sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Piketty: Europa está à beira de uma grave crise política, econômica e financeira



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Carta Maior, 21/11/2014


Piketty: Europa está à beira de uma grave crise política, econômica e financeira



Por
Daniel Fuentes Castro, EL DIARIO.es



O economista autor do influente livro "O capital no século XXI" reflete sobre o auge da extrema direita em seu país. "França e Alemanha demonstraram ser egoisticamente míopes em relação à Espanha e à Itália ao renunciar a compartilhar seus tipos de interesse". "É preciso se acostumar a viver com um crescimento fraco". "A ideia segundo a qual é preciso insistir em secar os orçamentos com base em mais austeridade para curar o doente me parece completamente insensata".

Thomas Piketty (Clichy, França, 1971), economista da Paris School of Economics, é especialista no estudo das desigualdades econômicas por uma perspectiva comparada. É autor de "O capital no século XXI", obra que vendeu mais de um milhão de exemplares em todo o mundo e que ao ter sido recentemente editado para espanhol e catalão lhe transformou em um dos economistas mais influentes da atualidade.

A Paris School of Economics, de criação recente, tem sua sede nos locais da École Normal Supérieure (13 prêmios Nobel e 10 medalhas Fields nas costas), no boulevard Jourdan. Não é um dos colossais edifícios do século XIX, de pedra talhada, onde outras instituições como a Sorbonne ou a faculdade de Direito de Panthéon-Assas ainda conservam suas sedes históricas. Trata-se de um conjunto de edifícios relativamente moderno, mas avelhentado. O vinílico desgastado do solo e a cor amarelada de algumas paredes revelam que, se falamos em capital, não é físico, mas sim humano.

Três percevejos da porta do escritório de Piketty seguram uma folha de papel com seu nome. Do quarto só restou a agulha. Seu escritório mede cerca de 15 metros quadrados, 20, se muito, e está cheio de estantes repletas de livros. Não tem assistente pessoal. Não veste terno, nem gravata. Desde o primeiro momento, mostra-se amável, sorridente e natural. Um pouco tímido. Ainda que dê a sensação de não nunca ter quebrado um prato na vida, se expressa sem titubear e com veemência em alguns momentos.


Há quem veja no título “O capital no século XXI” pisca para a obra de Karl Marx “O capital”. Você considera que a confrontação ideológica entre capitalismo e marxismo continua vigente?


A disjuntiva não é capitalismo ou marxismo. Há diferentes maneiras de organizar o capitalismo e há diferentes maneiras de superá-lo. O que meu livro tenta é contribuir com este debate. Quanto ao marxismo, faço parte da primeira geração posterior à Guerra Fria, a primeira geração pós-marxismo. Completei 18 anos com a queda do Muro de Berlim (no dia da entrevista fazia exatamente 25 anos). Li Marx e há ideias interessantes nele, contribuições notórias, mas O capital foi escrito em 1867 e estamos em 2014. O que eu tento é introduzir no século XXI a questão do capital, de seu estudo, isto é, para mim, o que o título do meu livro significa.

Não se pode esquecer que este trabalho teria sido impossível sem as tecnologias da informação, que permitem reunir e tratar dados históricos em uma escala impossível para Marx e até mesmo Kuznets. É fácil criticar os economistas do passado, mas eles trabalhavam na mão. Não contavam com as ferramentas que nós temos e, sobretudo, não tinham a perspectiva histórica que hoje temos e que nos permite contar a história do capital e das desigualdades. Isto é o que meu livro tenta fazer. Não pretende anunciar uma revolução, tenta apenas colocar à disposição dos leitores as pesquisas históricas que pudemos reunir sobre mais de vinte países e que englobam três séculos. O livro é, antes de qualquer coisa, uma história do capital.


Seu livro estuda de maneira empírica, entre outras coisas, a relação entre distribuição de renda do crescimento. Pode-se falar de causalidade direta no sentido de que uma melhor distribuição da renda produzindo uma taxa de crescimento maior como efeito?

A correlação e a causalidade são ambas muito complexas e não vão em um sentido apenas. A desigualdade pode ajudar o crescimento até certo ponto, mas para além de um determinado nível de desigualdade, obtém-se principalmente um efeito negativo que reduz a mobilidade na sociedade e conduz à perpetuação da estratificação social no tempo. Isto tem um impacto negativo sobre o crescimento.

O outro efeito negativo se produz através das instituições políticas: uma desigualdade muito forte pode levar ao sequestro das instituições democráticas por parte de uma pequena elite que não vai necessariamente investir na sociedade pensando no conjunto da população. Por isso, o crescimento no século XXI vai depender em grande medida do investimento em educação e formação, e não unicamente para uma pequena elite, mas para uma imensa maioria da população.


