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Uma Coisa e Outra, 29/02/16
Spotlight: o silêncio da mídia
PorLéa Maria Aarão Reis*
Surpresa no Oscar! Há vida inteligente no
cinema americano. Um belo filme disputou e
ganhou a estatueta de Melhor
Filme e Melhor Roteiro Original (excelente), depois de receber aplausos e
ter sido
premiado também pelo Sindicato de Roteiristas de Los Angeles.
Oscars mais que merecidos.
Spotlight - Segredos Revelados,
do diretor Tom McCarthy,
trata da denúncia histórica de pedofilia que
acabou pública, em 2002, envolvendo 249 padres criminosos e o Cardeal
Bernard Law, de Boston, que acobertou nada menos que três mil casos
durante 18 anos. Um episódio gravíssimo que, em médio prazo, colocou em
cheque toda a igreja católica, e ecoa até hoje nos quatro cantos do
mundo.
O mega escândalo adormeceu durante 15 anos nas gavetas e nos arquivos do jornal The Boston Globe por
conta da força de dissuasão e da influência avassaladora da igreja na
cidade, maior comunidade católica dos Estados Unidos e oriunda de
imigrantes irlandeses da mesma fé. Mais da metade dos assinantes do
prestigioso jornal eram, na época, católicos: fieis fervorosos, a
maioria praticantes, outros, bissextos, de tradição familiar.
Muito já foi escrito sobre
Spotlight no
Brasil, há mais de um mês em cartaz, atraindo milhares de espectadores. As resenhas sobre o filme celebram, em
geral, a ação do grupo de destemidos e sérios repórteres da editoria
Spotlight - palavra que significa holofote,
em inglês; no jargão jornalístico equivalente ao mantra ‘onde há
sombras que se jogue a luz da informação’ -, do jornal The Boston Globe.
Enfim, depois de uma década e meia (!) o diário pariu uma série de
matérias com a sinistra história que levou algumas vítimas ao suicídio,
e lesões psicológicas irreparáveis em outras.
Quase todas as
crianças violentadas, estupradas ou abusadas pelos padres vinham da
população mais pobre de uma das mais opulentas, belas, bem administradas
e esnobes cidades do país. Um detalhe do gênero ‘não vem ao caso’,
quase nunca lembrado.
Mas o que nos incomoda e chama nossa
atenção, nesse filme de linha (bem realizado embora sem brilho) é
o
subtema do qual poucos profissionais da velha mídia tratam – e os da
mídia independente também. O silêncio dos jornalistas do grande jornal
bostoniano que jogavam golfe, frequentavam os mesmos bares,
restaurantes, se visitavam e partilhavam de eventos sociais, eram amigos
dos personagens envolvidos no escândalo abafado. Advogados, juízes,
personagens ricos e respeitáveis da comunidade. Incomoda o manto de
silêncio que desabou, discretamente, sobre a redação do The Boston Globe
ocultando crimes da igreja católica.
Foi preciso um editor-chefe judeu, Marty Baron, vindo da Flórida, (hoje ele trabalha no Washington Post) um “
de fora”, como é visto com condescendência num dos diálogos;
um que deseja “marcar presença pelos jornais por onde passa”,
insinua-se em outra conversa, para lancetar o tumor como acabaram
fazendo, com tenacidade e convicção pessoal, os da equipe da editoria
de
spotlight, quatro repórteres do jornalismo investigativo honesto.
O
editor Walter Robinson, chefe do grupo, quinze anos antes, quando
chefiava a editoria de assuntos de cidade fora um dos jornalistas que
ajudaram a fazer morrer o assunto publicando uma reles notícia sobre o
assunto e ‘matando’ a produção de uma suíte. No filme,
acrescenta-se:
“Faltou responsabilidade editorial a um jornal que, se é,
na verdade, independente, deve defender as instituições” iluminando com
seus holofotes os desmandos e abusos eventuais delas. Do contrário, se
corre o risco de comunidades inteiras silenciarem (e se acumpliciarem)
como ocorreu com os ‘bons alemães’ no período nazista, como também é mencionado num diálogo.
Roteiro
enxuto, de Josh Singer e do próprio McCarthy, a produção conta com um
elenco sóbrio, primoroso. Primeira categoria.
Rachel Adams, Michael
Keaton, Mark Ruffalo e Matt Carol fazem os quatro jornalistas
investigativos. Mas
Liev Schreiber na pele do Editor e, em especial, o
sempre ótimo
Stanley Tucci, um dos mais inteligentes atores do cinema
americano de sua geração, arrebata, como costuma fazer, a atenção do
espectador nas sequências em que aparece. Tucci faz o
advogado armênio
Mitchel Garabedian, defensor das vítimas dos padres pedófilos de Boston.
