Carta Maior, 18/10/2014
Quatro anos esta semana
Por Saul Leblon
Um dia após o debate em que atribuiu à
adversária a responsabilidade por uma campanha de calúnia e ódio, Aécio Neves
comparou a disputa eleitoral contra o PT como um desafio ‘não menor’ do que
acabar com a ditadura no Brasil .
Disse-o sem ruborizar.
O candidato que hoje une
dos Marinhos aos Bornhausen, passando pela The Economist –a ‘revista dos
exploradores’, como diz Lula, e os
detentores da riqueza financeira local e internacional, emitiu o
paralelismo em entrevista na sexta-feira, ao lado da nova entusiasta da
‘mudança’, a doce Marina Silva, que não pisco, nem tossiu.
Esse é o patamar afável em que as coisas
se dão do lado do conservadorismo.
Mas a campanha do PT destila
agressividade.
A uma semana do escrutínio de 26 de
outubro, a sofreguidão ‘mudancista’ ainda poderá melhorar esse desempenho.
Com as pesquisas a indicar um desfecho
incerto, é improvável o refluxo de uma escalada que na verdade começou em 2003
e nunca cessou.
Mas foi a partir de 2005 que ganharia
torque inaudito.
O universo conservador então, já com um pé
na rampa do Planalto embalado pelas denuncias do chamado
mensalão, tropeçou no prestígio de Lula; perdeu as eleições de 2006, como
perderia novamente quatro anos depois, com a vitória de Dilma, em 2010.
As urnas pareciam impermeáveis à
contrariedade das elites com o rumo de um país que, desde 2008 com maior
nitidez, ousava colocar a questão do desenvolvimento social acima dos
interesses plutocráticos e não hesitara em atravessar a linha vermelha ao
instituir uma regulação soberana e industrializante para a exploração das
maiores reservas de óleo descobertas no planeta nos últimos 30 anos, o pré-sal.
A partir do julgamento
da AP 470, iniciado em 2 de agosto de 2012, que se estenderia até 13 de março
de 2014, assiste-se então a
mais longa, feroz e orquestrada campanha conservadora pela retomada do poder, que agora ingressa em sua derradeira e
decisiva semana do assalto.
De lá para cá foram 25 meses e 28 dias de maciça, unilateral,
asfixiante propaganda diuturna em rede nacional contra o PT, a sua história,
suas principais lideranças, seu projeto, sua base social, seu legado ao país.
Antes, durante e depois da AP 470, o
vocábulo ‘quadrilha’ foi o que de mais elegante se ouviu nesta página da
história que mirava não propriamente os réus ou seus supostos delitos
O que se semeava ali – e
vive agora a etapa da colheita - era um degrau superior no ódio de classe
modulado por um jogral ensurdecedor.
Togas, mídias,
colunistas isentos, mercados financeiros, agências de risco e forças da coalização
conservadora liderada pelo PSDB foram
meticulosamente mobilizadas a operar a plenos pulmões.
Cada dente da engrenagem se oferecia ao
desfrute do outro, em encadeamento destinado a fomentar na sociedade a
sensação de um consenso condenatório
que já havia lavrado sua sentença muito antes do direito de defesa e ao largo
das provas e autos do processo,
como se viu.
O ritual de exceção observado até por analistas não alinhados
ao PT incluiria uma
jabuticaba jurídica. O domínio do fato, importado do Direito alemão, foi devidamente violado à luz de
holofotes, por entre aplausos calorosos da mídia.
Não havia pejo, nem
pudor; para servir aos fins antecipadamente definidos, valia qualquer meio.
Consumou-se assim o moinho destinado ao
esmagamento político que levaria o escritor e jornalista Bernardo Kucinski a
enxergar na marcha dos pelotões em passo de ganso, um politicídio focado no
firme e desabrido propósito de abduzir o PT da vida política nacional (leia
‘O politicídio contra o PT’).
Na Copa do Mundo veio o sinal de guerra
aberta.
No coro de uma elite assumidamente
vulgar em seu grito de guerra dirigido à Presidenta Dilma, pulsava a
rejeição à ideia de que a democracia consiste em incorporar direitos sociais
para se tornar, de fato, um espaço de todos. Sobretudo, dos que nunca tiveram
espaço nem voz na vida política nacional.
‘Hoje temos outro desafio, que não é menor
do que aquele (de derrubar a ditadura), que é o de encerrar o governo que aí
está, que perdeu a capacidade de governar pelo fracasso na economia, na gestão
do Estado e no descompromisso com a ética”.
Nas palavras de Aécio, nesta 6ª feira, ao
lado da sempre doce Marina Silva, condensa-se agora o espírito desse tecido
social incompatível com os ideais que no século XVIII anunciavam a sociedade
como comunidade de direitos, capaz de reconhecer em cada cidadão as mesmas
prerrogativas desfrutadas pelo outro –inclusive e principalmente a de
modificar a repartição da riqueza através de maiorias históricas construídas
democraticamente para esse fim.
É esse o contexto da escalada que
emoldurou o debate virulento do SBT, diante do qual a emissão conservadora se
porta como um cronista enojado, sendo na verdade o esteio da crispação e do
linchamento político que agora se condensam na fala algo deslumbrada de Aécio
Neves.
A poderosa frente de interesses reunida ao
longo dessa sedimentação é, paradoxalmente, restritiva ao debate das grandes
questões do desenvolvimento, o que ajuda a entender o diagnóstico monotemático
de seu candidato.
