Folha.com, 06/02/16
Não Grite Eugenia: Ouça as Mulheres
Por Debora Diniz*
Eu queria que você me escutasse: por favor, não grite “eugenia!” Essa é uma palavra maldita, carrega um passado de pânico e anuncia um futuro no qual nenhuma de nós quer viver. É verdade, os nazistas foram eugênicos. Eles foram até mais do que isso: houve práticas de exceção e de extermínio, uma força totalitária contra a qual os indivíduos não tinham vontade ou voz. Nem eu nem você jamais esqueceremos o horror da eugenia que obrigou mulheres a abortarem, que fez experimentos em crianças com deficiência, que exterminou os velhos. Essa história de abuso deve ficar para sempre em nossa lembrança.
Não tem nada de eugênico no que vivemos agora com a epidemia do zika no Brasil e o início da conversa sobre o aborto em caso de a mulher ser infectada pelo vírus. Não há Estado totalitário, não há máquinas de extermínio ou solução final; ao contrário, há clamores de mulheres desamparadas para que se reconheça, em cada uma de nós, a soberania da vontade sobre como planejar a família. Se há excessos de autoritarismo, é no atual regime político em que somos proibidas de decidir sobre como, quando e em que condições queremos ter filhos — hoje, o útero é propriedade de quem nos governa com a força da lei penal.
Parece exagerado falar assim, mas não é. Vivemos uma epidemia sem precedentes. A Organização Mundial de Saúde classificou o risco de alterações neurológicas no feto pelo zika vírus como uma hipótese científica com graves repercussões à saúde pública. Há poucos dias, decretou estado de emergência global. O que significa o adjetivo “grave” ou o substantivo “emergência” aqui? Que há um dano causado injustamente às mulheres e aos seus futuros filhos por uma negligência persistente do Estado brasileiro em não ter eliminado o mosquito que carrega o vírus. Duas vezes na história, fomos capazes de eliminar o Aedes aegypti, nos anos 1950 e 1970. O mosquito voltou e metamorfoseou-se em uma nova doença cujas consequências são permanentes em futuras crianças — descrevemos como “microcefalia”, mas a verdade é que estamos diante de um novo quadro clínico ainda sem contornos bem definidos pela medicina.
A gravidez transformou-se em uma espera desamparada para as mulheres, semelhante a um permanente estado de maus-tratos. Novamente, sem risco de exagero, as mulheres vivem uma tortura psicológica pelo medo do mosquito: o Ministério da Saúde recomenda alterar os modos de vestir (mangas compridas no agreste nordestino), fechar janelas e portas (alto verão), ou substituir perfumes por repelentes. São nove meses de desamparo e, se o filho nascer com alterações provocadas pela síndrome neurológica do zika, um longo percurso de necessidades de vida serão demandas dessa mulher para cuidar de si e da criança.
Faço parte de um grupo de ativistas que anunciou uma possível judicialização para fazer frente à negligência do Estado brasileiro. Há um quadro de profundo desamparo com graves ameaças à saúde e à dignidade das mulheres. O direito ao aborto em caso de infecção pelo zika vírus é só uma peça de um amplo marco de fragilização dos direitos sexuais e reprodutivos. É preciso que o Estado brasileiro garanta irrestrito acesso aos métodos contraceptivos, o teste imediato para a virologia do zika em mulheres grávidas, com especial atenção para as regiões de maior prevalência da epidemia. Não podemos esquecer que há uma geografia da epidemia que mimetiza a desigualdade racial e de renda do país. É do nordeste pós-colonial que ouvimos as histórias de desamparo das mulheres.
É por que isso que lhe pedi no início: não grite sua rejeição, tente me ler pensando que somos mulheres muito diferentes, não acreditamos nos mesmos deuses ou sentidos para a vida. Essa mulher nordestina com risco de zika na gravidez, cuja avó foi trabalhadora em um engenho de cana-de-açúcar, vive há mais de quatro décadas com doenças transmitidas pelo mosquito. A novidade é que agora o mosquito que atormentou sua mãe e sua avó ameaça seus filhos. Se você me lê, é porque, como eu, também está distante da realidade dela — da falta de assistência em saúde, de escolas, de saneamento adequado ou de transporte público. Somos mulheres muito diferentes, e as escolhas reprodutivas são uma parte íntima de quem somos.
Eu sei que a questão do aborto provoca sentimentos intensos e dogmáticos em muitas pessoas. Eu me exercitei para acomodar minhas crenças originais e ensaiar um respeito à diversidade de escolhas. Por isso, novamente peço cuidado antes de gritar a essa mulher “assassina!” Nenhuma mulher que aborta é uma assassina — essa é uma acusação que ignora a delicadeza das escolhas reprodutivas, a intimidade de seus sentidos, e o quanto é melhor para todos nós que a liberdade seja o fundamento da vida conjunta. Mas há algo ainda mais particular na conversa sobre o aborto em caso de infecção pelo zika: diferente das outras situações de aborto, essa mulher já é, socialmente, uma futura mãe.