Para além das previsões de conjuntura econômica, o que se pode esperar do crescimento nos próximos anos? O que as expressões desenvolvimento sustentável e decrescimento lhe sugerem?

Acredito que tenhamos que nos acostumar a viver de maneira sustentável com um crescimento fraco. O problema é que tanto na França como em outros países europeus continuamos tendo em mente essa espécie de fantasia dos "trinta gloriosos" (expressão que faz referência às três décadas transcorridas entre a Segunda Guerra Mundial e a crise do petróleo em 1973), segundo a qual precisamos de pelo menos três, quatro ou cinco porcento de crescimento para sermos felizes. Isto não tem sentido. Somente nas fases corretivas em que alguns países recuperam os atrasos em relação a outros, ou em fases de reconstrução, acontecem taxas de crescimento tão elevadas.

É preciso colocar na cabeça que uma taxa de crescimento de 1% ou 1,5% ao ano é um crescimento muito rápido, se prolongado no tempo. Com taxas de crescimento assim durante um período de trinta anos, que é o equivalente a uma geração, acontecerá um crescimento da renda que equivale a um terço ou até mesmo à metade do PIB.


Por outro lado, ter que viver de maneira sustentável não é argumento para defender crescimento nulo. Uma taxa de crescimento entre 1% e 1,5% ao ano no longo prazo é fonte de progresso e não é um objetivo impossível. Agora, para alcançar um ritmo de crescimento assim, é preciso abandonar a atual política de austeridade. Isso em primeiro lugar. E sobretudo é preciso investir em ensino superior, em inovação e meio ambiente... Falo de investir em meio ambiente porque é evidente que terá que encontrar novas fontes de energia renováveis, visto que com as fontes atuais não poderemos manter uma taxa de crescimento de 1% ou 1,5% ao ano indefinidamente.


Considerando as últimas previsões da Comissão Europeia, não parece que estejamos perto de alcançar essa velocidade de cruzada. Você acredita que a austeridade seja um mal necessário para retomar o ritmo de crescimento?

A realidade é que caminhamos rumo a uma década imersos em um clima de recessão e de austeridade. Digo isto porque o PIB por habitante estimado para a França em 2014 ou 2015 é inferior ao de 2006 ou 2007. Esta é a situação. Estamos há quase dez anos em estancamento da renda per capita, da riqueza do país, do poder aquisitivo... A partir daqui podemos discutir tudo o que quisermos sobre qual precisa ser a arrecadação do Estado, quanto deve ser o gasto público ou qual deve ser o peso do setor privado na economia, mas o fato é que a riqueza total disponível é inferior à de 2007. Não recuperamos o nível anterior à crise. É normal que, em uma situação como esta, o ambiente seja depressivo.

A ideia segundo a qual é preciso enxugar os orçamentos com base em mais austeridade para curar o paciente me parece completamente insensata. Digo isto pensando na França, mas o mesmo vale para a Itália, com taxas de crescimento negativas em 2013 e em 2014. É verdade que o crescimento na Espanha está um pouco melhor agora, mas não nos esqueçamos que ela ainda sofre um atraso considerável em termos de renda per capita em comparação a outras grandes economias da Europa.

O resultado global das políticas de austeridade nos últimos quatro ou cinco anos é, de maneira objetiva, muito ruim. Os Estados Unidos tinham uma taxa de desemprego muito similar à da zona do euro de alguns anos atrás e atualmente a diferença é enorme. O desemprego diminuiu ali, apesar de o nível da dívida de ambas economias ser muito semelhante na situação de partida. Não há dúvidas sobre quem escolheu a estratégia adequada.


Que outra estratégia a zona do euro deveria ter seguido para sair da crise?


Acredito que seja necessário tornar comum as dívidas públicas e os juros da dívida pública. França e Alemanha forma extremamente egoístas. Demonstraram ser egoisticamente míopes em relação à Espanha e Itália ao renunciar e compartilhar seus juros. Uma moeda única com 18 dívidas públicas e 18 tipos de juros associados a essa dívida não funciona. Os atores financeiros não têm confiança neste sistema. Poderemos sair desta crise somente se criarmos um fundo comum de dívida pública com apenas um tipo de juro. O Banco Central Europeu poderá, então, estabilizar esse tipo de juros com menor dificuldade do que atualmente com 18 diferentes.

