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Carta Maior, 23/11/2014
Perguntas ao futuro do governo Dilma
Por Saul Leblon
É possível ser governo e colocar a história em banho-maria?
E nesse fogo brando, entregar aos centuriões do mercado o comando de setores chaves da economia, sem perder o poder da iniciativa política na sociedade?
É possível trazer os conflitos de classes para dentro da equipe de governo, entregando ao dinheiro organizado a cogestão do mandato, e ainda assim avançar para construir uma hegemonia que dê ao campo progressista a capacidade de, no passo seguinte, inverter a sensação atual?
A de que vencemos, mas não levamos.
É possível contemplar os protagonistas do terceiro turno em curso, outorgando-lhes fatias do Estado que não conquistaram nas urnas, sem perder o apoio mobilizado daqueles que há 12 anos sustentaram a aposta no projeto oposto, renovada por mais quatro em outubro de 2014?
É possível fazer tudo isso sem transformar o segundo mandato de Dilma em um frango desossado da Sadia, destrinchado e servido em pedaços inversamente proporcionais à métrica das urnas?
Elucubrações fervilhavam nos círculos progressistas neste fim de semana marcado pela sinalização –ainda não oficial- dos nomes que integrarão o núcleo duro do governo Dilma na área da economia.
A ver para crer, o pelotão será encabeçado pelo centurião do arrocho fiscal, Joaquim-Mãos-de-Tesoura-Levy. O cetro lhe foi merecidamente atribuído no 1º governo Lula, cujo início ortodoxo agora se aconselha a Dilma em resposta ao cerco conservador, semelhante, em certos aspectos, ao terceiro turno armado em 2003.
Coube então ao mesmo Levy, no comando da Secretaria do Tesouro, ao lado de Antônio Palocci, na Fazenda, adotar o receituário de arrocho fiscal e juros altos para combater a inflação, quebrar o descontrole da dívida pública e resgatar a confiança dos investidores.
A travessia funcionou naquele caso.
E não se pode esquecer que as condições herdadas do ciclo tucano eram acentuadamente piores que as atuais: a inflação lambia os 13%; a dívida pública transitava acima de 60% do PIB; uma perversa associação entre déficit externo alto e reservas indigentes convidava à fuga de capitais. O dólar bailava nas alturas.
Levy/Palocci/Meirelles (este importado diretamente do Banco de Boston para o BC de Lula) mostraram logo a que vinham.
A Selic foi esticada a 26% ao ano (hoje é de 11,5% e já paralisa o país); o superávit primário foi fixado em 4,25% do PIB ( este ano, descontados os investimentos do PAC e desonerações, será próximo a zero).
A tesoura nos gastos foi inclemente, com um porém.
A área social foi poupada: o investimento neste caso aumentou o equivalente a 0,58% do PIB entre 2003 a 2006.
O Bolsa Família deu um piso à pobreza extrema.
Mas foi sobretudo o aumento do salário mínimo, de 40% no período, que funcionou como contrapeso ao arrocho, beneficiando milhões de famílias e aposentados.
A inércia do desastre tucano e o aperto econômico provocaram uma redução de 12,6% do rendimento médio real do trabalhador no primeiro ano do primeiro governo Lula.
A taxa média de desemprego nas cinco regiões metropolitanas subiu de 11,7% para 12,3%.
Em 2004, o PIB retomou um ritmo forte de crescimento (4,9%), e a taxa de desemprego caiu para 11,5%. Não o suficiente, ainda, para reverter a ladeira do rendimento real dos assalariados, que recuou mais 0,7%.
Só em 2005 ele cresceria, de fato, 2%; sem beneficiar, todavia, os trabalhadores com carteira assinada (que tiveram queda de 0,8% na renda real no ano).
Essa receita politicamente delicada pode ser digerida sem um ônus maior porque uma válvula de escape econômica estava incrustrada em sua moldura estratégica.
Essa válvula de escape encontra-se indisponível hoje.
No primeiro governo Lula, o arrocho interno foi compensado por uma expansão do mercado mundial da ordem de 4,5% ao ano.
Puxava-o a locomotiva asiática.
Com crescimento médio de 11% no período, a China sozinha respondia por 40% do estirão global.
A forte demanda chinesa por matérias-primas e alimentos resultou na decolagem das cotações mundiais das commodities agrícolas e minerais.