Ela não escondeu a gravidez porque planejava um aborto, ela é uma mulher grávida, uma futura mãe que talvez já tenha iniciado o enxoval do filho. A epidemia a fragiliza até mesmo sobre como se apresentar ao mundo da casa e da rua. Talvez não a mim e a você, pois estamos muito distantes dela. É preciso lembrar sempre que uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto no Brasil — essa é a magnitude do aborto ilegal, inseguro e escondido. O aborto pelo zika vírus também pede proteção do Estado e legalidade, além de sensibilidade extra, sabe por quê? Estamos falando de uma mulher que se confrontará com um rearranjo de seus próprios planos de família e existência. Ela quer ser publicamente protegida, mas não publicamente incriminada como eugênica ou assassina.
A epidemia do zika trouxe perturbação e medo às mulheres grávidas. Nem todas escolherão o aborto, muitas manterão a gravidez. Hoje, não há escolha, é preciso repetir. Nosso pedido judicial é de proteção ao planejamento familiar, à maternidade e à infância — é preciso garantir, em regime de urgência, proteção às mulheres e a seus filhos com deficiência. Estamos falando sobre a necessidade de um Estado social forte, com políticas de proteção que garantam à mulher e à futura criança condições de viver uma boa vida. A isso chamamos políticas de inclusão e proteção social. É assim que falar em direitos das mulheres em tempos de epidemia de zika é falar de planejamento familiar, mas também em direitos de proteção social à infância. Não há como dissociar as escolhas reprodutivas das mulheres da saúde pública ou do bem-estar das futuras gerações.
Por isso, não grite “eugenia” ou “assassina”. A melhor forma de cuidar dessas mulheres é lutando por um Estado garantidor de liberdades e proteções: o direito ao aborto é uma miúda peça nessa arquitetura de necessidades, o direito à proteção social das crianças é parte dessa luta. Não podemos aceitar que a epidemia retire das mulheres as escolhas sobre como desejam viver a maternidade e o cuidado de seus filhos. A melhor escolha é sempre íntima, silenciosa, e não necessita de nossa concordância moral. É assim que lhe peço: não grite, escute. Se não conseguir escutar a dor de cada uma dessas mulheres, exercite o silêncio. As mulheres sentirão o amparo de sua presença, mesmo que distante.
* Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
Eu queria que você me escutasse: por favor, não grite “eugenia!” Essa é uma palavra maldita, carrega um passado de pânico e anuncia um futuro no qual nenhuma de nós quer viver. É verdade, os nazistas foram eugênicos. Eles foram até mais do que isso: houve práticas de exceção e de extermínio, uma força totalitária contra a qual os indivíduos não tinham vontade ou voz. Nem eu nem você jamais esqueceremos o horror da eugenia que obrigou mulheres a abortarem, que fez experimentos em crianças com deficiência, que exterminou os velhos. Essa história de abuso deve ficar para sempre em nossa lembrança.
Não tem nada de eugênico no que vivemos agora com a epidemia do zika no Brasil e o início da conversa sobre o aborto em caso de a mulher ser infectada pelo vírus. Não há Estado totalitário, não há máquinas de extermínio ou solução final; ao contrário, há clamores de mulheres desamparadas para que se reconheça, em cada uma de nós, a soberania da vontade sobre como planejar a família. Se há excessos de autoritarismo, é no atual regime político em que somos proibidas de decidir sobre como, quando e em que condições queremos ter filhos — hoje, o útero é propriedade de quem nos governa com a força da lei penal.
Parece exagerado falar assim, mas não é. Vivemos uma epidemia sem precedentes. A Organização Mundial de Saúde classificou o risco de alterações neurológicas no feto pelo zika vírus como uma hipótese científica com graves repercussões à saúde pública. Há poucos dias, decretou estado de emergência global. O que significa o adjetivo “grave” ou o substantivo “emergência” aqui? Que há um dano causado injustamente às mulheres e aos seus futuros filhos por uma negligência persistente do Estado brasileiro em não ter eliminado o mosquito que carrega o vírus. Duas vezes na história, fomos capazes de eliminar o Aedes aegypti, nos anos 1950 e 1970. O mosquito voltou e metamorfoseou-se em uma nova doença cujas consequências são permanentes em futuras crianças — descrevemos como “microcefalia”, mas a verdade é que estamos diante de um novo quadro clínico ainda sem contornos bem definidos pela medicina.