Nas suas falas, denuncia de leve uma ponta do racismo que toca a
sociedade local.
Segredos Revelados vem
num pacote de produções inspiradas em episódios reais e
se relacionam
com fatos atuais desenrolados no Brasil neste momento.
Em A Grande Aposta,
os conluios espúrios de grandes bancos e agências globalizadas de
classificação de risco de economias nacionais gerando desastres
econômicos para milhões de indivíduos.
No filme Trumbo é lembrado
o quanto pode ser perniciosa a figura jurídica da delação premiada
estimulada irresponsavelmente e com critérios frouxos como ocorre com o
trabalho da turma da República do Paraná ao laurear até marginais
reincidentes em crimes praticados no passado, como o notório Yousseff.
No caso presente, nos interessou
a síndrome do ‘controle da informação’ que acomete redações de jornal, como bem assinalou em artigo escrito com coragem e sinceridade a
jornalista Tereza Cruvinel. ”A vida de Mirian e os desdobramentos do caso,” ela diz, “ao
longo dos anos, sempre foram acompanhados com interesse pela imprensa,
não para produzir notícia, mas para o controle da informação, digamos
assim.”Uma ‘hipocrisia midiática.’ Em Boston e aqui.
“Para
os donos e para os profissionais da imprensa nacional, não há surpresa
alguma, não há novidade alguma no que a jornalista Mirian Dutra contou
(...) sobre seu relacionamento com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.”
Durante
os últimos 30 anos, nem os estagiários de redações brasileiras
desconheciam as aventuras do ex-presidente nem o “caso” Mírian Dutra
. “Nunca se ignorou que a TV Globo mantinha Mirian contratada mas não a pautava,”
lembra a jornalista no seu blog. (Exceções: quando auxiliou, mas sempre
em segundo plano, coberturas em Portugal e na Itália.)
“Então
não me venham, caros colegas, com estes ares de novidade. No mais,
fomos todos cúmplices (...) Nunca ninguém sequer cogitou, em nenhuma
redação de Brasília, de escrever sobre o assunto.“**O
escândalo dos católicos de Boston, religiosos, e fieis e jornalistas
que se deixaram manipular pela igreja local já está devidamente
iluminado pelos holofotes.
Aqui, na era da internet, o colossal
escândalo vem sendo esmiuçado pela mídia digital envolvendo uma
reeleição presidencial;
o abuso cínico de
dinheiro público dos falsos catões da oposição do PSDB e o
constrangimento ao limbo profissional de uma repórter - recurso de
prática aliás conhecido e reincidente nas redações.
O que falta agora, para mais além do
mea culpa dos jornalistas, é mudança nas normas éticas do seu trabalho. Discutir, por exemplo, a tal ideia do “
controle de informação”
num dos habituais seminários, debates e mesas redondas profissionais em
que se reúnem, às vezes para discutir o sexo dos anjos.
Denunciar
o gargalo do mercado de trabalho criado pela mídia oligárquica
submetendo ao silêncio forçado os profissionais temerosos de perder o
emprego e o poder que detêm – ou por necessidade básica ou por mera
vaidade.
Denunciar
outra síndrome nefasta que sempre acometeu os
jornalistas: o deslumbramento com os universos e os ambientes da fama,
do poder, notoriedade e do dinheiro com os quais passam a conviver, nos
quais começam a circular e dos quais não querem mais abrir mão.
Insistir
na necessidade da regulação da mídia brasileira e fortalecer sindicatos
sem pelegos e entidades de classe independentes.Depois dos
episódios dos pedófilos de Boston,
o cardeal que encobriu os milhares de
crimes de 250 padres da sua diocese foi punido e transferido para a
prestigiosa Igreja de Santa Maria Maggiore, em Roma, onde vive
semi-recluso. Nem o papa Francisco o recebe.
No escândalo brasileiro, o protagonista central, o ex-presidente que “já entrou para o Olimpo histórico, onde se pensa que nada mais pode atingi-lo”,
como lembra a jornalista Cruvinel,
se manifesta atordoado embora
continue blindado por obsequioso e espantoso! - silêncio da velha
mídia, seus artífices e colaboradores.Resta quem? Apenas nós, cidadãos, cúmplices também sonsos da
hipocrisia midiática? Ou da hipocrisia nacional?
*Jornalista
**A
revista Caros Amigos, em São Paulo, publicou, há cerca de dez anos,
matéria de capa sobre o caso Mirian Dutra/FHC. O assunto morreu ali. Não
houve suíte de outro veículo. Nem interessou a um único repórter
investigativo como os que hoje pululam por aí.