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Le Monde Diplomatique Brasil (Ed. No. 87) Outubro 2014
América Latina
Impasses dos governos progressistas
Por Frei Betto
Na América Latina predominam hoje, em meados da segunda década do século XXI, governos democráticos populares. A maioria foi eleita por forças de esquerda. Dos chefes de Estado, cinco atuaram como guerrilheiros sob ditaduras: Dilma Rousseff, do Brasil; Raúl Castro, de Cuba; José Mujica, do Uruguai; Daniel Ortega, da Nicarágua; e Salvador Sánchez, de El Salvador. Ora, ser de esquerda não é uma questão emocional ou mera adesão a conceitos formulados por Marx, Lenin ou Trotsky. É uma opção ética, com fundamento racional. Opção que visa favorecer, em primeiro lugar, os marginalizados e excluídos. Portanto, ninguém é de esquerda por se declarar como tal ou por encher a boca de chavões ideológicos, e sim pela práxis que desempenha em relação aos segmentos mais empobrecidos da população.
Na América Latina, os chamados governos democráticos populares reúnem concepções diversas e perseguem, em tese, projetos de sociedades alternativas ao capitalismo. Transitam contraditoriamente entre políticas públicas voltadas aos segmentos de baixa renda e o sistema capitalista global regido pelas “mãos invisíveis” do mercado.
Os governos democráticos populares têm produzido, de fato, importantes mudanças para melhorar a qualidade de vida de amplos segmentos sociais. Hoje, 54% da população latino-americana vive em países com governos progressistas. Eis um fato inédito na história do continente. Os outros 46%, cerca de 259 milhões de pessoas, vivem sob governos de direita, aliados aos Estados Unidos e indiferentes ao agravamento da desigualdade social e da violência.
Do ponto de vista histórico, é a primeira vez que tantos governos do continente mantêm distância dos ditames da Casa Branca. E é também a primeira vez que se criam instituições de articulações continentais e regionais (Alba, Celac, Unasul etc.) sem a presença dos Estados Unidos. Isso configura uma redução da influência imperialista na América Latina, entendida como predomínio de um Estado sobre o outro.
No entanto, outra forma de imperialismo prevalece na América Latina: o domínio do capital financeiro, voltado à reprodução e concentração do grande capital, que se apoia no poder de seus países de origem para promover, desde os países-hospedeiros, exportação de capital, mercadorias e tecnologias e apropriar-se das riquezas naturais e da mais-valia.
Houve um deslocamento da submissão política à submissão econômica. A força de penetração e obtenção de lucros do grande capital não se reduziu com os governos progressistas, apesar das medidas regulatórias e dos impostos adotados por alguns desses países. Se de um lado se avança na introdução de políticas públicas favoráveis aos mais pobres, por outro não se reduz o poder de expansão do grande capital.
Outra diferença entre os governos democráticos populares é que uns ousaram promover mudanças constitucionais, enquanto outros permanecem nos marcos institucionais e constitucionais dos governos neoliberais que os precederam, embora se empenhando em conquistas sociais significativas, como a redução da miséria e da desigualdade social.
As forças de esquerda da América Latina seguem se centrando na ocupação do aparelho de Estado. Lutam para que os segmentos marginalizados e excluídos se incorporem aos marcos regulatórios da cidadania (indígenas, sem-terra, sem-teto, mulheres, catadores de material reciclável etc.). Governos e movimentos sociais unem-se, sobretudo em períodos eleitorais, para conter as violentas reações da classe dominante alijada do aparato estatal.
No entanto, é essa classe dominante que mantém o poder econômico. E por mais que os ocupantes do poder político coloquem em prática medidas favoráveis aos mais pobres, há uma pedra intransponível no caminho: todo modelo econômico exige determinado modelo político condizente com seus interesses. A autonomia da esfera política em relação à econômica é sempre limitada.
Essa limitação impõe aos governos democráticos populares um arco de alianças políticas, muitas vezes espúrias, e com os setores que, dentro do país, representam o grande capital nacional e internacional, que corrói os princípios e objetivos das forças de esquerda no poder. E o que é mais grave: essa esquerda não logra reduzir a hegemonia ideológica da direita, que exerce amplo controle sobre a mídia e o sistema simbólico da cultura predominante.