O Brasil foi beneficiado nas duas pontas.
Entre 2002 e 2011, as exportações brasileiras quadruplicaram; a alta dos preços correspondeu a cerca de 65% deste resultado.
O peso das commodities nos embarques saltou de 45% para 60%. Mas os produtos manufaturados também ganharam espaço triplicando as vendas para uma América Latina favorecida pela mudança nos termos das trocas internacionais.
O saldo comercial médio do país entre 2003 e 2007 foi de US$ 38 bilhões (10 vezes maior que o de 2013).
O conjunto deu ao Brasil a inédita vantagem de superávits em transações correntes –de 1% a 2% do PIB- contra déficit atual da ordem de 3,5%.
Portanto, se hoje os nomes se repetem na sinalização de uma estratégia parecida o pano de fundo global é adversamente distinto.
A estagnação decorrente da implosão da ordem neoliberal, com comércio declinante e a locomotiva chinesa a meio vapor, subtrai ao país o espaço acomodatício que a implementação da receita original requisitaria.
Um atenuante de peso não pode ser minimizado.
O desarranjo interno atual, repita-se, é incomparavelmente mais brando do que o desmantelo legado pelo ciclo tucano faz diferença.
Hoje, a relação dívida pública/PIB encontra-se estabilizada na faixa dos 37% contra 60% em 2002; as reservas passam de US$ 370 bi, dez vezes maiores que o saldo deixado pelos governos do PSDB; a inflação declinante, de 6,4%, está abaixo do teto da meta, sendo a metade dos 12,3% produzidos pelo neoliberalismo tucano.
Se a equação mais favorável dá a Dilma maior poder de controle sobre os paladinos do arrocho, persiste, todavia, o vácuo estratégico.
A ausência de dinamismo produtivo –antes favorecido pela expansão mundial- pode algemar a economia a uma bola de neve de retração de investimento, desemprego e esgarçamento social.
Que peça do tabuleiro seria capaz de desarmar essa emboscada fatal?
Desde logo, fica claro que é preciso ir além do amparo aos mais pobres, de 2003.
Essa conquista está precificada nos impasses atuais.
E, deixemos de miragens: os mercados não deflagrarão um novo ciclo expansivo por obra e graça dos acenos de Levy e Tombini.
A hipótese de que se possa injetar racionalidade ao capitalismo brasileiro com a paradoxal adoção, mesmo parcimoniosa, de sua irracionalidade na gestão econômica, soa otimista.
O buraco é mais fundo.
‘O Brasil não tem mais um empresariado com projeto de desenvolvimento’, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, ainda a mascar o cardápio ministerial que recusa a enviar ao seu sistema digestivo.
‘Na Inglaterra, nos anos 20, também foi assim’, diz o economista ecumenicamente reconhecido como referência intelectual no debate do desafio brasileiro.
Sem renunciar à serenidade característica, ele estica um fio histórico que vai muito além da fulanização das escolhas ministeriais:
‘Nesse vácuo de projeto, o comando da sociedade fica submetido aos impulsos rentistas. É preciso entendê-los para não subestimar o seu impacto e o seu alcance’, delineia para cravar o alvo de sua preocupação: o risco de uma deriva brasileira.
‘O rentismo age compulsivamente na tentativa de preservar sua riqueza das incertezas intrínsecas ao sistema. A isso corresponde uma forma social. Essa que vivemos. Com as suas consequências políticas, econômicas e humanas. A Inglaterra dos anos 20 viveu um quadro equivalente e entrou em decadência’, adverte o economista.
E descortina em seguida: ‘A decadência inglesa foi a grande referência de Keynes; boa parte de sua obra é a busca de uma resposta a isso. O Brasil corre o risco de ingressar em um processo de decadência precoce, assim como precocemente assiste à desindustrialização’, resume.
A incapacidade de o país estruturar uma alternativa política a essa espiral explica que um mês depois da vitória eleitoral progressista, aguarde-se o anúncio de Joaquim-Mãos-de-Tesoura-Levy para comandar a Fazenda do segundo governo Dilma.
Não é uma jabuticaba brasileira.
‘Assiste-se em todo o mundo a uma regressão da macroeconomia’, arremata Belluzzo citando a insuspeita avaliação de um dirigente mundial do CityGroup.
