quinta-feira, 16 de outubro de 2014

O caso do beija-flor caipira


O caso do beija-flor caipira

 

Clássico sertanejo, Cuitelinho rende boa aula de português sobre correções preconcebidas

 

Por Sírio Possenti

 


Todo mundo, espero, conhece Cuitelinho, um clássico da música caipira. Segundo Luis Nassif, a música é de autor desconhecido. Foi trazida a Paulo Vanzolini, que a divulgou.

Já foi gravada por dezenas de cantores. Sua letra é um corpus interessante a quem queira estudar português, mais precisamente a quem queira conhecer traços do português falado em grande parte do Brasil. Eis a primeira estrofe:

Cheguei na beira do porto 
onde as onda se espraia 
As garça dá meia vorta 
e senta na beira da praia 
E o cuitelinho não gosta 
que o botão de rosa caia ai ai.

Sendo peça de folclore, anônima ao que se sabe, tem muitas características da gramática do português popular. As mais salientes são as pronúncias “espaia”, “parentaia”, “bataia”, “navaia, “faia”, “oio” e “atrapaia” (a consoante grafada /lh/ é substituída pela semivogal /y/), e as peculiares concordâncias nominais e verbais representadas em “as onda se espaia”, “terras paraguaia”, “os óio se enche”, “fortes bataia” (nos grupos nominais, o plural é marcado só na 1a palavra, seja artigo (as onda, os óio etc.), substantivo (terras paraguaia) ou adjetivo (fortes bataia); e os verbos cujos sujeitos estão no plural têm sempre a forma da pessoa não marcada – a 3ª do singular (as onda se espraia).

Há outros dados, só perceptíveis se se ouve a canção. Ouvindo diversas gravações, pode-se comparar as diferentes pronúncias dos /ee/ de “despedi”, do /o/ de “botão”, além da variação do ditongo em “beira / bera”, e a presença ou não do rotacismo em “volta / vorta”, a pronúncia do /r/ de “garça” e de “corta”, que ora é mais, ora é menos retroflexo. 


Fatos

Ou seja: há fatos do português falado não analisados ou comentados em aula (eventualmente, só corrigidos, se não estigmatizados, tachados de erros). Um deles é da mesma natureza do famoso “os peixe”, daquele livro do MEC (lembram?).

Obviamente, não faria sentido corrigir uma letra como esta. Seria mais ou menos como corrigir textos antigos. O que se pode fazer em aula é a simulação de uma edição “culta”. Como exercício, ou prática de análise. Mas logo se verá que a tarefa falha, ou pagaria preço alto demais, com a perda de rimas (“espalham” com “praia”): ou seja, não vale a pena.

O que vale a pena é repetir um mantra sobre esse tipo de trabalho, dedicado a variantes populares consideradas erros: pode-se gostar ou não de letras assim, de fatos gramaticais como esses, mas seria necessário reconhecer – para não ser mau analista ou preconceituoso – que se trata de fatos. Mais importante: há regularidade nas estruturas sintáticas, morfológicas e fonológicas que caracterizam esse dialeto do português. Isto é, trata-se de regras de uma gramática.

Nassif informa que Vanzolini acrescentou estrofe à musica. Penso que vale a pena perceber o respeito às regras gramaticais do original:

Vou pegar seu retratinho 
e colocar numa medaia 
Com seu vestidinho branco 
e um laço de cambraia 
Colocar bem junto ao peito 
onde o coração trabaia.

Mas há fatos até curiosos que se observam nas diversas gravações que podem ser ouvidas no YouTube. Dois chamaram minha atenção.

1) O primeiro é que há muita variação, especialmente de pronúncia ou sotaque, que não se percebe quando se lê a letra. Ou seja: os cantores nem sempre assumem o dialeto da letra. Se alguns a seguem literalmente, outros a “corrigem” aqui e ali.

2) O segundo fato é mais curioso: deixando detalhes de lado, pode-se afirmar que, quanto menos “letrados” são os cantores, mais corrigem a letra. 

Milton Nascimento e Nara Leão, por exemplo, “respeitam” os traços populares (dizem espaia,as ondaos óiobataia etc.). Outros “corrigem” passagens, embora não todas, mesmo que se percam rimas (dizem “espalham”, prejudicando a rima com “praia”). A dupla Rio Negro e Solimões é a que mais corrige. Não sei se são cidadãos mais ou menos letrados do que Pena Branca e Xavantinho, dupla autenticamente caipira, à qual jamais ocorreria “corrigir” tal letra. 


Gravações

Um dado ainda mais curioso é que Rio Negro e Solimões não só corrigem as concordâncias e a pronúncia, destruindo características poéticas da letra, mas evitam cantar “dei em terras paraguaias”, certamente devido à conotação sexual do verbo “dar”. Em vez de “Eu entrei no Mato Grosso / Dei em terras paraguaia”, cantam “entrei em terras…”.

Uma das teses de Labov é que o excesso de correção (a conhecida hipercorreção) é sintoma de insegurança. Aplicando a tese ao caso: os oficialmente “cultos” não se sentem mal seguindo regras da outra cultura. No caso, traços dialetais populares. Mas alguns representantes da cultura popular, inseguros em relação a seu valor, corrigem os traços mais salientes.
Ouça as diferentes versões das músicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário