http://www.maurosantayana.com/2014/07/de-cegos-e-de-anoes.html
25/07/2014
DE CEGOS E DE ANÕES
Por Mauro Santayana
(Jornal do Brasil) - Se não me engano, creio que foi em uma
aldeia da Galícia que escutei, na década de 70, de camponês de baixíssima
estatura, a história do cego e do anão que foram lançados, por um rei, dentro
de um labirinto escuro e pejado de monstros. Apavorado, o cego, que não podia
avançar sem a ajuda do outro, prometia-lhe sorte e fortuna, caso ficasse com
ele, e, desesperado, começou a cantar árias para distraí-lo.
O anão, ao ver que o barulho feito pelo cego iria atrair
inevitavelmente as criaturas, e que o cego, ao cantar cada vez mais alto, se
negava a ouvi-lo, escalou, com ajuda das mãos pequenas e das fortes pernas, uma
parede, e, caminhando por cima dos muros, chegou, com a ajuda da luz da Lua, ao
limite do labirinto, de onde saltou para
densa floresta, enquanto o cego, ao sentir que ele havia partido, o
amaldiçoava em altos brados, sendo, por isso, rapidamente localizado e devorado
pelos monstros que espreitavam do escuro.
Ao final do relato, na taverna galega, meu interlocutor
virou-se para mim, tomou um gole de vinho e, depois de limpar a boca com o
braço do casaco, pontificou, sorrindo, referindo-se à sua altura: como ve
usted, compañero... con el perdón de Dios y de los ciegos, aun prefiro, mil
veces, ser enano...
Lembrei-me do episódio — e da história — ao ler sobre a
convocação do embaixador brasileiro em Telaviv para consultas, devido ao
massacre em Gaza, e da resposta do governo israelense, qualificando o Brasil
como irrelevante, do ponto de vista geopolítico, e acusando o nosso país de ser
um “anão diplomático".
Chamar o Brasil de anão diplomático, no momento em que nosso
país acaba de receber a imensa maioria dos chefes de Estado da América Latina,
e os líderes de três das maiores potências espaciais e atômicas do planeta,
além do presidente do país mais avançado da África, país com o qual Israel
cooperava intimamente na época do Apartheid, mostra o grau de cegueira e de
ignorância a que chegou Telaviv.
O governo israelense não consegue mais enxergar além do
próprio umbigo, que confunde com o microcosmo geopolítico que o cerca, impelido
e dirigido pelo papel executado, como obediente cão de caça dos EUA no Oriente
Médio.
O que o impede de reconhecer a importância geopolítica
brasileira, como fizeram milhões de pessoas, em todo o mundo, nos últimos dias,
no contexto da criação do Banco do Brics e do Fundo de reservas do grupo, como
primeiras instituições a se colocarem como alternativa ao FMI e ao Banco
Mundial, é a mesma cegueira que não lhe permite ver o labirinto de morte e
destruição em que se meteu Israel, no Oriente Médio, nas últimas décadas.
Se quisessem sair do labirinto, os sionistas aprenderiam com
o Brasil, país que tem profundos laços com os países árabes e uma das maiores
colônias hebraicas do mundo, como se constrói a paz na diversidade, e o valor
da busca pacífica da prosperidade na superação dos desafios, e da adversidade.
O Brasil coordena, na América do Sul e na América Latina,
numerosas instituições multilaterais. E coopera com os estados vizinhos — com
os quais não tem conflitos políticos ou territoriais — em áreas como a
infraestrutura, a saúde, o combate à pobreza.
No máximo, em nossa condição de “anões irrelevantes”, o que
poderíamos aprender com o governo israelense, no campo da diplomacia, é como
nos isolarmos de todos os povos da nossa região e engordar, cegos pela raiva e
pelo preconceito, o ódio visceral de nossos vizinhos — destruindo e ocupando
suas casas, bombardeando e ferindo seus pais e avós, matando e mutilando as
suas mães e esposas, explodindo a cabeça de seus filhos.
Antes de criticar a diplomacia brasileira, o porta-voz da
Chancelaria israelense, Yigal Palmor, deveria ler os livros de história para constatar
que, se o Brasil fosse um país irrelevante, do ponto de vista diplomático, sua
nação não existiria, já que o Brasil não apenas apoiou e coordenou como também
presidiu, nas Nações Unidas, com Osvaldo Aranha, a criação do Estado de Israel.
Talvez, assim, ele também descobrisse por quais razões o país
que disse ser irrelevante foi o único da América Latina a enviar milhares de
soldados à Europa para combater os genocidas nazistas; comanda órgãos como a OMC e a FAO; bloqueou, com os BRICS, a
intervenção da Europa e dos Estados Unidos na Síria, defendida por Israel,
condenou, com eles, a destruição do Iraque e da Líbia; obteve o primeiro
compromisso sério do Irã, na questão nuclear; abre, todos os anos, com o
discurso de seu máximo representante, a Assembleia Geral da Nações Unidas; e
porque — como lembrou o ministro Luiz Alberto Figueiredo, em sua réplica —
somos uma das únicas 11 nações do mundo que possuem relações diplomáticas, sem
exceção – e sem problemas - com todos os membros da ONU.