Enquanto os governos democráticos populares se sentem permanentemente acuados pelas ofensivas desestabilizadoras da direita, acusando-a de tentativa de golpe, esta se sente segura por estar respaldada pela grande mídia nacional e global, e pela incapacidade de a esquerda criar mídias alternativas suficientemente atrativas para conquistar corações e mentes da opinião pública.
O modelo econômico predominante, gerenciado pelo grande capital e adotado pelos governos progressistas, visa aproveitar as vantagens da “globalização” para exportar commodities e riquezas naturais, a fim de fazer caixa para financiar, por meio de políticas públicas, o consumo dos segmentos excluídos pela dívida social. Ainda que adotem uma retórica progressista, os governos democráticos populares não logram prescindir do capital transnacional que lhes assegura suporte financeiro, novas tecnologias e acesso aos mercados. E, para isso, o Estado deve participar como forte investidor dos interesses do capital privado, seja pela facilitação de créditos, seja pela desoneração de tributos e adoção de parcerias público-privadas. Esse é o modelo de desenvolvimento pós-neoliberal predominante hoje na América Latina.
Esse processo exportador-extorsivo inclui recursos energéticos, hídricos, minerais e agropecuários, com progressiva devastação da biodiversidade e do equilíbrio ambiental, e a entrega da terra aos monocultivos anabolizados por agrotóxicos e transgênicos. O Estado investe em ampla construção de infraestrutura para favorecer o escoamento de bens naturais mercantilizados, cujo faturamento, em divisas estrangeiras, raramente retorna ao país. Grande parcela dessa fortuna aloja-se em paraísos fiscais.
Eis a contradição desse modelo neodesenvolvimentista, que, no frigir dos ovos, anula as diferenças estruturais entre os governos de esquerda e de direita. Adotar tal modelo é, pois, aceitar tacitamente a hegemonia capitalista, ainda que sob o pretexto de mudanças “graduais”, “realismo” ou “humanização” do capitalismo. De fato, é mera retórica de quem se rende ao modelo capitalista.
Se os governos democráticos populares pretendem reduzir o poder do grande capital, não há outra via senão a intensa mobilização dos movimentos sociais, uma vez que, na atual conjuntura, a via revolucionária está descartada e, aliás, só interessaria a dois setores: extrema direita e fabricantes de armas.
Se o que se pretende, porém, é assegurar o desempenho do grande capital, então os governos progressistas terão de se adequar para, cada vez mais, cooptar, controlar ou criminalizar e reprimir os movimentos sociais. Toda tentativa de equilíbrio entre os dois polos seria, de fato, contrair núpcias com o capital e, ao mesmo tempo, flertar com os movimentos sociais no intento de apenas seduzi-los e neutralizá-los.
Como os governos democráticos populares tratam os segmentos da população beneficiados pelas políticas sociais? É inegável que o nível de exclusão e miséria causado pelo neoliberalismo exige medidas urgentes que não fujam ao mero assistencialismo. Tal assistencialismo, porém, restringe-se ao acesso a benefícios pessoais (bônus financeiro, escola, atendimento médico, crédito facilitado, desoneração de produtos básicos etc.), sem que haja complementação com processos pedagógicos de formação e organização políticas. Criam-se, assim, redutos eleitorais, sem adesão a um projeto político alternativo ao capitalismo. Dão-se benefícios sem suscitar esperança. Promove-se o acesso ao consumo sem propiciar o surgimento de novos protagonistas sociais e políticos, e o que é mais grave: sem perceber que, no bojo do atual sistema consumista, cujas mercadorias recicláveis estão impregnadas de fetiche, valorizando o consumidor e não o cidadão, o capitalismo pós-neoliberal introduz “valores” – como a competitividade e a mercantilização de todos os aspectos da vida e da natureza –, reforçando o individualismo e o conservadorismo.
O símbolo dessa modalidade pós-neoliberal de consumismo é o telefone celular. Ele traz em seu bojo a falsa ideia de democratização pelo consumo e de incorporação à classe média. Assim, segmentos excluídos sentem-se menos ameaçados quando acreditam que está ao alcance deles, mais facilmente, atualizar o modelo do celular do que obter saneamento onde moram. O celular é a senha para sentir-se incluído no mercado... E sabemos todos que as formas de existência social condicionam o nível de consciência. Em outras palavras, a cabeça pensa onde os pés pisam (ou imaginam que pisam).
