Opera Mundi, 27/11/2014
Vulvas de tecido quebram tabus sobre sexualidade feminina no Peru
Por Lucía Martín | Jot Down | Lima
Vulvas de tecido quebram tabus sobre sexualidade feminina no Peru
Por Lucía Martín | Jot Down | Lima
Vulvalucion.org
A sagrada vulva andina de tecido produzida em Machay, no Peru
Escuta-se o som de uma máquina de costura em uma casa em Manchay, nos arredores de Lima, no Peru. O único momento de glória dos habitantes dessas colinas onde se apinham construções irregulares aconteceu quando lá foi rodado o filme “A teta assustada”, que recebeu o Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2009.
Mas voltemos às máquinas de costura. Dionisio Ramos conta com duas ferramentas básicas para o seu trabalho: a máquina de costura e um celular, com o qual toma nota dos pedidos que chegam, embora seja necessário dizer que as verdadeiras ferramentas deste homem, que no passado foi alfaiate, são suas mãos. Dionisio é o chefe da família de um clã formado por outros dois membros, sua mulher e sua filha. As peças às quais ele se dedica a costurar custaram-lhe muitas chacotas. Ele mesmo recusou-se a fazê-las no início. Dizia: “Eu não quero mais fazer esta porcaria”. E porcaria era a palavra com que ele designava as vulvas que sua família se dedica a costurar.
Não pense que os Ramos têm em Manchay um laboratório clandestino de cirurgia genital. Seu trabalho é costurar, com arte e cores, as chamadas Vulvas Dolls, um tipo de marionete que reproduz o órgão genital feminino. Algumas de cor roxa, outras com tecidos andinos, cor de rosa para as crianças que acabam de menstruar pela primeira vez, de seda e veludo, com uma pequena rosa representando a uretra e um delicado botão fazendo o papel do clitóris.
A história das vulvas de tecido tem início no fim dos anos 80, com a educadora sexual norte-americana Dorrie Lane. Ela produziu a primeira e começou a utilizá-la com seus filhos, um garoto e uma garota. Até então ela tinha utilizado livros e documentários, mas a troca de informações com os filhos foi melhor e as conversas foram mais espontâneas quando usaram a vulva de tecido. Depois, ela começou a usá-la em seus cursos, e a aceitação foi tamanha que seus colegas começaram a pedir-lhe outras.
Lane as confeccionava manualmente, até que as quantidades pedidas já não podiam mais sair somente de suas mãos. Foi quando ela entrou em contato com a população de Manchay, no Peru, em 2005. As mulheres feministas do povoado colocaram em ação as oficinas de produção das vulvas. “Recrutamos as interessadas e criamos as oficinas, financiadas inicialmente com microcréditos de dez mil soles [cerca de oito mil reais]”, comenta Elizabeth Cabrel, uma das feministas que hoje continua levando adiante o projeto através do www.vulvalucion.org.
Vulvalucion.org
Uma das joias com o formato de vulva também produzidas pela iniciativa Vulvalución
No início, elas confeccionavam apenas vulvas. A partir de 2007, diversificaram a produção para outras peças, como joias de prata que reproduzem a vulva em anéis, brincos e colares. Dessa forma, a visibilidade é ainda maior. “Os artesãos recebem uma quantia justa pelo trabalho e com isso mantêm suas famílias”, comenta Cabrel. Essas famílias conseguiram se manter graças às vulvas, mas, mesmo assim, muitas mulheres do povoado ainda resistem a este trabalho: o sexo é tabu em muitos países da América Latina, e a sexualidade feminina, mais ainda.
“Os Ramos ensinam seus vizinhos a costurar, ensinam-lhes a fazer o recheio da vulva e a costura e podem empregar cerca de cinco mulheres”, diz Cabrel. As vulvas peruanas vão para a Europa, a Austrália e o Japão, entre outros destinos. Psicólogas e sexólogas, que as utilizam em suas consultas, são as principais compradoras.
Dionisio recorta os tecidos, faz os moldes, o overlock e a costura inicial para que o delicado tecido – também produzido no Peru – não desfie. O recheio é feito com napa de silicone, uma fibra muito fina. Leva-se cerca de uma hora e meia para cada peça ficar pronta.
O projeto encontrou espaço em outras latitudes, como na Austrália, onde Laura Doe Harris fundou o projeto Yoni, através do qual também comercializa as vulvas que produz. “Há muitas mulheres vulvacionando o mundo, nós aqui no Peru somos apenas um grãozinho de areia”, explica Cabrel.
Dorrie Lane
Vulva de tecido produzida pela norte-americana Dorrie Lane, à venda no site Vulva Puppets
O sexo continua sendo visto como algo sujo, ainda mais se é uma mulher que o reivindica. “Quando começamos, das quarenta mulheres que se interessaram pelas oficinas, poucas acabaram de fato costurando a vulva. Muitas a veem como algo vulgar. As pessoas têm vergonha da vulva, apesar de termos nascido dela”, acrescenta. “Existe muito conservadorismo religioso, e no Peru o trabalho de educação sexual não é feito pelo governo, essa informação não chega às escolas e onde a igreja intervém a educação sexual não é nem permitida”, explica Cabrel.
Ela afirma que, na América Central, é ainda pior. “Mas este tema de empoderamento através da vulva, por exemplo, está se desenvolvendo muito bem na Argentina e no Brasil”.
Desde 2009, Liz e outras companheiras promovem oficinas com mulheres sobre saúde sexual, o Musas Perú (www.musasperu.org), por toda a América Latina. Ela também publicou o livro “Eu amo minha vulva”, no qual mulheres de diferentes faixas etárias retratam suas vulvas e contam como viveram a sexualidade ao longo de suas vidas. Alguns textos são de deixar os cabelos em pé: “Passei por muitas intervenções cirúrgicas. Desde uma dessas operações, não pude mais ter relações sexuais com penetração com meu marido. Quis solucionar este problema, mas o médico que me atendeu fez piada quando lhe contei o motivo. ‘Por acaso você ainda tem relações sexuais com o seu marido?’”
Como reconhece Liz, o empoderamento das mulheres leva tempo, não acontece da noite para o dia. Mas não há dúvidas de que o movimento iniciado pela sagrada vulva andina não pode ser detido.
Tradução: Mari-Jô Zilvetti
Matéria original publicada no site da revista espanhola Jot Down, que apresenta reportagens e artigos sobre cultura e comportamento.
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