos países, são menosprezadas. O BNDES libera financiamentos milionários para conglomerados estrangeiros expandirem seus oligopólios e ampliar a drenagem de recursos brasileiros para o exterior. Em um movimento temerário, o governo vem ampliando as margens de participação de capitais estrangeiros no Banco do Brasil e, recentemente, anunciou que abrirá essa possibilidade no caso da Caixa Econômica Federal. A Embrapa caminha no mesmo sentido.
Os volumosos financiamentos do BNDES bem poderiam servir para promover uma industrialização soberana, com empresas estatais ou de capital privado nacional de porte pequeno e médio. Ao invés disso, o dinheiro público vem sendo utilizado para fortalecer pouquíssimos grupos econômicos em setores estratégicos. Agora, esses conglomerados disputam a liderança dos mercados da região e do mundo
A única saída possível para o governo de Dilma seria pela esquerda. Há poucos meses, as eleições foram vencidas por reduzida margem, com o apoio do povão contra os setores conservadores respaldados pelos grandes conglomerados da mídia. Mas a candidata eleita prometeu não fazer o que, agora, já está fazendo. Assim como havia prometido, em 2010, não entregar o pré-sal aos estrangeiros e o entregou na base da repressão aos manifestantes contrários. Seguir sacrificando o Brasil no altar dos especuladores e das multinacionais só piorará a situação. O ajuste ortodoxo e neoliberal de Joaquim Levy gerará constrangimentos crescentes e fará transbordar a insatisfação até os setores populares. E, aí sim, será um Deus nos acuda.
Um eventual fracasso do progressismo brasileiro teria grandes consequências não apenas para a construção de um país mais democrático e justo. Também haveria forte impacto negativo sobre os vizinhos latino-americanos que, mesmo com muito menos condições materiais que o Brasil, apostam em continuar trilhando um caminho de desenvolvimento autônomo e de inserção soberana no cenário mundial. Caso o governo não reverta o rumo e estabeleça outra agenda, Dilma poderá entrar para a história como a maior responsável por encerrar o áureo período de mudanças iniciado por Lula em 2003. Neste momento, apesar da crescente ofensiva da direita, respaldada pelos grandes meios de comunicação e pelo imperialismo, já parece muito difícil resgatar a coalizão governante do triste encanto das agências de classificação de risco, da panaceia do IDE e do sortilégio do deus mercado. Com as medidas corretas, o primeiro problema poderia ser contornado ou neutralizado. Com ajuste neoliberal, a restauração conservadora se vislumbra no horizonte.
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Leonardo Wexell Severo é professor do curso de Economia, Integração e Desenvolvimento da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). luciano.severo@unila.edu.br
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