A gravidez transformou-se em uma espera desamparada para as mulheres, semelhante a um permanente estado de maus-tratos. Novamente, sem risco de exagero, as mulheres vivem uma tortura psicológica pelo medo do mosquito: o Ministério da Saúde recomenda alterar os modos de vestir (mangas compridas no agreste nordestino), fechar janelas e portas (alto verão), ou substituir perfumes por repelentes. São nove meses de desamparo e, se o filho nascer com alterações provocadas pela síndrome neurológica do zika, um longo percurso de necessidades de vida serão demandas dessa mulher para cuidar de si e da criança.
Faço parte de um grupo de ativistas que anunciou uma possível judicialização para fazer frente à negligência do Estado brasileiro. Há um quadro de profundo desamparo com graves ameaças à saúde e à dignidade das mulheres. O direito ao aborto em caso de infecção pelo zika vírus é só uma peça de um amplo marco de fragilização dos direitos sexuais e reprodutivos. É preciso que o Estado brasileiro garanta irrestrito acesso aos métodos contraceptivos, o teste imediato para a virologia do zika em mulheres grávidas, com especial atenção para as regiões de maior prevalência da epidemia. Não podemos esquecer que há uma geografia da epidemia que mimetiza a desigualdade racial e de renda do país. É do nordeste pós-colonial que ouvimos as histórias de desamparo das mulheres.
É por que isso que lhe pedi no início: não grite sua rejeição, tente me ler pensando que somos mulheres muito diferentes, não acreditamos nos mesmos deuses ou sentidos para a vida. Essa mulher nordestina com risco de zika na gravidez, cuja avó foi trabalhadora em um engenho de cana-de-açúcar, vive há mais de quatro décadas com doenças transmitidas pelo mosquito. A novidade é que agora o mosquito que atormentou sua mãe e sua avó ameaça seus filhos. Se você me lê, é porque, como eu, também está distante da realidade dela — da falta de assistência em saúde, de escolas, de saneamento adequado ou de transporte público. Somos mulheres muito diferentes, e as escolhas reprodutivas são uma parte íntima de quem somos.
Eu sei que a questão do aborto provoca sentimentos intensos e dogmáticos em muitas pessoas. Eu me exercitei para acomodar minhas crenças originais e ensaiar um respeito à diversidade de escolhas. Por isso, novamente peço cuidado antes de gritar a essa mulher “assassina!” Nenhuma mulher que aborta é uma assassina — essa é uma acusação que ignora a delicadeza das escolhas reprodutivas, a intimidade de seus sentidos, e o quanto é melhor para todos nós que a liberdade seja o fundamento da vida conjunta. Mas há algo ainda mais particular na conversa sobre o aborto em caso de infecção pelo zika: diferente das outras situações de aborto, essa mulher já é, socialmente, uma futura mãe.
Ela não escondeu a gravidez porque planejava um aborto, ela é uma mulher grávida, uma futura mãe que talvez já tenha iniciado o enxoval do filho. A epidemia a fragiliza até mesmo sobre como se apresentar ao mundo da casa e da rua. Talvez não a mim e a você, pois estamos muito distantes dela. É preciso lembrar sempre que uma em cada cinco mulheres, aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto no Brasil — essa é a magnitude do aborto ilegal, inseguro e escondido. O aborto pelo zika vírus também pede proteção do Estado e legalidade, além de sensibilidade extra, sabe por quê? Estamos falando de uma mulher que se confrontará com um rearranjo de seus próprios planos de família e existência. Ela quer ser publicamente protegida, mas não publicamente incriminada como eugênica ou assassina.
A epidemia do zika trouxe perturbação e medo às mulheres grávidas. Nem todas escolherão o aborto, muitas manterão a gravidez. Hoje, não há escolha, é preciso repetir. Nosso pedido judicial é de proteção ao planejamento familiar, à maternidade e à infância — é preciso garantir, em regime de urgência, proteção às mulheres e a seus filhos com deficiência. Estamos falando sobre a necessidade de um Estado social forte, com políticas de proteção que garantam à mulher e à futura criança condições de viver uma boa vida. A isso chamamos políticas de inclusão e proteção social. É assim que falar em direitos das mulheres em tempos de epidemia de zika é falar de planejamento familiar, mas também em direitos de proteção social à infância. Não há como dissociar as escolhas reprodutivas das mulheres da saúde pública ou do bem-estar das futuras gerações.
Por isso, não grite “eugenia” ou “assassina”. A melhor forma de cuidar dessas mulheres é lutando por um Estado garantidor de liberdades e proteções: o direito ao aborto é uma miúda peça nessa arquitetura de necessidades, o direito à proteção social das crianças é parte dessa luta. Não podemos aceitar que a epidemia retire das mulheres as escolhas sobre como desejam viver a maternidade e o cuidado de seus filhos. A melhor escolha é sempre íntima, silenciosa, e não necessita de nossa concordância moral. É assim que lhe peço: não grite, escute. Se não conseguir escutar a dor de cada uma dessas mulheres, exercite o silêncio. As mulheres sentirão o amparo de sua presença, mesmo que distante.
* Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
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