http://paulomoreiraleite.com/2014/11/27/625/
27 de novembro de 2014
No país de Lula, o grande conciliador
Por Paulo Moreira Leite
Os leitores do Brasil 247 tem o direito de festejar
um
fato raríssimo em nossa vida pública: um debate político franco, travado
com ideias e argumentos, no qual a intenção de esclarecer se sobrepõe
ao esforço nocivo de ganhar uma discussão de qualquer maneira.
Estou me referindo a polêmica aberta por
Breno Altman, um bom amigo,
articulista claro e corajoso, a respeito de meu artigo “
Dilma tenta
evitar armadilha de Jango.” Breno comentou com o texto “Dilma está
diante da armadilha de Getúlio.” Estamos falando de lutadores, no
sentido figurado e no literal. Admirei Waldemar Zumbano, avô de Breno,
que era técnico de boxe. Assisti a muitas lutas de seus tios, inclusive
Eder Jofre, campeão mundial. Também li muitos textos de Breno,
referência em diversos debates.
Tudo está disponível no Brasil 247. Aqui vai meu comentário:
Concordo com grande parte das afirmações de Breno Altman. Temos a
mesma visão sobre a necessidade de proteger o bem estar dos
trabalhadores e dos brasileiros mais pobres. No passado e no presente,
nenhum de nós teve receio de assumir bons combates pela liberdade, pela
Justiça, contra a criminalização das lideranças populares.
Mas creio que
Breno Altman comete um erro essencial ao apontar a
lógica da conciliação como uma espécie de desvio fundamental de grandes
homens públicos brasileiros, como Getúlio Vargas e João Goulart.
Referindo-se ao Getúlio que deu o tiro no peito em 1954, ele escreve
que, “mentor da estratégia” de conciliação, Vargas não entendeu, ou não
quis entender, “talvez por sua origem de classe, que era preciso se
preparar para um choque frontal contra os grupos reacionários” e
“terminou isolado e enfraquecido, vítima da sanha dos homens oligarcas
da terra, do dinheiro e da informação, mas também do tabuleiro político
que havia desenhado, no qual a intervenção dos trabalhadores e do povo
tinha somente papel eleitoral.”
Quanto a Goulart, também conciliador, “manteve-se preso a
determinados paradigmas herdados de Getúlio.” O problema de Jango,
explica, era resistir em se preparar para uma “uma
situação de ruptura,
na qual as contradições costumeiramente se resolvem pela vitória da
revolução ou da contrarreevolução.”
LULA, O GRANDE CONCILIADOR
Acho que é
impossível debater conciliação política, no Brasil de
2014, sem discutir Luiz Inácio Lula da Silva, cujo espírito conciliador é
um traço essencial de sua personalidade política.
Lula e seu espírito para negociar, ceder, avançar e ir em frente são
parte insuperável dos progressos que o país obteve nos últimos doze anos.
Estamos falando de acordos nascidos de vários pactos de conciliação —
alguns selvagens, outros elegantes, muitos desastrados — entre a classe
dominante tradicional e a direção do Partido dos Trabalhadores,
onde
Lula sempre assumiu um papel destacado e único.
Palavra associada, erradamente, a capitulação e recuo, a conciliação é
um exercício fundamental na prática cotidiana das democracias, onde as
instituições existem para conciliar — compatibilizar, harmonizar, as
palavras são muitas — os direitos da maioria e proteger a minoria.
A adaptação fácil a essa situação ajuda a entender o
desempenho fora
do comum de Lula na presidência da República.
Sem perder sua referência
de classe, que lhe garantiu o reconhecimento do eleitorado, ele não
deixava de dialogar e mesmo fazer concessões a aliados, adversários e
até inimigos.
Antes mesmo de vestir a faixa presidencial já se tornara amigo de infância de George W. Bush
Refazendo um percurso ocorrido em vários países ao longo do século
XX, autores como Tony Judt e Adam Przeworski relatam o que se pode
chamar de grande conciliação universal desde a emergência dos
trabalhadores na cena política europeia.
Num processo diferenciado de um país a outro, a classe dominante
aceitou abrir mão de uma parte de seus lucros para fazer concessões e
benefícios aos assalariados, num grau de conforto que nenhum de seus
profetas seria capazes de imaginar. Em troca, os trabalhadores
concordaram em respeitar a propriedade privada, trocando a ideia de
mudanças revolucionárias pelo respeito às regras do regime democrático.
