quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Haiti: Forças de paz da ONU deixam mães e bebês para trás



Portal Forum, 25/11/2014


Haiti: Forças de paz da ONU deixam mães e bebês para trás



Por Amy Bracken* | Tradução: Agência Pública





Quando os militares estadunidenses deixaram o Vietnã em 1973, deixaram algo de um legado vivo. Recrutas norte-americanos haviam engravidado dezenas de milhares de mulheres vietnamitas. O governo dos Estados Unidos eventualmente criou um visto especial para aquelas crianças, muitas delas pobres, e fundou um centro residencial para elas. Mas esta situação não se limita à ocupação americana do Vietnã, ou sequer a situações de guerra. Ela também é um efeito colateral, frequentemente esquecido, das missões de paz da ONU.

As Nações Unidas realizaram 69 missões de paz desde 1948, e há atualmente cerca de 100 mil membros uniformizados da ONU em 17 operações pelo mundo. É sabido que algumas deixam para trás crianças ou mulheres grávidas, mas não há qualquer sistema para reivindicação de paternidade através da organização.

Na cidade litorânea de Port Salut, Sasha Francesca Barrios, 5, tem a atenção de sua mãe e de alguns visitantes. Ela fala sobre a escola e canta a popular canção infantil haitiana Ti Zwazo, ou “Passarinho”. E quando sua mãe pede que identifique o jovem de pele clara em uma foto, ela logo responde, “Papa m”, ou “meu papai”.

Barrios vive em uma pequena casa com mãe, avó e tia. A mãe, Roselaine Duperval, conta que o pai de Sasha era um membro da Marinha na missão de paz da ONU no Haiti – comandada pelo Brasil – conhecida por seu acrônimo em francês, Minustah. Mas Barrios nunca o conheceu.

“Eles vieram aqui, e tinha um que era bom comigo,” Duperval conta. “Ele disse que me amava, e nós estávamos juntos. Eu nunca imaginei que, se eu ficasse com ele e tivéssemos uma filha, ele me abandonaria e não ajudaria a criança.”

Mas ela engravidou, e diz que o marinheiro, que era do Uruguai, deu a ela $200 no começo da gravidez, mas deixou o Haiti antes de Sasha nascer. Ela nunca ouviu falar nele novamente. Agora, Roselaine sobrevive com serviços de manicure e pedicure na casa das pessoas. “Eles vêm a nosso país para nos ajudar”, ela diz, “e não nos ajudam; têm filhos conosco e vão embora. Eu preciso de ajuda para minha filha, para pagar a escola. É responsabilidade da Minustah. Estamos em um país sem emprego. Precisamos de ajuda da ONU. Eles sabem que as tropas da Minustah deixam bebês aqui, crianças sem pais.

Sete mães, sete filhos abandonados


Ela diz ‘nós’ porque conhece outras mulheres na mesma situação. Em fevereiro, a ONU levou até a capital sete mães, incluindo Roselaine, com suas crianças para fazer testes de DNA. Agora as sete mulheres estão esperando pelos resultados. Um militar uruguaio diz que os supostos pais foram solicitados a enviar amostras de DNA. Se a paternidade for confirmada, fica a cargo da Justiça uruguaia decidir o que fazer.

É claro que comprovar paternidade e conseguir apoio à criança também é um desafio quando o pai é um haitiano local. Mas a ativista comunitária Miriame Duclair diz que é muito mas difícil quando o pai é um estrangeiro da missão de paz. “A diferença,” Duclair diz, “é que se o pai é haitiano, geralmente a família vai ajudar a mãe… Mas quando um estrangeiro deixa uma criança, não há ninguém para ajudar. Quando a ONU fala em vir ao Haiti para estabilizá-lo, não é verdade. Eles estão desestabilizando.”
A ONU possui uma política para facilitar alegações de paternidade e apoio à criança nesses tipos de casos, mas cabe ao país de origem dos soldados dar continuidade ao processo.

