Folha.com, 25/02/16
'É uma suruba isso aqui'
Por Pasquale Cipro Neto
E não é que um dos integrantes da desavergonhada cena política brasileira (aliado da vestal Eduardo Cunha) ficou tão escandalizado com os trâmites de uma sessão do Conselho de Ética (ética?) da Câmara que disparou, impávido: "É uma suruba isso aqui". Alguém interveio e disse que o nobre deputado tinha de adequar a linguagem ao rito etc. e tal.
Mas será mesmo que o nobilíssimo deputado feriu o decoro? Vamos aos dicionários, a começar pelo "Houaiss". Sabe qual é a primeira acepção de "suruba" que aparece nessa importantíssima obra? Prepare-se: "Adjetivo de dois gêneros. Regionalismo: Brasil. Uso: informal. Diacronismo: obsoleto. 1. Muito bom, excelente, capaz. Ex.: Um trabalhador suruba". Não acredita? Pois então pode procurar, na versão de papel ou na eletrônica.
Adianto o que vem em seguida: "Substantivo feminino. Regionalismo: Brasil. Uso: informal. 2. Uso: pejorativo. Namoro escandaloso. 3. Porrete grande; cacete. Ex.: Deu-lhe com uma suruba na cabeça".
E cadê o significado em que o caríssimo leitor certamente pensou quando soube da vociferação do ínclito parlamentar? Só vem no fim da lista, desta maneira: "4. Uso: tabuísmo. Sexo grupal; surubada".
O "Houaiss" dá ainda uma locução (brasileira e informal) formada com o substantivo "suruba": "Descascar a suruba". Não é o que você pensou, não, seu ímpio. "Descascar a suruba" é "dar golpes de suruba".
Como sou fidelíssimo seguidor do princípio que norteia o direito ("Todo homem merece crédito até que se prove o contrário"), vou partir do pressuposto de que, homem de elevada cultura, o egrégio integrante da intrépida trupe de sequazes do virginal Eduardo Cunha nem de longe pensou em comparar uma sessão do Conselho de Ética a uma orgia ou a uma bacanal. Quando disse "É uma suruba isso aqui", o representante do povo quis dizer algo como "É uma maravilha isso aqui".
Também se pode pensar que o deputado leu o "Aulete", que dá esta definição de "suruba" (a última da lista): "Situação em que há uma grande desordem, bagunça, confusão". Essa definição é precedida da expressão "P. ext.", que significa "Por extensão de sentido". Pode haver semelhança entre uma sessão do Conselho de Ética, digo, entre uma bacanal e uma grande desordem, bagunça, confusão? Sei não...
Não posso deixar de dizer que os dicionários têm comportamentos distintos em relação à origem da palavra "suruba". Há quem simplesmente silencie, há quem diz que a palavra vem do tupi (sem apresentar a forma da qual a palavra viria), há quem diz (o "Houaiss") que "segundo Nascentes" (Antenor Nascentes) vem "do tupi suru'ba" e, por fim, há quem diz categoricamente que a palavra vem "do tupi suru'ba", mas ninguém diz o que exatamente "suru'ba" significa em tupi.
Os dicionários específicos que tenho também não ajudam. Talvez seja o caso de recorrer ao Professor Eduardo Navarro, bastião do ensino e da divulgação do tupi entre nós.
Como bem ensinou Umberto Eco, "um texto sempre pode ter mais de uma interpretação; toda obra é aberta" ("mas não escancarada", complementava o nosso Haroldo de Campos). A seguir essa lição, devemos considerar a hipótese de que a fala do deputado não tenha caráter tão sórdido quanto o que lhe foi atribuído. Afinal, estamos num país de gente limpíssima. É isso.
inculta@uol.com.br
E não é que um dos integrantes da desavergonhada cena política brasileira (aliado da vestal Eduardo Cunha) ficou tão escandalizado com os trâmites de uma sessão do Conselho de Ética (ética?) da Câmara que disparou, impávido: "É uma suruba isso aqui". Alguém interveio e disse que o nobre deputado tinha de adequar a linguagem ao rito etc. e tal.
Mas será mesmo que o nobilíssimo deputado feriu o decoro? Vamos aos dicionários, a começar pelo "Houaiss". Sabe qual é a primeira acepção de "suruba" que aparece nessa importantíssima obra? Prepare-se: "Adjetivo de dois gêneros. Regionalismo: Brasil. Uso: informal. Diacronismo: obsoleto. 1. Muito bom, excelente, capaz. Ex.: Um trabalhador suruba". Não acredita? Pois então pode procurar, na versão de papel ou na eletrônica.
Adianto o que vem em seguida: "Substantivo feminino. Regionalismo: Brasil. Uso: informal. 2. Uso: pejorativo. Namoro escandaloso. 3. Porrete grande; cacete. Ex.: Deu-lhe com uma suruba na cabeça".
E cadê o significado em que o caríssimo leitor certamente pensou quando soube da vociferação do ínclito parlamentar? Só vem no fim da lista, desta maneira: "4. Uso: tabuísmo. Sexo grupal; surubada".
O "Houaiss" dá ainda uma locução (brasileira e informal) formada com o substantivo "suruba": "Descascar a suruba". Não é o que você pensou, não, seu ímpio. "Descascar a suruba" é "dar golpes de suruba".
Como sou fidelíssimo seguidor do princípio que norteia o direito ("Todo homem merece crédito até que se prove o contrário"), vou partir do pressuposto de que, homem de elevada cultura, o egrégio integrante da intrépida trupe de sequazes do virginal Eduardo Cunha nem de longe pensou em comparar uma sessão do Conselho de Ética a uma orgia ou a uma bacanal. Quando disse "É uma suruba isso aqui", o representante do povo quis dizer algo como "É uma maravilha isso aqui".
Também se pode pensar que o deputado leu o "Aulete", que dá esta definição de "suruba" (a última da lista): "Situação em que há uma grande desordem, bagunça, confusão". Essa definição é precedida da expressão "P. ext.", que significa "Por extensão de sentido". Pode haver semelhança entre uma sessão do Conselho de Ética, digo, entre uma bacanal e uma grande desordem, bagunça, confusão? Sei não...
Não posso deixar de dizer que os dicionários têm comportamentos distintos em relação à origem da palavra "suruba". Há quem simplesmente silencie, há quem diz que a palavra vem do tupi (sem apresentar a forma da qual a palavra viria), há quem diz (o "Houaiss") que "segundo Nascentes" (Antenor Nascentes) vem "do tupi suru'ba" e, por fim, há quem diz categoricamente que a palavra vem "do tupi suru'ba", mas ninguém diz o que exatamente "suru'ba" significa em tupi.
Os dicionários específicos que tenho também não ajudam. Talvez seja o caso de recorrer ao Professor Eduardo Navarro, bastião do ensino e da divulgação do tupi entre nós.
Como bem ensinou Umberto Eco, "um texto sempre pode ter mais de uma interpretação; toda obra é aberta" ("mas não escancarada", complementava o nosso Haroldo de Campos). A seguir essa lição, devemos considerar a hipótese de que a fala do deputado não tenha caráter tão sórdido quanto o que lhe foi atribuído. Afinal, estamos num país de gente limpíssima. É isso.
inculta@uol.com.br
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