Estadão, 29 de março de 2015
A enfermeira brasileira no front do ebola
Por Adriana Carranca
A enfermeira gaúcha Halima Husein (de hijab preto), entre colegas na Etiópia
Das quatro tendas que abrigavam os 60 pacientes infectados pelo vírus Ebola sob seus cuidados em um hospital de campanha erguido às presas em Monróvia, capital da Libéria, a enfermeira brasileira Halima Husein via desaparecer uma “tenda” a cada dia. Quinze mortos diários, dia após dia. É uma baixa impensável mesmo para os mais habituados às tragédias.
Os corpos eram desinfetados e enterrados a uma distância segura, com todos os pertences. Não restavam vestígios deles. Não cabiam despedidas. O Ebola mudou os hábitos de vida e os rituais de morte por onde passou.
À medida que o contágio avançava para um surto descontrolado, somaram-se a esse cotidiano macabro as cremações arbitrárias. Era uma questão de saúde pública, mas não só isso – os responsáveis por abrir covas e enterrar os mortos estavam à beira do colapso. Foi a primeira vez em toda sua história de socorro a tragédias que a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), para a qual Halima trabalha, teve de importar incineradores para dar vazão aos cadáveres.
Em um ano, desde seu início, em março de 2014, o surto fez mais de 10 mil mortos. É o equivalente a cinco vezes o número de vítimas fatais em todos os 28 surtos da doença somados desde que o vírus foi identificado, em 1976. Ele não se alastrou apenas em número, mas geograficamente. Antes concentrado na África Central, o Ebola chegou ao oeste do continente com rapidez nunca vista. Foi uma tragédia sem precedentes.
Agora que a epidemia dá sinais de esmorecer, com redução da velocidade de contágio, as organizações internacionais começam a avaliar seus efeitos mais duradouros e menos visíveis, porém profundos, como o impacto psicológico nos que vivenciaram a calamidade perto demais para se esquecer, como Halima.
Filha de refugiados palestinos que sonhava desde pequena em trabalhar com ajuda humanitária, Halima viu a fome secar o corpo de crianças em um hospital no sul desértico da Etiópia. Acompanhou o flagelo de vítimas da doença de Chagas no Paraguai, da malária no Sudão do Sul e da desnutrição infantil no Iêmen, até uma revolta estourar na capital do norte iemenita, onde estava, e os feridos inundarem o hospital.
Em Misrata, na Líbia, esteve “muito perto da frente de batalha”, em meio a “um conflito direto”; feridos e amputados chegavam-lhe às mãos no eco das explosões. No Líbano e Turquia, recebeu refugiados sírios massacrados no fogo cruzado entre as forças do presidente Bashar Assad e rebeldes. Nesse território sem lei Halima ingressou três vezes, em missões de socorro. “Num hospital onde passávamos as noites você podia ouvir os aviões do governo bombardeando a cidade. A gente sabia que eles estavam bombardeando escolas, comércios… E a gente sabia que naquele momento havia muita gente morrendo”, descreveu Halima ao Aliás.
Lidar com a morte faz parte do cotidiano de médicos e enfermeiras como ela. Mas não da maneira vista na epidemia do vírus. Ao falar da experiência no hospital de Monróvia, sua voz se torna ofegante, o ar parece faltar-lhe. “Você vê os corpos… Você vê corpos deixando as tendas toda hora, a ponto de aquilo se tornar natural e você… você, imune a emoções”, ela relembra. “Nada te prepara para ver a morte desse jeito. Não nessa dimensão. Não desse jeito.”