Nossos governos progressistas, em suas múltiplas contradições, criticam o capitalismo financeiro e, ao mesmo tempo, promovem a bancarização dos segmentos mais pobres, por meio de cartões de acesso ao benefício monetário, a pensões e salários, e da facilidade de crédito, apesar da dificuldade de arcar com os juros e a quitação das dívidas.
Em suma, o modelo neodesenvolvimentista monitorado pela esquerda empenha-se em fazer da América Latina um oásis de estabilidade do capitalismo em crise. E não consegue fugir da equação que associa qualidade de vida e crescimento econômico segundo a lógica do capital. Enquanto não se socializa culturalmente a proposta indígena do bem viver, para a grande maioria viver bem será sempre sinônimo de viver melhor em termos materiais.
O grande perigo de tudo isso é fortalecer, no imaginário social, a ideia de que o capitalismo é perene (“A história acabou”, proclamou Francis Fukuyama) e que sem ele não pode haver processo verdadeiramente democrático e civilizatório, o que significa demonizar e excluir, ainda que pela força, todos que não aceitam essa “obviedade”, então considerados terroristas, inimigos da democracia, subversivos ou fundamentalistas.
Essa lógica é reforçada quando, em campanhas eleitorais, os candidatos de esquerda acenam, enfaticamente, com a confiança do mercado, a atração de investimentos estrangeiros, a garantia de que os empresários e banqueiros terão maiores ganhos etc.
Por um século a lógica da esquerda latino-americana jamais deparou com a ideia de superar o capitalismo por etapas. Esse é um dado novo, que exige muita análise para pôr em prática políticas que impeçam que os atuais processos democráticos populares sejam revertidos pelo grande capital e por seus representantes políticos de direita.
Esse desafio não pode depender apenas dos governos. Ele se estende aos movimentos sociais e aos partidos progressistas, que, o quanto antes, precisam atuar como “intelectuais orgânicos”, socializando o debate sobre avanços e contradições, dificuldades e propostas, de modo a alargar sempre mais o imaginário centrado na libertação do povo e na conquista de um modelo de sociedade pós-capitalista verdadeiramente emancipatório.
Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.
Na América Latina predominam hoje, em meados da segunda década do século XXI, governos democráticos populares. A maioria foi eleita por forças de esquerda. Dos chefes de Estado, cinco atuaram como guerrilheiros sob ditaduras: Dilma Rousseff, do Brasil; Raúl Castro, de Cuba; José Mujica, do Uruguai; Daniel Ortega, da Nicarágua; e Salvador Sánchez, de El Salvador. Ora, ser de esquerda não é uma questão emocional ou mera adesão a conceitos formulados por Marx, Lenin ou Trotsky. É uma opção ética, com fundamento racional. Opção que visa favorecer, em primeiro lugar, os marginalizados e excluídos. Portanto, ninguém é de esquerda por se declarar como tal ou por encher a boca de chavões ideológicos, e sim pela práxis que desempenha em relação aos segmentos mais empobrecidos da população.
Na América Latina, os chamados governos democráticos populares reúnem concepções diversas e perseguem, em tese, projetos de sociedades alternativas ao capitalismo. Transitam contraditoriamente entre políticas públicas voltadas aos segmentos de baixa renda e o sistema capitalista global regido pelas “mãos invisíveis” do mercado.
Os governos democráticos populares têm produzido, de fato, importantes mudanças para melhorar a qualidade de vida de amplos segmentos sociais. Hoje, 54% da população latino-americana vive em países com governos progressistas. Eis um fato inédito na história do continente. Os outros 46%, cerca de 259 milhões de pessoas, vivem sob governos de direita, aliados aos Estados Unidos e indiferentes ao agravamento da desigualdade social e da violência.
Do ponto de vista histórico, é a primeira vez que tantos governos do continente mantêm distância dos ditames da Casa Branca. E é também a primeira vez que se criam instituições de articulações continentais e regionais (Alba, Celac, Unasul etc.) sem a presença dos Estados Unidos. Isso configura uma redução da influência imperialista na América Latina, entendida como predomínio de um Estado sobre o outro.