Agora, se quisermos gerir a dívida de maneira comum, precisamos também de um Parlamento da zona do euro que tome decisões a este respeito, entre outras coisas, sobre o nível de déficit comum. Isto é o que faltou até agora nas proposições de reorientação da construção europeia que Hollande esboçou na França, e do que também se falou na Espanha e na Itália. Finalmente, isso não se traduziu em uma proposta concreta de união política e, ao mesmo tempo, orçamentária. Ambas são coisas necessárias.


Você fala em reformar o desenho institucional da zona do euro. Que diferenças haveria entre o atual Parlamento Europeu e esse Parlamento orçamentário a que você se refere na última parte de seu livro?

Atualmente, temos um Parlamento Europeu em que estão representados 28 países e, por outro lado, o Conselho Europeu de Chefes de Estado ou de Governo e o Conselho de Assuntos Econômicos e Financeiros (integrados pelos ministros de Economia e Finanças). São vários os problemas desta arquitetura democrática. O primeiro é que nem todos os 28 países representados no Parlamento Europeu querem avançar rumo a uma maior integração política, fiscal e orçamentária. O segundo, que o Parlamento Europeu não representa absolutamente as instituições dos Estado-nação e, concretamente, os parlamentos nacionais.

Por isso, acredito que faz falta, paralelamente ao atual Parlamento Europeu, uma câmara parlamentar da zona do euro ou, em todo caso, uma câmara formada pelos países da zona do euro que queiram avançar em direção a uma união política, orçamentária e fiscal, e que teria que se construir a partir dos diferentes parlamentos nacionais. Cada país estaria representado proporcionalmente à sua população, nem mais, nem menos. O mesmo para Alemanha e França e os demais. A atribuição desta nova Câmara consistiria em votar questões como um imposto comum sobre sociedade ou o nível de déficit comunitário.


Não são poucos os que pensam que, em vez de mais integração, o razoável seria retomar as moedas nacionais.

Não, para mim não é a boa solução
. Agora, sem propostas alternativas rápidas, acredito que o retorno às moedas nacionais será um cenário cada vez mais difícil de descartar. Concretamente, a única resposta dada na França aos que querem sair do euro consiste em dizer que é impossível, que está proibido, que agora que entramos não se pode retroceder... Esta resposta é extraordinariamente fraca e não vai durar muito tempo mais.

A saída da crise está em avançar na união dos países da zona do euro. De certa forma, a pior das situações é a atual, porque perdemos a possibilidade de desvalorizar a moeda, perdemos a soberania monetária nacional, em troca teríamos que ganhar novas formas de soberania fiscal e orçamentária, maior capacidade para arrecadar imposta de maneira mais justa, mais capacidade de resistência para proteger frente ao risco de especulação sobre os tipos de juros da dívida pública. Até agora, França e Alemanha ganharam neste jogo, mas a única alternativa para a saída do euro é uma união da dívida, uma união fiscal. Se não nos apressarmos, acredito que as forças políticas a favor da saída do euro vão ganhar a partida.


O que se pode esperar da França na construção desta nova arquitetura institucional Europeia, exatamente agora em que a extrema direita lidera as pesquisas? A Europa deve se preocupar?


É preciso se preocupar, absolutamente. Não acredito que a Frente Nacional chegará ao poder no Eliseu ou à presidência da República, mas pode conseguir a presidência de várias regiões. No próximo ano, há eleições regionais, e dado o modo de distribuição das cadeiras, é perfeitamente possível que duas ou três regionais, ou até mais, caiam do lado da Frente Nacional.

Em um sistema eleitoral como o das eleições presidenciais, estamos acostumados que a Frente Nacional perca, inclusive se for o partido mais votado do primeiro turno. Entretanto, nas regionais, o partido mais votado obtém uma parte equivalente a um quarto das cadeiras (o resto se divide de maneira proporcional). Se a Frente Nacional conseguir 30% ou 35% dos votos em uma região, a direita 25% e a esquerda 20%, por exemplo, a parte do partido mais votado faz com que a Frente Nacional aspire ter maioria absoluta nessa região.

Será um choque enorme na Europa. Até agora, a Frente Nacional ganhou somente em algumas cidades pequenas, mas se regiões inteiras passarem a ser governadas pela extrema direita, a história será outra. Não vai ser uma piada. Vão criar tensões em algumas regiões do país e o resultado pode ser extremamente violento.


Até esse ponto?