Relação de exploração


O coronel do Exército uruguaio Girardo Frigossi diz que, não importam quais sejam as circunstâncias, relações sexuais entre soldados da ONU e cidadãos locais nunca são aceitáveis. “Não há possibilidade de relação, consensual ou não,” ele diz, “porque o poder está com o soldado da ONU, porque eles têm comida, eles têm água, eles podem prover segurança, eles têm dinheiro.”

Sylvain Roy, da Unidade de Conduta e Disciplina (CDU) da ONU, é ainda mais claro. “Ainda que a mãe concorde,” ele diz, “o relacionamento é explorador.

Rose Mina Joseph tinha 16 anos quando ficou grávida, ela conta, de um soldado uruguaio de 35 anos. Ela não descreve sua relação como exploradora, mas deixa claro que a comida oferecida por ele foi parte da situação. “Os missionários davam proteção, e ajudavam as crianças aqui,” ela diz. “Eles davam a elas um pouco de comida, e tudo mais, e a mim também.” Ela mostra uma foto sua, no aniversário de 17 anos, com o namorado soldado atrás de um bolo e de uma mesa coberta por comida. Mas, após ele deixar o Haiti, ele deixou de atender o celular e mandar dinheiro, conta ela.

Um oficial no Uruguai diz que o suposto pai concordou em fazer o teste de DNA. Se for comprovada a paternidade, o caso será decidido em um tribunal nacional. “Eu quero que a Minustah me tire da pobreza,” Joseph diz, “para colocar eu e minha criança em um lugar melhor.”

Nenhum pedido reconhecido


É um desejo comum, mas Joseph está em um território quase inexplorado, ainda que o Uruguai esteja fazendo algo sobre isso. A ONU começou a compilar estatísticas de reivindicação de paternidade apenas no ano passado. E elas mostram apenas 19 reivindicações substanciais contra membros de missões de paz pelo mundo entre 2010 e 2012. Um relatório independente sugere que havia muitos outros requerimentos antes da ONU começar a registrá-los. E muitas mães não estão pedindo paternidade porque não há um sistema conhecido para tanto. As mulheres de Port Salut só ganharam a atenção da ONU graças a um jornalista americano que escreveu sobre elas em 2011.

Você não pode esperar que uma mulher vivendo no meio do Congo, por exemplo, consiga entrar com um pedido de reconhecimento de paternidade e apoio à criança em uma corte de outro continente,” diz Roy, da CDU. “Mas essa é uma situação com a qual precisamos lidar.”

E para aqueles que conseguem entrar com os pedidos, as coisas não parecem promissoras. Um relatório da ONU do começo deste ano diz que, “Segundo o conhecimento da Organização, ainda não há um pedido de paternidade reconhecido através de ações judiciais em qualquer país com auxílio de tropas ou da polícia.”

* Amy Bracken é uma jornalista freelancer baseada em Boston que sobre questões relacionadas com o Haiti.

Essa reportagem foi produzida pelo site 100Reporters, em parceria com o programa The World da Public Radio International. Clique aqui para ler o original, em inglês. 
  
Foto de Capa: Amy Bracken




http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/11/o-que-acontece-quando-um-menino-e-estuprado-pela-minustah-haiti/



Portal Forum, 26/11/2014


O que acontece quando um menino é estuprado pela Minustah no Haiti?



Por Amy Bracken*, na Agência Pública


 
A Place d’Armes, praça localizada no centro da cidade de Goinaves, no norte do Haiti, é movimentada por comerciantes e grupos de amigos reunidos para descansar e socializar. Mas ali perto há uma área é menos frequentada – um trecho de tijolos cheios de arame farpado e pilhas de lixo.

“Foi ali que aconteceu, por lá”, diz meu companheiro.

