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Por Sylvia Debossan Moretzsohn
O jornalismo da mal disfarçada inocência
Por Sylvia Debossan Moretzsohn
O que poderia ter sido uma excelente oportunidade para mergulhar nas raízes de um dos nossos mais antigos e sensíveis dramas sociais acabou resultando na cantilena de sempre contra a “impunidade” e a favor da redução da maioridade penal. Com uma agravante jornalisticamente inaceitável: a inversão na ênfase do que seria flagrantemente mais relevante, para priorizar o que é desmentido pelas próprias estatísticas citadas na reportagem.
O Globo de domingo (12/10) dá em chamada de capa a notícia sobre a duplicação, em três anos (2010 a 2013), do número de jovens infratores detidos no estado do Rio de Janeiro. Este seria um dado relevante, ainda que a projeção, para 2014, seja de relativa queda. No entanto, a reportagem de página inteira destaca outro aspecto, a partir do título: “A idade da reincidência”.
Ora, o quadro montado a partir das estatísticas produzidas pelo Instituto de Segurança Pública mostra que o índice de reincidência é relativamente baixo – entre pouco mais de 12% e pouco menos que 20%, quando atingiu o nível mais alto –, embora tenha oscilado para cima durante o período. A propósito, o gráfico traz dois problemas: primeiro, como se pode verificar, a disparidade na curva de ascensão do índice de reincidência, pois apresenta uma linha com leves alterações quando a diferença entre os dados de 2010 e 2013 é de quase o triplo. Basta comparar com as linhas superiores, que indicam a duplicação dos índices.
Além disso, os próprios números da reincidência: seria preciso explicar por que não correspondem à diferença entre o do total de apreensões e o de crianças e adolescentes detidos – este, inferior, porque alguns foram apreendidos mais de uma vez.
Manipulação de números
O objetivo evidente do jornal é investir na necessidade de encarceramento como solução para o cometimento de crimes – no caso de menores de idade, tratados, por força de lei, como “atos infracionais”. “Neste ano, só 11% foram para centros de correção”, diz a chamada. A reportagem, de página inteira, complementa: “O restante cumpriu, em liberdade, algum tipo de medida socioeducativa”.
Ainda assim, fala-se em impunidade.
Seria excessivo, e certamente enfadonho, discorrer sobre a manipulação dos números. Mas salta aos olhos a informação de que “quase 90% desses infratores voltaram para as ruas”, como a dizer que o perigo está à solta, embora no mesmo parágrafo apareça a referência de que menos de 15% são reincidentes.
Se o jornal desejasse discutir o índice de reincidência, poderia questionar as próprias estatísticas: por exemplo, se a cifra negra em relação a esses casos é proporcional à existente – sempre por estimativa – no caso das apreensões de menores. Em suma, se os números são razoavelmente confiáveis. Já se quisesse discutir os motivos da reincidência, teria material para uma longa e necessária série de reportagens.
Em campanha
Mas, não. A reportagem começa com a descrição de uma cena rotineira: a perseguição a uma adolescente que acabara de roubar um cordão de uma mulher, no Centro do Rio. Presa – ou melhor, apreendida – e recolhida à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, os policiais verificam que a jovem tinha 14 anos e 25 registros pelo mesmo tipo de delito – ou “ato infracional”. É o que basta para ilustrar a exuberância da reincidência.
Daí segue dando voz a um delegado que deplora as alternativas legais para que esses jovens sejam encaminhados a um centro de correção. Continua com declaração desse mesmo delegado sobre o caráter supostamente anacrônico do Estatuto da Criança e do Adolescente, “um conjunto de artigos criados num tempo em que não existiam celulares”, em que “os delitos praticados eram outros”.
Outros? Caberia ter perguntado quais. Como caberia ter perguntado em quê o tempo dos celulares afetou a prática da delinquência juvenil, a não ser pelo objeto de desejo.
“Não defendo o encarceramento, mas...”
Na sequência, o secretário estadual de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, afirma não defender o encarceramento de crianças e adolescentes, mas... “estamos diante de uma situação que precisa ser discutida pela sociedade”, pois “o menor não sente mais o peso das consequências de seus atos”.
Alguma vez sentiu? Há quanto tempo “a sociedade” vem “discutindo” essa questão? Que argumentos “a sociedade” terá para discutir a sério a proposta de redução da maioridade penal, se a imprensa não lhe apresenta o contraditório, raramente ouve quem possa apresentar argumentos consistentes em contrário e menos ainda investe em reportagens que mostrem o quão profundo é esse problema?
Tomara que chova?
A reportagem ficou entre as cinco mais comentadas do site do jornal no domingo (12). Escusado citar o teor dos comentários. Mas talvez valesse a pena apontar a coincidência dessa reportagem com o início da campanha para o segundo turno da eleição para presidente. Porque talvez ajude a consolidar a ideia de que a saída é a redução da maioridade penal, um dos pontos do programa do candidato preferido – explicite-se ou não esse apoio – das grandes empresas de comunicação.
Também coincidentemente, reportagem publicada na véspera (11/10) no site do Globo exibia exuberantemente a cena lamentavelmente banal de uma tentativa frustrada – repito: frustrada – de assalto: um homem que defendia seu cordão de ouro do ataque de adolescentes negros sem camisa numa rua de Copacabana.
Os infratores, a propósito, foram “apreendidos” em flagrante.
A reportagem só existiu porque uma moradora documentou o ataque – e a “apreensão” –, juntamente com outra cena banal – a tentativa atabalhoada desses jovens de entrarem pela janela nos ônibus que os levarão de volta ao subúrbio. Tudo que é praxe há décadas.