Estamos de fato à beira do abismo de uma crise política, econômica e financeira. A crise é responsabilidade de todos os países, mas não entendo como a Alemanha continua pensando que tem interesse em manter esta visão tão rígida da austeridade... Afinal de contas, nem sequer lá o crescimento é elevado. Que consta que a responsabilidade também é da França, por não fazermos verdadeiras propostas progressivas e de refundação democrática da Europa. E continuamos esperando propostas da Espanha e da Itália. Em todo caso, acredito que a situação seja grave e que as eleições regionais na França no próximo ano serão um choque.

 
Muitos eleitores se incomodam porque interpretam seu livro como a evidência de um futuro com menor crescimento e pior distribuição da riqueza. Há argumentos para o otimismo?

Claro que sim. Essa é minha maneira de ser. Sinto muito se alguns chegam a conclusões pessimistas após a leitura do livro! Eu acredito no progresso social, econômico e democrático e no crescimento. Mas é preciso se acostumar a viver com crescimento menor. Insisto em que um crescimento mais fraco, se mantido no tempo, é compatível com o progresso. Há trinta anos, não dispúnhamos das atuais tecnologias da informação, por exemplo. Se nos organizarmos bem, nos dotarmos das instituições adequadas para que todo mundo possa se beneficiar, essas tecnologias serão uma enorme fonte de riquezas.

Acredito no progresso técnico e na mundialização, e o livro não é pessimista em relação ao futuro. Simplesmente, para que estas coisas beneficiem a todos, fazem falta instituições democráticas, sociais, educativas, fiscais e financeiras que funcionam corretamente. O problema é que, depois da queda do Muro de Berlim, nós imaginamos, por um momento, que era suficiente se basear nas forças naturais do mercado para que o processo de globalização e de competitividade beneficiasse a todos. Acredito que o erro esteja aí. É preciso repensar os limites do mercado, do capitalismo, e repensar também as instituições democráticas.

Tradução: Daniella Cambaúva





http://www.cartacapital.com.br/revista/825/desiguais-ate-na-crise-6331.html



​Carta Capital, ​14/11/2014



O abismo entre ricos e pobres cresce



Por Claudio Bernabucci
, de Roma
 
 


Em um mundo angustiado pela crise econômica, aprendemos que de março de 2009 a março de 2014, exatamente o período considerado mais crítico, depois da bancarrota do Lehman Brothers, o número de bilionários do planeta dobrou: eram 793 no começo do furacão e agora somam 1.645. Os 85 mais ricos entre eles, no mesmo período, incrementaram seus capitais em 668 milhões de dólares a cada dia e sua renda equivale àquela de metade da população mundial, 3,5 bilhões de outros seres humanos. Os dados constam, entre outras “pérolas”, do recente estudo sobre a desigualdade no mundo, publicado pela Oxfam, rede internacional de 19 ONGs que combatem a pobreza. Na sequência da divulgação do relatório, originalmente chamado Even It Up: Time to end extreme inequality, foi lançada a campanha mundial de sensibilização “Equilibre o jogo”.

Crise é um termo utilizado no mundo inteiro para descrever situações diferentes, mas com um denominador comum, a desaceleração do crescimento das economias, que em média superava os 4% anuais na década passada e hoje sofre para chegar perto dos 3,5%. Para resolver os problemas provocados por esse recuo e retomar o ritmo anterior, os defensores do atual sistema econômico-financeiro indicam um caminho único, a ampliação do espaço da iniciativa privada em detrimento do setor público, com corolário de cortes nos gastos sociais e intensificação da produtividade no trabalho. Em outras palavras, salários mais baixos para criar produtos mais baratos. Essa receita, baseada numa visão brutalmente quantitativa do bem-estar da humanidade e sem nenhuma atenção à equilibrada convivência social, é rotundamente recusada pela Oxfam. Com riqueza de informações e análises, a desigualdade é descrita sob diversos aspectos, e o estudo chega à conclusão de que essa praga contemporânea não só é contrária a uma ética humanista, mas também a causa fundamental da crise econômica em curso.


O primeiro mito que o relatório se encarrega de derrubar é aquele que considera natural a desigualdade entre os seres humanos. Melhor se concentrar na redução da pobreza, afirmaram os liberais a partir da Revolução Industrial, pois a compaixão é a única maneira de mitigar a lei natural que inevitavelmente produz as diferenças. Mas a desigualdade excessiva tem comprometido o combate à pobreza, apesar dos bons resultados conseguidos nesse campo até o início dos anos 80 do século passado. O abismo entre ricos e pobres nas últimas três décadas, demonstra a pesquisa, tem clara correlação com a baixa mobilidade social. Em outros termos, nos países em que o fenômeno é mais acentuado, quem nasce rico fica rico, quem nasce pobre não tem outra alternativa além de permanecer pobre. A esperança de uma vida melhor, na evolução entre pais e filhos, é banida do horizonte de bilhões de seres humanos.