A gaúcha Halima iniciava o dia às 7 horas reunida com o restante da equipe para discutir os casos do dia anterior. Ao chegar à clínica, por volta das 8, parte dos pacientes havia desaparecido de noite. Até o fim do expediente, por volta de 20 horas, outros sucumbiriam. Entre um quarto e metade, no total. Era uma rotina mórbida de dimensão assustadora até nas pandemias. “Nunca tinha visto tanta gente morrer. Bá, é uma das piores coisas que tu podes ver. De a pessoa estar sentada, conversando contigo, você se vira para dar atenção a outro paciente e, quando volta, ela caiu morta do teu lado. Nas guerras, pelo menos temos a chance de salvar os que chegam até nós. Com o Ebola é diferente. Você tem uma sensação muito forte que é a de incapacidade. Não está nas suas mãos, não importa o que você faça, como enfermeira ou como pessoa. É um sentimento difícil. Eu vi muitos colegas chorando.”
A impossibilidade de contato direto com os pacientes, o estigma da doença, as condições precárias, o dilema vivido entre o desejo de ajudar e o medo constante de ser contaminado, tudo agrava o calvário dos que cuidam dos infectados pelo Ebola. “O que eu mais temia era morrer sem ter minha família por perto”, diz Halima. Ela estava em treinamento na Bélgica quando houve o primeiro caso de contaminação de um profissional da MSF, uma enfermeira francesa. “Foi o momento de sentar, pensar e tomar a decisão”. Ela decidiu embarcar para a Libéria.
Àquela altura, julho de 2014, o Ebola havia chegado às portas de Monróvia com força assustadora, ceifando vidas entre os que estavam ali para salvá-las – quatro enfermeiras do Hospital Phebe, na periferia da cidade, e um médico do Centro John F. Kennedy Memorial morreram. Em agosto, o sistema de saúde do país entrou em colapso. Pacientes com doenças como malária eram recusados para dar lugar a contaminados pelo Ebola. Mesmo assim, os leitos se tornaram insuficientes. Em 5 de agosto, o presidente da Libéria decretou estado de emergência. Três dias depois, com incompreensível letargia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o Ebola emergência global. A declaração coincidiu com o contágio de dois americanos da organização cristã Bolsa Samaritana.
Negligência
Convencidos da catástrofe, ONU, OMS e o Centro de Controle de Doenças dos EUA mobilizaram a maior operação da história para o controle de uma epidemia. Nos três meses entre o primeiro caso e o despertar da comunidade internacional, no entanto, milhares de pessoas já tinham sido infectadas. Muitas morreram antes de saber o que debilitara seus corpos.
“Para o surto de Ebola ter chegado a tal nível de descontrole foi preciso que muitas instituições falhassem. E elas falharam, com consequências trágicas e evitáveis”, declarou Christopher Stokes, diretor-geral da MSF, na semana passada. Em 31 de março, a MSF alertara para a disseminação geográfica do vírus de forma “sem precedentes”, após a doença ingressar na Libéria pela fronteira com a Guiné. Na ocasião, a OMS negou qualquer diferença de surtos passados. Novo alerta foi feito em 21 de junho, quando a epidemia já estava “fora de controle”, segundo a MSF.
“Muitos enfermeiros e médicos morreram no início da epidemia porque desconheciam os protocolos, não sabiam sequer que estavam diante do Ebola. Quando a MSF chegou a campo, havia desinformação, desconfiança e medo”, relata Halima. Àquela altura, corpos eram largados no asfalto. Hospitais e clínicas superlotadas, inclusive da MSF, eram obrigados a recusar doentes infectados mesmo sabendo que, nas ruas, contaminariam outros. Sobrecarregados e amedrontados, médicos e enfermeiros liberianos entraram em greve. A violência se espalhou no rastro do vírus.
“O que me motivou (a ir para a Libéria) foi saber que as pessoas precisavam ser atendidas, mas não tinham mais como. Não que meu medo fosse zero, porque o medo é algo natural. Mas, quando você tem a oportunidade ajudar numa situação como essa, é difícil recusar”, disse Halima. Em um ano desde o início do surto, 500 trabalhadores da saúde morreram infectados pelo Ebola na Guiné, Libéria e Serra Leoa, países onde a escassez de médicos e enfermeiros era realidade mesmo antes da epidemia. Desses, 14 eram da MSF.
