'Oito dias depois, Jesus reapareceu e atendeu-lhe a expectativa.
(João 20, 19-28)'
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O Globo.com, 20/11/2014
O santo dos incrédulos
Por Frei Betto
Tomé é o santo dos incrédulos. Foi o apóstolo que esperou ver para crer. Antecipou-se à dúvida cartesiana. Não acreditava em palavras, e sim em comprovação empírica.
Ao ouvir Jesus afirmar, na Última Ceia, “para onde vou, vocês conhecem o caminho”, Tomé objetou: ”Senhor, se não sabemos para onde vai, como podemos conhecer o caminho?”
Jesus respondeu: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14, 4-5). Afirmação que, séculos mais tarde, faria Dostoiévski professar: “Ainda que me provassem que Jesus não estava com a verdade, eu ficaria com Jesus.”
Após a ressurreição, Jesus apareceu aos discípulos. Tomé não estava entre eles. Duvidou ao lhe contarem: “Vimos o Senhor.” Só acreditaria se também visse e tocasse as marcas deixadas pela crucificação no corpo de Jesus. Oito dias depois, Jesus reapareceu e atendeu-lhe a expectativa (João 20, 19-28).
É intrigante constatar que Jesus ressuscitado tinha no corpo marcas dos suplícios que sofreu. A pretender enganar os incautos, os evangelistas teriam criado um ressuscitado “glorioso”, em corpo translúcido, sem a menor imperfeição. O que nos induz a crer que os relatos da ressurreição foram baseados em fato objetivo.
Os mais eminentes santos tiveram momentos de incredulidade. Até Jesus: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Marcos 15, 34). Quem de nós nunca se sentiu abandonado por Deus?
A fé é um dom a ser cultivado. Jesus teve crise de fé porque acreditava como nós cremos. É herética a ideia de que Jesus tinha uma fé inabalável. Em tudo era igual a nós - nas etapas de crescimento, na sexualidade, na capacidade cultural - exceto no pecado, porque amava assim como só Deus ama. Na feliz expressão de Leonardo Boff, “humano assim como ele foi, só podia ser Deus mesmo.”
Jesus cultivava sua fé ao passar longas horas em oração, informa o Evangelho de Lucas. Quanto mais oramos, mais aprofundamos a fé. Ocorre que a oração é uma experiência relacional, amorosa. Exige gratuidade. Nesse mundo atribulado do “time is money” é difícil encontrar tempo para a oração.
Falamos de Deus e com Deus; pouco deixamos Deus falar em nós. Temos fé em Jesus, não a fé de Jesus. Todos somos movidos por algum tipo de fé, acreditar no que não se vê. Seja na tecnologia do avião que nos conduz, na Bolsa de Valores, na pessoa que amamos e que se encontra distante. Daí os vocábulos confiança (com fé) e fidelidade (fiel à fé).
São Tomé está em voga. Queremos “tocar” para crer: presenciar um milagre, obter uma graça, sentir-nos abençoados por Deus. Na sociedade do hedonismo, perdemos a capacidade de acolher o Mistério. Difícil lidar com sofrimentos e fracassos. Para muitos, são a prova da inexistência de Deus.
Não sabemos lidar também com o silêncio de Deus em nossas vidas. Estamos longe da experiência de Abraão, que “esperou contra toda esperança”, segundo Paulo (Romanos 4, 18), e de Jó, que, apesar das adversidades, não perdeu a confiança em Deus.
Talvez o silêncio de Deus resulte de nosso equívoco em buscá-lo onde ele não está. Como ocorreu ao profeta Elias, que esperava encontrá-lo no furacão, no terremoto ou no fogo. E Deus se manifestou na brisa suave (1 Reis 19, 9-12): no gesto de amor, na solidariedade, no mais profundo de si mesmo.
Se queremos “tocar” Deus, eis os recursos: a oração, que nos conecta a ele; a meditação, pela qual sabemos onde ele habita: no mais íntimo de nós mesmos; e o amor, a experiência de vivenciá-lo no próximo, dando a vida “para que todos tenham vida” (João 10, 10).
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