Com raras exceções, a desigualdade tem aumentado em todos os países do mundo. Caso particularmente emblemático, a Oxfam calcula que até na África do Sul a desigualdade é hoje maior do que no período do Apartheid. Com base em dados de 2013, 7 de cada 10 habitantes do mundo vivem em países em que a desigualdade econômica é maior do que há 30 anos.

O enriquecimento desmedido de um número restrito de indivíduos, a depender dos países, encolheu ou limitou o crescimento da classe média, comprometendo a sua capacidade de gasto e, em última análise, o motor do crescimento mundial. Desde 1990, a participação do trabalho na composição do PIB mundial é constantemente decrescente. O ataque ao valor e à dignidade do trabalho é particularmente acentuado nos países mais pobres, mas também ocorre nas nações ricas. Por consequência, o PIB mundial é composto por uma porcentagem crescente do capital, que se autoalimenta cada vez mais da especulação financeira.

As 150 páginas da pesquisa, com amplíssima bibliografia, demonstram que a desigualdade extrema também está associada à violência. A América Latina, a região mais desigual do mundo do ponto de vista econômico, reúne 41 das 50 cidades mais violentas do planeta e registrou 1 milhão de assassinatos entre 2000 e 2010. Países desiguais são lugares perigosos para viver, e a insegurança afeta tanto ricos quanto pobres.


A desigualdade econômica produz ainda diferenças em termos de oportunidades de vida. Quem está na parte baixa da escada social tem grande desvantagem em termos de escolaridade, saúde e expectativa de vida. A Oxfam demonstra com dados e gráficos que a “pobreza interage com desigualdades econômicas e de outros tipos para criar ‘armadilhas de desvantagens’ que empurram os mais pobres e marginalizados para o fundo – e os mantêm lá”. E a globalização da economia aumentou consideravelmente o número de super-ricos nos países em desenvolvimento e emergentes. Na África Subsaariana, 16 bilionários convivem com 358 milhões em pobreza extrema.

No atual cenário, o Brasil, que nos últimos 12 anos tirou da pobreza dezenas de milhões de indivíduos, é citado várias vezes no relatório como positiva exceção por ter agido na contracorrente mundial, mas também como exemplo de uma desigualdade ainda gravíssima que afeta as perspectivas de resgate econômico e de pacificação nacional. É extremamente fácil evidenciar a imediata correspondência entre o aumento de 50% no valor do salário mínimo entre 1995 e 2011 e a redução da pobreza e desigualdade no País.

Como exemplo oposto, dados de 40 países europeus e latino-americanos revelam que a capacidade redistributiva de um bom sistema fiscal, combinada com gastos sociais bem-focados, pode reduzir as disparidades de ingressos produzidas pelo mercado. A Finlândia e a Áustria conseguem reduzir pela metade essa desigualdade por meio de impostos, enquanto o sistema fiscal e o gasto social brasileiro a limitam de maneira insignificante.

O relatório da Oxfam não se restringe à análise da situação de fato, mas identifica as causas que provocaram a absurda desigualdade atual: o fundamentalismo de mercado e a captura do poder pelas elites econômicas. A ideologia neoliberal, que continua dominante, apesar das contradições que suscitou, segue a impulsionar as diferenças, que não poderão ser reduzidas enquanto os países forem forçados a engolir remédios como a desregulamentação financeira, a austeridade fiscal, as privatizações, a redução de programas sociais ou o corte de impostos para os ricos. Por outro lado, como em um círculo vicioso, o dinheiro compra a influência e o poder político, tanto nos países ricos quanto nos pobres.

Para “reequilibrar o jogo”, a Oxfam identifica uma série de medidas específicas que, acrescentamos, não poderão ser alcançadas com base em alguma milagrosa fulguração de bondade da parte de quem hoje dirige o jogo, mas apenas à medida que as relações de força e de poder entre as minorias ricas e as maiorias pobres se inverterem. O mérito do relatório é demonstrar implicitamente que a batalha deve ser combatida em cada lugar de trabalho e em cada país, mas, para ser vencida, deve incluir um pensamento e uma ação global de todas as vítimas da desigualdade e de todos os seus aliados de boa vontade. Se a economia e a riqueza do mundo são globalizadas, a resposta para redistribuir deve ter a mesma escala. O nacionalismo é uma ferramenta arcaica. O que hoje precisamos é de um novo internacionalismo.

*Reportagem publicada originalmente na edição 825 de CartaCapital, com o título "Desiguais até na crise"

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