O local abrigava um posto do contingente das tropas de paz paquistanesas – uma unidade policial das Nações Unidas que faz parte da missão de paz comandada pelo Brasil. Eles deixaram o lugar desde a chegada das tropas argentinas, que se instalaram em outra parte da cidade.
Segundo o relato de moradores da região foi ali que, no início de 2012, eles
testemunharam o estupro de um garoto de 14 anos, portador de deficiência mental. O adolescente foi violentado por policiais das Nações Unidas em um carro oficial. Os fatos foram esquecidos por algumas pessoas na Place d’Armes. Para outros, a história ainda está viva.
O jovem Adler Delismat conserta telefones celulares. Segundo ele a vítima – vamos chamá-lo de Jean – era “um dos garotos que andam por aqui”. “Foi abandonado pela família. Os soldados sempre davam a ele algo para comer. Ele lustrava sapatos dos oficiais e eles lhe davam um pouco de dinheiro. Até que em uma manhã, nós soubemos que Jean havia sido estuprado pelos soldados. É inaceitável. Eu sei que a lei haitiana não permite isso.”

Tecnicamente, a lei haitiana não se aplica a missões de paz estrangeiras, de acordo com a Convenção sobre Privilégios e Imunidades da ONU.

A disciplina é uma responsabilidade do país pacificador, a menos a imunidade seja suspendida pelo Secretário Geral, o que não acontece com militares e quase nunca com policiais.
Há pouco mais de uma década, as Nações Unidas intensificaram as medidas de formação e investigação para tentar resolver problemas de exploração e abuso nas suas forças de paz. Assim foi criada a Unidade de Conduta e Disciplina (CDU). Sylvain Roy, da CDU, insiste que a soberania do Estado-Membro não significa que a ONU é impotente quando se trata de disciplina. “Existe a necessidade de uma parceria”, diz ele, “que seja reconhecida pelo Estado-Membro e que nos permita abordar e tentar encontrar uma solução de forma mais abrangente.”
Em outras palavras, mesmo que a disciplina seja responsabilidade do país pacificador, a ONU pode tentar influenciar nessa decisão.


Foram anos de abusos sexuais

 

No caso de Jean, a ONU trouxe especialistas de Brindisi, na Itália, e de Nova Iorque para trabalhar na investigação. De acordo com oficiais das Nações Unidas que pediram para não serem identificados, o que os investigadores encontraram é muito pior do que se pensava: o abuso ocorreu por anos. Jean era passado de um contingente para o próximo.

Além disso, segundo os oficiais, foi descoberto que, quando soube que investigadores da ONU estavam a caminho, o comandante do contingente contratou um homem haitiano para levar Jean para outra cidade para escondê-lo dos investigadores.

Após a investigação, o Senado haitiano aprovou uma resolução pedindo que a ONU suspendesse a imunidade do país-membro. Os ministros da Justiça e das Relações Exteriores fizeram o mesmo pedido formalmente. “Estávamos abertos a todas as negociações para resolver o problema amigavelmente”, diz Arsene Dieujuste, o advogado da família de Jean.

Ele diz ter pressionado funcionários do governo para que eles pressionassem os agentes da ONU. Os agentes da ONU negociaram com autoridades paquistanesas, pedindo que os soldados fossem submetidos a um julgamento no Haiti com a condição de que o condenado ficasse em acomodações alternativas, e não na prisão local.

Um oficial da ONU que pediu para não ser identificado relatou estar presente em uma reunião com membros do alto escalão da organização na qual os participantes concordaram que algo dramático deveria ser feito. Suspensão de imunidade, condenação efetiva do comandante… alguma coisa. O oficial lembrou que havia um senso de determinação – alguns soldados batiam os punhos na mesa na reunião. Mas, segundo ele, a reunião foi seguida por um jantar entre o representante paquistanês para as Nações Unidas e o chefe das missões de paz da ONU. Depois disso, os esforços para que medidas exemplares fossem tomadas foram abandonadas. Seguiu-se a mesma rotina de sempre.

Afinal a corte marcial foi realizada no Haiti, com o acusado julgado e sentenciado por seus pares. O principal acusado confessou, foi expulso da corporação e condenado a um ano de prisão no Paquistão. Outros dois policiais também foram expulsos.
Nenhuma das pessoas contatadas pela reportagem, tanto na ONU quanto representantes do Paquistão, aceitaram o pedido de entrevista.