É notícia não porque seja relevante, mas porque tem foto. Sequência de fotos, além do mais feitas por uma leitora. Se fosse um vídeo, seria ainda mais emocionante. Porque assim caminha (este) jornalismo.
A matéria figurou como a mais lida daquele domingo. Começava dizendo que o dia de “calor, sol forte e praias lotadas” era “um cenário (...) propício para ações criminosas”.
Então, tomara que chova.
O Globo de domingo (12/10) dá em chamada de capa a notícia sobre a duplicação, em três anos (2010 a 2013), do número de jovens infratores detidos no estado do Rio de Janeiro. Este seria um dado relevante, ainda que a projeção, para 2014, seja de relativa queda. No entanto, a reportagem de página inteira destaca outro aspecto, a partir do título: “A idade da reincidência”.
Ora, o quadro montado a partir das estatísticas produzidas pelo Instituto de Segurança Pública mostra que o índice de reincidência é relativamente baixo – entre pouco mais de 12% e pouco menos que 20%, quando atingiu o nível mais alto –, embora tenha oscilado para cima durante o período. A propósito, o gráfico traz dois problemas: primeiro, como se pode verificar, a disparidade na curva de ascensão do índice de reincidência, pois apresenta uma linha com leves alterações quando a diferença entre os dados de 2010 e 2013 é de quase o triplo. Basta comparar com as linhas superiores, que indicam a duplicação dos índices.
Manipulação de números
O objetivo evidente do jornal é investir na necessidade de encarceramento como solução para o cometimento de crimes – no caso de menores de idade, tratados, por força de lei, como “atos infracionais”. “Neste ano, só 11% foram para centros de correção”, diz a chamada. A reportagem, de página inteira, complementa: “O restante cumpriu, em liberdade, algum tipo de medida socioeducativa”.
Ainda assim, fala-se em impunidade.
Seria excessivo, e certamente enfadonho, discorrer sobre a manipulação dos números. Mas salta aos olhos a informação de que “quase 90% desses infratores voltaram para as ruas”, como a dizer que o perigo está à solta, embora no mesmo parágrafo apareça a referência de que menos de 15% são reincidentes.
Se o jornal desejasse discutir o índice de reincidência, poderia questionar as próprias estatísticas: por exemplo, se a cifra negra em relação a esses casos é proporcional à existente – sempre por estimativa – no caso das apreensões de menores. Em suma, se os números são razoavelmente confiáveis. Já se quisesse discutir os motivos da reincidência, teria material para uma longa e necessária série de reportagens.
Em campanha
Mas, não. A reportagem começa com a descrição de uma cena rotineira: a perseguição a uma adolescente que acabara de roubar um cordão de uma mulher, no Centro do Rio. Presa – ou melhor, apreendida – e recolhida à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, os policiais verificam que a jovem tinha 14 anos e 25 registros pelo mesmo tipo de delito – ou “ato infracional”. É o que basta para ilustrar a exuberância da reincidência.
Daí segue dando voz a um delegado que deplora as alternativas legais para que esses jovens sejam encaminhados a um centro de correção. Continua com declaração desse mesmo delegado sobre o caráter supostamente anacrônico do Estatuto da Criança e do Adolescente, “um conjunto de artigos criados num tempo em que não existiam celulares”, em que “os delitos praticados eram outros”.
Outros? Caberia ter perguntado quais. Como caberia ter perguntado em quê o tempo dos celulares afetou a prática da delinquência juvenil, a não ser pelo objeto de desejo.
“Não defendo o encarceramento, mas...”
Na sequência, o secretário estadual de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, afirma não defender o encarceramento de crianças e adolescentes, mas... “estamos diante de uma situação que precisa ser discutida pela sociedade”, pois “o menor não sente mais o peso das consequências de seus atos”.
Alguma vez sentiu? Há quanto tempo “a sociedade” vem “discutindo” essa questão? Que argumentos “a sociedade” terá para discutir a sério a proposta de redução da maioridade penal, se a imprensa não lhe apresenta o contraditório, raramente ouve quem possa apresentar argumentos consistentes em contrário e menos ainda investe em reportagens que mostrem o quão profundo é esse problema?
Tomara que chova?
A reportagem ficou entre as cinco mais comentadas do site do jornal no domingo (12). Escusado citar o teor dos comentários. Mas talvez valesse a pena apontar a coincidência dessa reportagem com o início da campanha para o segundo turno da eleição para presidente. Porque talvez ajude a consolidar a ideia de que a saída é a redução da maioridade penal, um dos pontos do programa do candidato preferido – explicite-se ou não esse apoio – das grandes empresas de comunicação.
Também coincidentemente, reportagem publicada na véspera (11/10) no site do Globo exibia exuberantemente a cena lamentavelmente banal de uma tentativa frustrada – repito: frustrada – de assalto: um homem que defendia seu cordão de ouro do ataque de adolescentes negros sem camisa numa rua de Copacabana.
Os infratores, a propósito, foram “apreendidos” em flagrante.
A reportagem só existiu porque uma moradora documentou o ataque – e a “apreensão” –, juntamente com outra cena banal – a tentativa atabalhoada desses jovens de entrarem pela janela nos ônibus que os levarão de volta ao subúrbio. Tudo que é praxe há décadas.
É notícia não porque seja relevante, mas porque tem foto. Sequência de fotos, além do mais feitas por uma leitora. Se fosse um vídeo, seria ainda mais emocionante. Porque assim caminha (este) jornalismo.
A matéria figurou como a mais lida daquele domingo. Começava dizendo que o dia de “calor, sol forte e praias lotadas” era “um cenário (...) propício para ações criminosas”.
Então, tomara que chova.
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
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