sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O mito do Supremo


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Justificando, 26 de fevereiro de 2016


O mito do Supremo


 

Por Daniela Cristien Coelho, voluntária da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul



Após uma semana inteira tentando evitar a repetição do tema, decidi tecer alguns comentários sobre a última polêmica.

Em julgamento histórico no Supremo Tribunal Federal, decidimos por sepultar garantias constitucionais mínimas, dificultar a redução de danos e assumir uma prática até então disfarçada nas sentenças e acórdãos, em relação aos princípios constitucionais.

Esse posicionamento, sem dúvida, servirá agora de fundamentação aos absurdos punitivistas proclamados pelas decisões que fazem parte do dia-a-dia da advocacia criminal. Pela análise dos votos no julgamento do HC 126.292, vemos a predominância de mitos processuais, ora entendendo o Processo Penal como instrumento de pacificação social, ora como mecanismo propulsor da segurança pública.

Rubens Casara, em seu livro Mitologia Processual Penal, disserta que essa dupla perspectiva mitológica, característica presente nos regimes autoritários, “faz com que as garantias processuais sejam vistas como entrave à eficiência repressiva; em substituição às garantias de liberdade, entram as garantias de eficiência”. [1]

A mesma obra aborda Vicenzo Manzini, em seu Tratado de Derecho Procesal Penal, “responsável pela elaboração do Código Rocco de 1930 e afeito a uma concepção autoritária de processo penal”, que em detrimento das liberdades individuais, entende as normas processuais penais como “tutela do interesse social relativo à repressão da delinquência” [2]. Ademais, Manzini entendia como “equivocada, paradoxal e irracional a ideia de presunção de inocência”, por “não estar certo da culpabilidade de pessoa indiciada significa necessariamente duvidar de sua inocência e, portanto, não pode nunca equivaler a presumir sua inocência”. [3]

Infelizmente, o Supremo Tribunal Federal, ao contrário do que determina sua função de guardião do texto constitucional, pareceu ignorar as disposições do artigo 5º, LVII e seguir por caminhos obscuros. Ao acessar alguns votos, encontramos argumentos frágeis e incompatíveis com a Corte, além de visões extremamente contraditórias quando comparadas aos precedentes como, por exemplo, o recente entendimento sobre a superlotação carcerária.

O Processo Penal, caminho necessário para a aplicação legítima da pena (ainda que não consiga enxergar na pena sua legitimidade e finalidade), exige o devido processo legal, com duração de tempo razoável e revestido de todas as garantias constitucionais. Entendo a decisão do Supremo como um atropelo, uma pressa que o processo não pode abarcar, porque faz do acusado refém, decidindo sobre sua liberdade.

Por outro lado, esse atropelo já existe para os mais pobres. Como trabalhadora voluntária na Defensoria Pública do Estado, não raras vezes presenciamos decisões que não respeitam o trâmite processual adequado, entendendo todas as determinações legais como simples regras facultativas. Nada gera prejuízo ao réu. Nada é garantia, já que a forma foi esquecida.

A terra sem lei parece descansar sem incômodos, já que esses assistidos não serão vistos e nem ouvidos com a mesma presunção de inocência pensada pela Constituição. Na verdade, ela nunca existiu. O réu é sempre culpado, até que se consiga provar o contrário.

Talvez isso seja o mais doloroso na trajetória do advogado criminalista e, mais ainda, para os que estão em início de carreira. A desilusão e o desgaste emocional não podem ser mensurados, já que cada vida que passa por nossas mãos deixa marcas, tão profundas que chegamos a pensar em como o resto do mundo consegue dormir.

O Min. Barroso, em um trecho de seu voto oral, desperta certa curiosidade: “E, mais que isso, o grau de seletividade do sistema punitivo brasileiro, porque quem tem condições de manter advogado para interpor um recurso descabido atrás do outro descabido não são os pobres, que hoje superlotam as prisões brasileiras. Ninguém deve ser punido por ser rico. Ricos e pobres têm os mesmos direitos. Porém, o sistema é dramaticamente seletivo, porque as pessoas acima de um determinado patamar, mesmo que condenadas, não cumprem a pena durante a sua sobrevida, porque o sistema permite que se procrastine a execução por mais de vinte anos, como é precisamente o que acontece neste caso que eu aleatoriamente constatei dentro da nossa pauta de hoje". [4]

Apesar de estar completamente convencida acerca da seletividade do sistema punitivo, não posso deixar de pontuar que esse câncer jamais poderá ser resolvido por essa decisão. Essa forma psicodélica, ainda que seja vista e comemorada pela grande maioria da população como a solução para a criminalidade, não faz nada além de agravar a situação caótica dos presídios.

Respeitosamente, devo discordar dessa lógica emitida pelo Ministro.

Partindo do pensamento trazido no fragmento:

a) Pela seletividade do sistema, punimos os pobres que superlotam as prisões.

b) De outro lado, estão os ricos que não cumprem a pena em razão do "abuso do direito de recorrer" (outra expressão encontrada em seu voto).
Solução = A solução não é a reparação do sistema, a redução de danos, a equidade, os magistrados darem mais valor ao que se escreve nas peças daqueles entendidos como marginalizados (desmotiva escrever para as paredes, para um juiz que não lê, ignora tudo e acredita ser o nosso conhecimento “criações da academia”).
PASMEM.

A solução é o encarceramento em massa, para deixar nossos nervos ainda mais descontrolados e nossos corações sem esperança. Seja pobre, rico, inocente (culpado até que se prove o contrário)... todos têm o mesmo destino: o xadrez! O mais rápido possível! Alavancando a superlotação e permanecendo o injusto sistema punitivo. Rezem, colegas! Agora poderemos ter decisões fundamentadas com base na permissão da execução provisória da pena.

Se não há mais o Supremo Tribunal Federal em defesa da Constituição, quem poderá nos defender?

Mesmo em pedaços, é urgente a luta sem descanso. Não há batalha que possa ser vencida acatando toda e qualquer decisão proferida pelas Cortes. Riscar a Constituição Federal, suprimindo garantia, não é a nossa função.

Mestres, advogados, acadêmicos...continuem combativos, continuem o choro que dizem que estamos fazendo, continuem gritando! Nossas lágrimas perturbam, nosso barulho incomoda... mas ambos possuem o poder de modificar a realidade tão sombria que o nosso país está presenciando.

Aos leitores que acompanharam até o final, fica o trechinho da música:

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa”.

Chico Buarque - Cálice

 
Daniela Cristien Coelho é Pós-graduanda em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA). Membro sênior do Núcleo em Webcidadania (FADISMA). Trabalhadora Voluntária da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Advogada.

REFERÊNCIAS
1 CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 195.
2 Ibidem, p. 195.
3 Ibidem, p. 195-196.
4 Execução Provisória de decisão condenatória em 2º Grau. Transcrição do voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/2/art20160218-01.pdf>. Acesso em: 20/02/2016.

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