Daria para responsabilizar comandantes, diz CDU

 

Roy, da CDU, só lamenta as ações da ONU para casos como este quando um comandante está envolvido. “Eu não vejo porque não se poderia solicitar responsabilização contra os comandantes das tropas” diz ele, “se temos provas… havia ordens e medidas tomadas por comandantes para interferir em uma investigação”.

Eu pergunto, “você pode ir além de solicitar?”

“Aí teríamos que entrar no relacionamento entre a ONU e o Estado-membro”, diz ele. “Mas a responsabilização pode não ser aplicada sempre, apesar da nossa crença de que poderia ser.”
Se a ONU não está satisfeita com um Estado-membro, ela pode expulsá-lo de uma missão. No entanto, segundo um oficial da organização, as missões de paz paquistanesas fazem um ótimo trabalho. Eles também são os maiores contribuidores para missões de paz, com mais de 8 mil policiais, tropas e peritos militares implantados. Embora a ONU pague os governos que contribuem em missões de paz, um funcionário diz que há uma resistência em dizer algo que ofenda aqueles que colocam seu pessoal em risco.

Para o advogado Dieujuste, não faz sentido que a ONU não seja responsabilizada. “Nós não conhecemos o Paquistão”, diz Dieujuste. “Quando vemos um carro com o símbolo da ONU, nós não sabemos se é francês ou o que é. A ONU é a instituição. Portanto, cabe à ONU acertar as contas.”

Dieujuste está pedindo uma indenização de 5 milhões de dólares para a família de Jean. Ele considera a quantia uma maneira de iniciar as negociações e diz que o dinheiro deve corresponder à hediondez do crime. Mas cerca de 20% seria o pagamento do seu trabalho como advogado.

Sem indenização

 

Néumie Joseph trabalha para uma agência de proteção cidadã haitiana em Gonaives e está familiarizada com o caso de Jean. Ela diz que se os autores do crime fossem haitianos comuns, provavelmente Jean não teria uma representação adequada e o caso teria fracassado. Para ela, o público quer manter a ONU em um padrão mais elevado. “As ações de um ou dois indivíduos prejudicam a imagem da instituição”, afirma. “Os indivíduos podem ser presos, mas no caso de Jean, as pessoas precisam ver que a justiça foi feita pela instituição. A vítima precisa ser indenizada.”

De acordo com Roy, a ONU não dá indenizações em dinheiro, mas tem uma política de conectar as vítimas aos serviços da organização.

Agora Jean está sob custódia do governo haitiano, morando em um abrigo de uma organização sem fins lucrativos fora e Porto Príncipe e sem relações com a ONU. Não está claro se o Paquistão fez alguma contribuição para a família de Jean ou para o abrigo.

Com Diejuste e Junie Adain, a meia-irmã mais velha de Jean, dirigimos quatro horas para encontrá-lo. É um local pacífico, com pequenos prédios dispersos, decorado com esculturas de animais e árvores floridas. Esperamos em um quarto comum arejado e alegre, então Jean chega, sorrindo desconfiado.

Adain se aproxima do irmão cautelosamente, comentando sobre os quilos que ele ganhou. É uma coisa boa, e ele parece dizer em poucas palavras que está feliz ali. Mas Adain não está sorrindo. “Os soldados precisam ter vergonha do que fizeram”, ela diz. “Eles se aproveitaram da deficiência mental dele. Sabiam que não falaria.

E fizeram isso várias vezes. Mesmo que eles nunca paguem uma indenização, vão pagar no dia do juízo final.”
Adain diz que a família merece uma indenização por ter sido tão envergonhada. Insiste que gastaria o dinheiro para garantir que o irmão tenha uma vida boa.

Por enquanto, esse abrigo financiado por fundações parece estar finalmente proporcionando a Jean a proteção e a segurança alimentar que lhe faltaram quando criança, quando polia os sapatos dos soldados das missões de paz em troca de comida, dinheiro e amizade.


* Amy Bracken é uma jornalista freelancer baseada em Boston que sobre questões relacionadas com o Haiti.

Essa reportagem foi produzida pelo site 100Reporters, em parceria com o programa The World da Public Radio International. Clique aqui para ler o original, em inglês.   

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