Por regressão macroeconômica entenda-se o fato de que a supremacia financeira, contra a qual Keynes lutou incansavelmente, deixou de figurar como o ‘germe de uma decadência’ curável com antígenos produtivos do próprio sistema.
O rentismo não é uma patologia do capitalismo no século XXI. É um desdobramento inerente à dinâmica de um sistema deixado à própria lógica. Sem os contrapesos de forças em sentido contrário, o capitalismo quanto mais dá certo, mais dá errado. Nos seus próprio termos.
O rentismo é o seu auge para os detentores do capital. E o abismo para a sociedade.
Nesse percurso avesso às convergências racionais as crises regurgitam uma desordem constitutiva.
E assumem invariavelmente a forma de superprodução - “de capital e não de mercadorias”, diria Belluzzo.
É justamente a reprodução em metástase do capital fictício, decorrente do desmonte do aparato regulatório do pós-guerra, que levou à captura dos mercados, das elites, da mentalidade de uma parte da classe média e do horizonte empresarial –bem como de todo o sistema político- pela lógica rentista.
A mesma que agora engessa o desenvolvimento brasileiro.
A ascensão de ‘Joaquim-Mãos-de–Tesoura-Levy’ é a expressão atual desse círculo de ferro.
Não se espere de Dilma Rousseff a rendição incondicional a esse arranjo que seus sucos gástricos tiveram enorme dificuldade de processar.
É um arranjo.
É visto como provisório.
Pelos dois lados.
E a buliçosa busca de um atalho para o impeachment, que desfila solta na praça, sinaliza o quão tênue é o endosso do conservadorismo a essa trégua.
Ilude-se, portanto, quem imagina que um país pode ser colocado no modo de espera sem que seus conflitos estruturais se aprofundem, emparedados pelo estreitamento do horizonte econômico local e global.
A dificuldade extrema de injetar racionalidade aos capitais que se comportam, todos, como capital estrangeiro diante da sociedade no século XXI, é o calcanhar de Aquiles do keynesianismo nos dias que correm.
Leia-se, da esquerda desafiada a gerir o sistema sem dispor, ainda, de meios para transformá-lo.
Mas é, também, a fonte da vertiginosa transparência política que assumem os impasses do desenvolvimento em nosso tempo.
Vale dizer, o manto da racionalidade técnica deixa um ‘Joaquim Mãos de Tesoura Levy’ tão exposto quanto o rei nu aos olhos de uma criança.
A irracionalidade financeira reina em todo o mundo capitalista.
No Brasil ela requisita 5,5% do PIB por ano ao pagamento de juros aos rentistas.
É quase a metade de um orçamento público já insuficiente para expandir a logística social e urbana.
As portas de saídas ‘técnicas’, portanto, não parecem conduzir a lugar algum exceto ao miolo do labirinto.
Nele está sepultada a margem de manobra para harmonizar a supremacia financeira e o desenvolvimento com equidade social.
Fuga para frente a bordo de uma expansão acelerada, que acomode o que é incompatível?
Tampouco aqui se oferece uma alternativa à estagnação neoliberal.
Ademais da hegemonia rentista, a receita do pós-guerra enfrenta hoje os limites da equação ambiental.
Ao contrário do que pontifica o econeoliberalismo de Marina e assemelhados, o que se recomenda é justamente um alargamento da indução política sobre o investimento e a distribuição para reconciliar a qualidade de vida com o imperativo da sobrevivência ecológica.
Na arrastada definição do ministério de Dilma pulsam, assim, a crueza dos conflitos e a crueza das opções em jogo. Antes de personificarem a solução os nomes debulhados ilustram o tamanho e a profundidade dos impasses.
Quando a abundância de capitais se transforma em um poder antagônico à abundância de investimentos requeridos pela sociedade, não há ‘ajuste técnico’ que conduza ao desenvolvimento.
Não é possível ser governo e colocar a história em banho-maria.
Mas é possível ser governo e assumir que, para honrar as tarefas que lhe competem, será preciso coogerir o país em coesa sintonia com a sociedade, munida dos meios necessários a esse fim.
Leia nesta pág. a reportagem sobre a agenda da conferências nacionais da cidadania programadas para 2015.
Pode estar aí um pedaço do fio da meada, desde que seja concebido assim e assim respeitado para valer.
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