NOSTALGIA AUTORITÁRIA
Olhando o ministério que foi empossado por Lula em 2003, com Antonio
Palocci e Henrique Meirelles nos postos principais, Joaquim Levy no
Tesouro, alinhados pela Carta ao Povo Brasileiro que falava em elevar o
superávit primário até onde fosse necessário — como sugeriu o empresário
João Roberto Marinho, da TV Globo — é obrigatório falar em conciliação.
Olhando os resultados, cabe perguntar:
conciliação entre quem?
Era possível, na época, ler jornais que diziam que o medo tinha vencido a esperança.
Economistas ligados ao PT diziam que Lula havia superado o presidente
argentino Carlos Menén na fidelidade ao Consenso de Washington.
Impaciente com a demora na reforma agrária, a CNBB anunciou sua ruptura com o governo.
Um grupo importante de parlamentares e de organizações que atuavam no
PT aproveitou a reforma da Previdência para denunciar o governo e
fundar o PSOL.
Hoje reconhecido como um dos maiores programas de distribuição de
renda do planeta, o Bolsa Família era criticado como “política
compensatória”, uma espécie de esmola institucional propagandeada pelo
Banco Mundial. Também foi acusado — internamente — como fonte de
corrupção, prestação de favores e clientelismo.
Maior feito econômico do governo Lula, a resposta a crise de 2008 foi
um carrossel de negociações com empresários, sindicalistas, banqueiros e
políticos. Conciliação pura.
No Brasil dos anos 1950 e 1960, a democracia não era vista como um
regime respeitável por si — mas como caminho para uma revolução
socialista ou uma sala de espera para golpes de Estado.
Considerava-se que, em função de seu atraso econômico e perfil
sociológico, o país não era capaz de alimentar regimes democráticos
estáveis — nem possuía políticos à altura das necessidades da população.
Lideranças populares, comprometidas com causas democráticas, eram
tratadas com desprezo por estudiosos influentes de nossa vida pública. O
professor
Octavio Ianni, conceituado autor de
O Colapso do Populismo no Brasil, costumava se referir ao sistema político como “democracia populista” —
conceito-avô do “bolivarianismo” empregado hoje pelos adversários do
PT.
Estudioso de uma geração posterior, em
O Populismo na Política Brasileira, Francisco
Weffort, que anos mais tarde seria um dos fundadores do PT, escreveu:
“
Na impotência histórica da pequena burguesia está a raiz da demagogia
populista. (…) por limitar-se às formas pequeno-burguesas de ação, o
populismo traz em si a inconsistência que conduz inevitavelmente à
traição.”
Essa visão mudou. A fraqueza da democracia liberal do pós-Guerra
tinha a ver com suas origens — um golpe de Estado que derrubou um
ditador popular — e também em seu pouco interesse para atender
reivindicações das grandes camadas da população.
A democracia que vivemos nasceu nas campanhas de rua contra a
ditadura, que envolveram estudantes e trabalhadores, a classe média
liberal e mesmo empresários.
Sofrida, difícil, a eleição direta não foi
uma dádiva, mas uma conquista e isso é reconhecido pela memória da
população, que despreza a nostalgia autoritária.
“NADA VIAM ALÉM DA REVOLUÇÃO
Apesar de uma imensa votação popular, Getúlio foi emparedado por uma
conspiração de políticos, empresários conservadores
e aliados locais do
governo norte-americano, inconformados com a criação da Petrobrás, na
época em que, no Irã, a CIA promovia — às claras — um golpe de Estado
para derrubar um primeiro-ministro nacionalista e restaurar a monarquia.
Getúlio foi combatido, também, por quem poderia ter-lhe dado apoio e
sustentação, pois falava em nome de uma parcela importante dos
trabalhadores e da população pobre do país, o PCB, uma das principais
organizações populares de então.
Alinhado com uma perspectiva ultra-esquerdista de expandir a
revolução a qualquer custo, típica dos anos iniciais da Guerra Fria,
o
PCB considerava Getúlio mais do que um inimigo de classe: um aliado do
imperialismo, recusando-se até a fazer campanha por sua eleição, em
1950. Pregou o voto branco. Graças a esse
comportamento, que auxiliava a
elite que tentava derrubar Getúlio de qualquer maneira, após o tiro no
peito, em 1954, a multidão que saiu às ruas para defender suas
conquistas e esperanças empastelou a redação dos jornais do partido.
