sábado, 20 de fevereiro de 2016

Livro: 'Obra Completa de Álvaro de Campos'


http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/02/1741203-nova-edicao-mostra-que-alvaro-de-campos-segue-novinho-em-folha.shtml



Folha.com, 20/02/16


crítica

Nova edição mostra que Álvaro de Campos segue novinho em folha

Por Leonardo Gandolfi



Setembro de 1929 é um mês de intensa troca de cartas entre Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, única namorada do poeta de que se teve notícia. No dia 29, ele termina e sua desculpa é de que precisa de sossego para realizar sua desassossegada obra literária.
 
Quatro dias antes, Ofélia recebe coincidentemente carta de um tal de Álvaro de Campos a respeito de "um abjeto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo". Campos ainda chama o poeta de "meliante" e finaliza aconselhando Ofélia a jogar fora "na pia" qualquer "imagem mental" do namorado.

Esse episódio - que confunde os limites do jogo ficcional - é um bom exemplo da complexa relação envolvendo o poeta e seus heterônimos. Tal jogo se torna ainda mais proveitoso quando mergulhamos a fundo nos textos de cada heterônimo.

​Fernando Pessoa 
( Lisboa, 13 de junho de 1888 - 30 de novembro de 1935)

A publicação da "Obra Completa de Álvaro de Campos" é uma nova oportunidade para isso. O livro abre mais uma porta de acesso ao heterônimo, do lado, por exemplo, das edições preparadas por Cleonice Berardinelli (Nova Fronteira) e por Teresa Rita Lopes (Companhia das Letras).
 
Editado pela Tinta-da-China e organizado por Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello, o presente volume traz, além dos versos do engenheiro heterônimo, textos em prosa assinados por ele e ainda outros não assinados, mas que - na sempre incompleta organização da obra de Pessoa - poderiam ser atribuídos a Campos.

Entre manuscritos e datiloscritos, o livro reúne poemas, ensaios, apontamentos, uma entrevista e outras formas de texto.
 
Há também as correspondências. Pessoa utilizava, de forma estratégica, cartas assinadas pelo heterônimo, como ocorreu no tal episódio de Ofélia. Ou por ocasião de uma resposta raivosa aos jornais portugueses que tanto atacaram "Orpheu", revista da qual participaram tanto Pessoa quanto Campos.

Ao lado de textos menos conhecidos em verso ou em prosa, presentes nessa edição, não perdem o brilho outros mais conhecidos. Eles constituem alguns dos momentos mais especiais da poesia em língua portuguesa do século 20.

São muitos os clássicos: "Poema em Linha Reta", "Tabacaria", "Todas as Cartas de Amor São" e tantos outros. Por exemplo, diz Campos em "Opiário": "Pertenço a um gênero de portugueses/ Que depois de estar a Índia descoberta/ Ficaram sem emprego". Vale também a lembrança dos versos iniciais de "Aniversário": "No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,/ Eu era feliz e ninguém estava morto".
 
Fernando Pessoa agora é um autor em domínio público. Essa liberdade editorial passa a ser também um desafio quando se tem em mãos uma obra, sobretudo, póstuma, cheia de fragmentos e textos inacabados.

Com quase todos seus livros organizados sem sua intervenção direta, o poeta é necessariamente um autor construído por inúmeros editores. Os jovens Pizarro e Cardiello, sem se esquivarem disso, mostram-se conscientes da questão e expõem seus critérios, optando por uma edição crítica que usa a grafia do tempo de Pessoa, além de incluírem variantes e notas para melhor fixação do texto.

O bom resultado dessa operação não altera muito o cenário. Em outras palavras, Álvaro de Campos continua novinho em folha.



LEONARDO GANDOLFI é poeta e professor de literatura portuguesa na Unifesp. Publicou, entre outros, "A Morte de Tony Bennett" (Lumme, 2010).


OBRA COMPLETA DE ÁLVARO DE CAMPOS
AUTOR Fernando Pessoa
EDITORA Tinta-da-China

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