Em uma narrativa primária,
infantilizada na descrição dos desafios brasileiros, mas palatável a uma classe média e alta que se
informa pelo Pânico e pela Veja,
Aécio afirma que os gargalos nacionais derivam de uma mesma origem: o PT.
A visão tosca tem seu
apelo nas mentes atrofiadas pelo longo incentivo ao não pensar.
Deixe que Willian Bonner
faça isso por você. Ele é pago para isso.
Aos mais exigentes,
oferece-se Miriam Leitão,
por exemplo.
Ou não terá sido ela que há 10 dias, em
debate entre Armínio Fraga e Guido Mantega decretou o fim da crise mundial, com
gesto soberbo de mão: ‘A crise acabou em 2009’, apartou um ministro da
Fazenda que lhe dava aula sobre a gravidade e persistência dos efeitos do
colapso global.
Em vão.
A dimensão internacional
dos problemas brasileiros, seu impacto na correlação de forças que desafia a
ação política para o desenvolvimento, inexiste no canto gregoriano do
conservadorismo.
O problema do Brasil é o PT. O
intervencionismo da Dilma.
Medicada com doses adicionais da poção que
a originou, a desordem neoliberal arrasta a humanidade no sexto ano de
arrocho e incerteza.
A cada sinal de dados encorajadores uma
recaída espreita na esquina da mais longa e frágil convalescença de todas as
crises vividas pelo capitalismo nos últimos 100 anos.
Mesmo nos EUA, onde os dados positivos adquirem maior
nitidez, o subtexto da recuperação - inconteste no gestual da analista de O
Globo — é feito de empregos de má qualidade, fastígio financeiro, estagnação
na renda da classe média (hoje, cristalizada no mesmo patamar de 15 anos atrás)
e drástico avanço da desigualdade.
Diferente dos analistas brasileiros, que
esquece de consultar, a presidente do Federal Reserve (banco central dos
EUA), Janet Yellen, disse na última nesta sexta-feira que o crescimento da desigualdade de renda e
de patrimônio nos EUA a
preocupa "demasiadamente". Está perto do seu nível mais dramático em um século,
informou.
Yellen não ignora as intercorrências dessa
espiral na trajetória de uma sociedade. Ao contrário do jogral conservador por
aqui ela sacode a indiferença ao dizer: ‘Os norte-americanos deveriam
perguntar se isso é compatível com os valores dos Estados Unidos’.
No mesmo dia em que a presidente do Fed
arguia o futuro que o ajuste neoliberal está construindo, os mercados
financeiros viviam um novo capítulo de abalos sísmicos.
Temores de uma terceira onda recessiva
na Europa, agravados pelas evidências de uma longa estagnação nas economias
ricas, da qual não se livra nem mesmo a poderosa Alemanha, que vê minguar
suas importações e o crescimento (expectativa de expansão do PIB no último
trimestre é de 0,3%), desencadearam uma explosão de ordens de venda nas bolsas
de todo o planeta.
A deriva e a desordem do
capitalismo internacional é tão grave que o seu principal bunker financeiro, o
FMI, converge rapidamente para se transformar em defensor de incentivos fiscais
e do investimento público,
para mitigar o horizonte de um longo estancamento mundial da renda e do
emprego.
Tudo aquilo que o governo
petista tem feito pioneiramente desde 2008 – com resultados substantivos na oferta de emprego e
redução da pobreza - mas é tratado agora como ‘fracasso’ pelo candidato dos
mercados.
A campanha eleitoral conservadora passa ao
largo dessas miudezas que podem calcificar o século XXI brasileiro.
Seu diagnóstico guarda notável identidade
com o gesto imperial da colunista do Globo: ‘A crise acabou’.
Ou, como prefere o ‘mudancismo’: ‘O
problema do Brasil é o PT’.
O que se segue daí omite questões
estruturais, abstrai conflitos, elide relações objetivas de causa e efeito, não
enxerga o pano de fundo mundial. O risco desse diagnóstico leviano conduzir
o país a soluções desastrosas é alto.
Por isso é necessário compensar a
indigência intelectual e política daquilo que expressa a boca tosca de Aécio
com uma oratória exaltada, carregada na tintura fantasiosa de um Brasil
‘devastado’.
O salvacionismo tucano impressiona durante
algum tempo; em seguida satura.
Não há aderência racional entre o que se diz e o cotidiano da maioria da população: 78% dos eleitores consideram o governo Dilma ótimo, bom ou regular, diz o Datafolha.
Não há aderência racional entre o que se diz e o cotidiano da maioria da população: 78% dos eleitores consideram o governo Dilma ótimo, bom ou regular, diz o Datafolha.
Para contornar a decomposição desse
produto de prazo de validade estreito, o discurso do ódio ideológico recusa
ao eleitor o direito de refletir sobre o saldo das conquistas, equívocos e
desafios acumulados nos últimos anos, de modo a formar o discernimento
maduro das opções oferecidas ao passo seguinte brasileiro.
O arrastão conservador exige um mutirão
progressista contra aqueles que tentam enterrar o futuro do país em um mar de
lama cenográfico, de recorrência conhecida na história.
Nunca como desta vez a
luta voto a voto teve tanto peso na disputa política.
São sete dias que valem
por quatro anos.
Junção de tempos suficiente para que cada
voto progressista lute para dobrar seu peso na urna de domingo.
À luta.
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