No entanto, outra forma de imperialismo prevalece na América Latina: o domínio do capital financeiro, voltado à reprodução e concentração do grande capital, que se apoia no poder de seus países de origem para promover, desde os países-hospedeiros, exportação de capital, mercadorias e tecnologias e apropriar-se das riquezas naturais e da mais-valia.
Houve um deslocamento da submissão política à submissão econômica. A força de penetração e obtenção de lucros do grande capital não se reduziu com os governos progressistas, apesar das medidas regulatórias e dos impostos adotados por alguns desses países. Se de um lado se avança na introdução de políticas públicas favoráveis aos mais pobres, por outro não se reduz o poder de expansão do grande capital.
Outra diferença entre os governos democráticos populares é que uns ousaram promover mudanças constitucionais, enquanto outros permanecem nos marcos institucionais e constitucionais dos governos neoliberais que os precederam, embora se empenhando em conquistas sociais significativas, como a redução da miséria e da desigualdade social.
As forças de esquerda da América Latina seguem se centrando na ocupação do aparelho de Estado. Lutam para que os segmentos marginalizados e excluídos se incorporem aos marcos regulatórios da cidadania (indígenas, sem-terra, sem-teto, mulheres, catadores de material reciclável etc.). Governos e movimentos sociais unem-se, sobretudo em períodos eleitorais, para conter as violentas reações da classe dominante alijada do aparato estatal.
No entanto, é essa classe dominante que mantém o poder econômico. E por mais que os ocupantes do poder político coloquem em prática medidas favoráveis aos mais pobres, há uma pedra intransponível no caminho: todo modelo econômico exige determinado modelo político condizente com seus interesses. A autonomia da esfera política em relação à econômica é sempre limitada.
Essa limitação impõe aos governos democráticos populares um arco de alianças políticas, muitas vezes espúrias, e com os setores que, dentro do país, representam o grande capital nacional e internacional, que corrói os princípios e objetivos das forças de esquerda no poder. E o que é mais grave: essa esquerda não logra reduzir a hegemonia ideológica da direita, que exerce amplo controle sobre a mídia e o sistema simbólico da cultura predominante.
Enquanto os governos democráticos populares se sentem permanentemente acuados pelas ofensivas desestabilizadoras da direita, acusando-a de tentativa de golpe, esta se sente segura por estar respaldada pela grande mídia nacional e global, e pela incapacidade de a esquerda criar mídias alternativas suficientemente atrativas para conquistar corações e mentes da opinião pública.
O modelo econômico predominante, gerenciado pelo grande capital e adotado pelos governos progressistas, visa aproveitar as vantagens da “globalização” para exportar commodities e riquezas naturais, a fim de fazer caixa para financiar, por meio de políticas públicas, o consumo dos segmentos excluídos pela dívida social. Ainda que adotem uma retórica progressista, os governos democráticos populares não logram prescindir do capital transnacional que lhes assegura suporte financeiro, novas tecnologias e acesso aos mercados. E, para isso, o Estado deve participar como forte investidor dos interesses do capital privado, seja pela facilitação de créditos, seja pela desoneração de tributos e adoção de parcerias público-privadas. Esse é o modelo de desenvolvimento pós-neoliberal predominante hoje na América Latina.
Esse processo exportador-extorsivo inclui recursos energéticos, hídricos, minerais e agropecuários, com progressiva devastação da biodiversidade e do equilíbrio ambiental, e a entrega da terra aos monocultivos anabolizados por agrotóxicos e transgênicos. O Estado investe em ampla construção de infraestrutura para favorecer o escoamento de bens naturais mercantilizados, cujo faturamento, em divisas estrangeiras, raramente retorna ao país. Grande parcela dessa fortuna aloja-se em paraísos fiscais.
Eis a contradição desse modelo neodesenvolvimentista, que, no frigir dos ovos, anula as diferenças estruturais entre os governos de esquerda e de direita. Adotar tal modelo é, pois, aceitar tacitamente a hegemonia capitalista, ainda que sob o pretexto de mudanças “graduais”, “realismo” ou “humanização” do capitalismo. De fato, é mera retórica de quem se rende ao modelo capitalista.
Se os governos democráticos populares pretendem reduzir o poder do grande capital, não há outra via senão a intensa mobilização dos movimentos sociais, uma vez que, na atual conjuntura, a via revolucionária está descartada e, aliás, só interessaria a dois setores: extrema direita e fabricantes de armas.