Para evitar contaminação, os protocolos de segurança eram rígidos. No início, Halima teve dificuldade para se adaptar à forma de lidar com os pacientes, separada deles por um macacão de denso material impermeável, avental e touca cirúrgica, botas, máscara, óculos de proteção, duas luvas e um respirador. Nada atravessava o aparato, nem mesmo o ar, e a temperatura lá dentro chegava a 50°C. “Eu os via inteiros, mas eles só podiam ver meus olhos”, lembra. Os doentes a reconheciam pelo nome escrito no jaleco. E o que eles diziam, não trazia alento algum. “Halima, por que está fazendo isso? Eu vou morrer”, ouviu muitas vezes, enquanto tentava alimentá-los e aplicar-lhes a medicação.
Ao todo, o hospital tinha 180 leitos – e não parava de crescer. Quando chegavam aos cuidados de Halima, os pacientes já tinham percorrido o caminho dos condenados pelo vírus, como num corredor da morte. A entrada era a ala de triagem, onde eram isolados aqueles com sintomas de contágio. Estes eram, então, levados para a ala dos suspeitos e testados. Poucos voltavam daquele ponto. A maioria seguia dali para a “enfermaria de confirmados”, onde Halima os aguardava. “Havia tanta dor nos olhos deles…”
‘Acabou o tempo’
Dentro do uniforme de proteção amarelo, Halima tentava não ceder ao calor intenso, nauseante. “É muito, muito quente. Você transpira o tempo todo”, disse. “Um dia, eu estava com uma criança no colo e comecei a passar mal. Minha colega percebeu e disse: ‘Acabou o tempo’. É um comando do protocolo e temos de obedecer, para não correr riscos. Tive de largá-la e sair. Mas é duro ver os pacientes sem a família, na companhia apenas de outros que estão morrendo. Então, você tenta se segurar. À noite, dormíamos de exaustão.”
De volta da missão, já em Bruxelas, onde teve atendimento psicológico, um sonho perturbava Halima: ela estava de volta à clínica de Monróvia, com os colegas da equipe, todos infectados e aprisionados àquele lugar. Cenas reais ainda voltam a sua mente, em flashbacks involuntários e inoportunos. Como a de uma mãe que Halima orientava a alimentar o filho de 6 anos, enfraquecido pelo Ebola. “Ela conversava comigo e simplesmente caiu para o lado, morta, na frente do filho”, lembra. “Eu vi aquela criança apática. Ele não teve reação, apenas virou o rosto. Eu desinfetei o corpo e o cobri, porque outros pacientes olhavam. Não gosto nem de pensar para não ficar remoendo o que a gente viu ali.”
Nos 21 dias de isolamento no Brasil, Halima “não queria tocar em nada nem em ninguém”. “Você fica um pouco paranoica. Tem o choque de ter visto tantas mortes, o choque de saber que não tem cura. Você sempre se pergunta: será que eu podia ter feito mais por eles?”
‘O vírus da morte rápida’
Na África ocidental pós-epidemia de Ebola não há apertos de mão ou abraços. As pessoas conversam mantendo certa distância, pelo menos o suficiente para não se deixar alcançar pela saliva do outro. A peste que os africanos chamam de “vírus da morte rápida” deixou no rastro da passagem mudanças econômicas e socioculturais que afetaram comunidades inteiras.
“Não há dúvida de que o surto está afetando seriamente nossa existência como nação. O Ebola está nos forçando a mudar a forma como nos cumprimentamos, como mostramos afeição uns pelos outros, como cuidamos dos doentes”, escreveu o reverendo James B. Sellee, no Liberian Observer. “O Ebola está minando laços de família e causando divisões. Está matando nossa já frágil economia e faz isso rapidamente.”
A queda no número de infectados pelo Ebola em 2015 foi recebida com entusiasmo pela comunidade internacional, mas a velocidade de contágio hoje ainda é maior do que em qualquer surto anterior. Em 20 de março, um novo paciente testou positivo na capital Monróvia após mais de duas semanas sem casos confirmados.
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