Jango tomou posse em função de uma luta democrática que chegou às
fronteiras de uma guerra civil — quando Leonel Brizola mostrou que
a
democracia nem sempre pode ser defendida de mãos vazias. Procurando
enfrentar uma inflação de 25% anuais, Jango não conseguiu apoio para o
Plano Trienal de Celso Furtado, projeto que implicava num pacto social
que previa o controle de preços, que os empresários não apoiavam, e de
salários, que os sindicatos combatiam.
O esvaziamento desse possível acordo de conciliação foi seguido pela
nomeação de Carvalho Pinto, político com fortes ligações com o
empresariado paulista e também com a esquerda católica. Um de seus
principais assessores na época era Plínio de Arruda Sampaio, que ajudou a
levar o PDC para a base de apoio de Goulart e, décadas depois, seria
dirigente do PT e, após nova mudança, candidato a presidente pelo PSOL.
Após a queda de Carvalho Pinto ocorre uma nova mudança no governo
Goulart, que abandona projetos de acordo político para uma ação de
ruptura. “Vendo que seu governo acabaria sem realizar as reformas, o
presidente aderiu a proposta de enfrentamento pregada pelas esquerdas,”
avalia Jorge Ferreira, na espetacular biografia
João Goulart. “Mesmo contrariado, fez tudo o as esquerdas quiseram. Todos os projetos de lei exigidos foram enviados ao Congresso Nacional.”
Mas a cena política mudava rapidamente, liberando forças que pareciam
mais importantes do que se pensava. Jango fora ultrapassado — embora
não fosse fácil distinguir o rumo dos acontecimentos. Ferreira avalia
que, diante do motim dos marinheiros — liderados pelo sempre obscuro
Cabo Anselmo — “
as esquerdas, embriagadas pela arrogância e
autossuficiência, nada viam além da revolução.”
A BUSCA DE UM NOVO GOVERNO
Dilma venceu as eleições mais apertadas ocorridas depois da
democratização do país. Comprou e venceu o debate político, o mais claro
de nossas eleições recentes.
Mas Dilma foi derrotada em urnas de forte presença operária e
tradição de voto no PT, como aconteceu no ABC paulista. Enfrentou uma
campanha atroz por uma parte da elite de grandes empresários e da cúpula
do aparelho de Estado, que terminou numa
inaceitável tentativa de
intervenção no resultado da eleição. Antes que seus eleitores fossem as
ruas para celebrar a vitória, em várias cidades do país ocorreram
manifestações de cunho fascista a favor de um golpe militar.
É nesse ambiente que Dilma tenta construir um novo pacto político,
mais amplo do que o governo de 2010-2014. Convencida de que
os problemas
econômicos tem uma raiz política, quer ampliar a base do governo. Em
sintonia com Lula, seus movimentos tem como objetivo aproximar-se dos
mercados, que em vários momentos do primeiro mandato mostraram
disposição de sabotar as medidas do governo.
É uma
decisão que implica em alguma dose de risco para Dilma. Não se
sabe até onde ela irá, para encontrar novos caminhos em relação ao
modelo atual.
Pode-se apostar que, em breve, será pressionada a entregar plenos
poderes a Joaquim Levy, afastando-se da área econômica. Qualquer senho
franzido será motivo de crise midiática.
Esses movimentos fazem parte do jogo político. Mas temos o direito de duvidar que a presidente irá ceder.Dilma também trouxe o empresário Armando Monteiro Neto, responsável
pela campanha vitoriosa no Recife, e que foi duas vezes presidente da
Confederação Nacional da Indústria, CNI. Está comprando uma briga para
nomear Katia Abreu, que foi presidente da Confederação Nacional da
Agriculutura,
é inimiga número 1 do MST e dos movimentos sociais ligados
a terra — mas tem uma boa relação pessoal com a presidente e, numa
eleição disputadíssima, ajudou na vitória em Tocantins. Num movimento
para o outro lado, Dilma recebeu o teólogo Leonardo Boff e Frei Betto, a
quem disse que fará dos movimentos sociais a prioridade de seu governo.
Cumprindo o que disse, terá mais facilidades para enfrentar turbulências que certamente virão.
O reconhecimento popular pela importância da vitória se manifesta na
empolgação pela cerimonia de inauguração do segundo mandato. As notícias
são de uma grande mobilização rumo a Praça dos 3 Poderes.