Se o que se pretende, porém, é assegurar o desempenho do grande capital, então os governos progressistas terão de se adequar para, cada vez mais, cooptar, controlar ou criminalizar e reprimir os movimentos sociais. Toda tentativa de equilíbrio entre os dois polos seria, de fato, contrair núpcias com o capital e, ao mesmo tempo, flertar com os movimentos sociais no intento de apenas seduzi-los e neutralizá-los.
Como os governos democráticos populares tratam os segmentos da população beneficiados pelas políticas sociais? É inegável que o nível de exclusão e miséria causado pelo neoliberalismo exige medidas urgentes que não fujam ao mero assistencialismo. Tal assistencialismo, porém, restringe-se ao acesso a benefícios pessoais (bônus financeiro, escola, atendimento médico, crédito facilitado, desoneração de produtos básicos etc.), sem que haja complementação com processos pedagógicos de formação e organização políticas. Criam-se, assim, redutos eleitorais, sem adesão a um projeto político alternativo ao capitalismo. Dão-se benefícios sem suscitar esperança. Promove-se o acesso ao consumo sem propiciar o surgimento de novos protagonistas sociais e políticos, e o que é mais grave: sem perceber que, no bojo do atual sistema consumista, cujas mercadorias recicláveis estão impregnadas de fetiche, valorizando o consumidor e não o cidadão, o capitalismo pós-neoliberal introduz “valores” – como a competitividade e a mercantilização de todos os aspectos da vida e da natureza –, reforçando o individualismo e o conservadorismo.
O símbolo dessa modalidade pós-neoliberal de consumismo é o telefone celular. Ele traz em seu bojo a falsa ideia de democratização pelo consumo e de incorporação à classe média. Assim, segmentos excluídos sentem-se menos ameaçados quando acreditam que está ao alcance deles, mais facilmente, atualizar o modelo do celular do que obter saneamento onde moram. O celular é a senha para sentir-se incluído no mercado... E sabemos todos que as formas de existência social condicionam o nível de consciência. Em outras palavras, a cabeça pensa onde os pés pisam (ou imaginam que pisam).
Nossos governos progressistas, em suas múltiplas contradições, criticam o capitalismo financeiro e, ao mesmo tempo, promovem a bancarização dos segmentos mais pobres, por meio de cartões de acesso ao benefício monetário, a pensões e salários, e da facilidade de crédito, apesar da dificuldade de arcar com os juros e a quitação das dívidas.
Em suma, o modelo neodesenvolvimentista monitorado pela esquerda empenha-se em fazer da América Latina um oásis de estabilidade do capitalismo em crise. E não consegue fugir da equação que associa qualidade de vida e crescimento econômico segundo a lógica do capital. Enquanto não se socializa culturalmente a proposta indígena do bem viver, para a grande maioria viver bem será sempre sinônimo de viver melhor em termos materiais.
O grande perigo de tudo isso é fortalecer, no imaginário social, a ideia de que o capitalismo é perene (“A história acabou”, proclamou Francis Fukuyama) e que sem ele não pode haver processo verdadeiramente democrático e civilizatório, o que significa demonizar e excluir, ainda que pela força, todos que não aceitam essa “obviedade”, então considerados terroristas, inimigos da democracia, subversivos ou fundamentalistas.
Essa lógica é reforçada quando, em campanhas eleitorais, os candidatos de esquerda acenam, enfaticamente, com a confiança do mercado, a atração de investimentos estrangeiros, a garantia de que os empresários e banqueiros terão maiores ganhos etc.
Por um século a lógica da esquerda latino-americana jamais deparou com a ideia de superar o capitalismo por etapas. Esse é um dado novo, que exige muita análise para pôr em prática políticas que impeçam que os atuais processos democráticos populares sejam revertidos pelo grande capital e por seus representantes políticos de direita.
Esse desafio não pode depender apenas dos governos. Ele se estende aos movimentos sociais e aos partidos progressistas, que, o quanto antes, precisam atuar como “intelectuais orgânicos”, socializando o debate sobre avanços e contradições, dificuldades e propostas, de modo a alargar sempre mais o imaginário centrado na libertação do povo e na conquista de um modelo de sociedade pós-capitalista verdadeiramente emancipatório.
Frei Betto é escritor, autor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.
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