...
http://www.cartacapital.com.br/revista/810/o-silencio-oportunista-9443.html
Carta Capital, 25/07/2014
O silêncio oportunista
Por Mino Carta
Não pergunto aos meus botões em que mundo
vivemos, temo a resposta. A crise mundial dispensa maiores
apresentações. Moral e intelectual antes que econômica, embora esta
confirme aquelas precedentes. Por que a humanidade rendeu-se à religião
do deus mercado? Por que aceitou passivamente as leis de uma fé que
aproveita a poucos e infelicita os demais?
Às vezes me colhe a sinistra sensação de
que já começou uma nova, peculiar Idade Média. O mundo, seduzido pelo
chamado avanço tecnológico, vítima de uma globalização dos interesses da
minoria, distanciados os homens uns dos outros não somente pelo
crescente desequilíbrio social, mas também pela versatilidade da
mirabolante internet, não se apercebem do eclipse dos valores e dos
princípios, e da ausência de poetas e pensadores.
É nesta moldura que se desenrolam os
acontecimentos destes dias a agitarem a política internacional, e também
se movem minhas dúvidas e perplexidades em relação aos comportamentos
dos donos do poder, das chamadas opiniões públicas e dos sistemas
midiáticos. No caso, a mídia nativa confirma apenas a sua
insignificância, ao imitar simplesmente os exemplos chegados de fora.
Então vejamos. Por que os restos
retorcidos do avião malaio derrubado no céu ucraniano ganham a primazia
nas primeiras páginas e na fala sincopada dos locutores, no confronto
com os mortos e a devastação na Faixa de Gaza? Não proponho um enigma.
Trata-se do resultado da demonização de Putin misturada com o longo
alcance do lobby judeu. De certa forma, a queda do avião veio a calhar
para os senhores do mundo, sem detrimento da brutal gravidade do fato e a
desolação causada pela morte de 298 semelhantes. Serviu, porém, para
desviar a atenção, até onde foi possível, de algo muito mais grave para a
paz global.
É no Oriente Médio que se decide o futuro
do planeta, e isso é do entendimento até do mundo mineral. A questão da
Ucrânia é complexa e ameaçadora, mas o império soviético, cuja presença
estaria habilitada a precipitar severas complicações, ruiu há 25 anos. O
Ocidente, ainda sujeito ao império norte-americano, tende a apresentar
Putin como uma espécie de herdeiro tanto da URSS quanto do czar. Não é
bem assim, está claro. O defeito do líder russo é sua inteligente
independência, em que pesem sua prepotência e eventual ferocidade, e sem
falar das preocupações geradas por seu envolvimento na criação de uma
nova ordem pelos BRICS. Outra a dimensão da questão médio-oriental, para
a qual reflui o efeito dos momentos mais tensos das últimas décadas.
Feridas profundas
continuam a sangrar em toda a região, marcada pela progressão do
fundamentalismo islâmico, por revoluções em pleno curso, pelos erros das
políticas ocidentais, que aliás são seculares. E por guerras
fracassadas, por revoltas malogradas, por atrocidades sem conta, por
desmandos imperdoáveis. Etc. etc. No centro deste arcabouço instável,
sempre à beira do desastre fatal, está Israel, Estado poderosíssimo por
força própria e de quem o sustenta, a ocupar, desde o pós-Guerra, uma
terra antes habitada por outro povo, conquanto também semita, há cerca
de 2 mil anos.
Eu, por exemplo, não sou responsável pelo
holocausto. Lamento, mesmo porque ceifou a vida de excelentes amigos
dos meus pais, mas não me induz ao remorso, e tanto menos até hoje,
quando a invasão da Faixa de Gaza pelas formidáveis tropas israelenses
evoca a invasão do Corredor Polonês pelo exército de Hitler em 1º de
setembro de 1939, estopim da Segunda Guerra Mundial. O Ocidente
neoliberal diz que Tel-Aviv tem direito a se defender contra o
terrorismo do Hamas. Já o Hamas sustenta estar em luta pelo resgate da
terra usurpada.
Por cima das
razões de cada um, a disparidade exorbitante entre as forças não pode
deixar de influenciar qualquer juízo, para fortalecer a inequívoca
percepção de que de um lado morrem soldados e do outro civis, e muitas
crianças, em proporções absolutamente incomparáveis. Estamos diante de
uma ofensa irreparável aos Direitos Humanos. Que visa Israel? Eliminar
1,8 milhão de palestinos? Dói demais, na circunstância, a falta de
reação de uma porção do mundo que se pretende civilizado e democrático
e, de verdade, sucumbe à soberania do dinheiro. Avulta, nesta encenação
trágica, a ausência de lideranças, a falta daquele gênero de personagens
que já ofereceram espaço à política e a praticaram com competência para
assumir o controle da situação e ditar as regras.
Contamos com uma galeria de figuras
medíocres, quando não parvas, incapazes de enfrentar a turva realidade
para impor um rumo. E isso tudo nesta hora que denigre o gênero humano e
denuncia a chegada da nova Idade Média. Louvo a iniciativa da
chancelaria brasileira: chama às falas o embaixador israelense e de
volta ao País o embaixador brasileiro em Tel-Aviv. Mas o Brasil pode e
deve muito mais. Por exemplo, convocar a ONU, como sempre inerte, a
condenar o massacre e mostrar às lenientes democracias ocidentais o
caminho da razão.
Opera Mundi, 25/07/2014
O que está em jogo na Faixa de Gaza
Por Marco Aurélio Garcia (*)
Esta nota estará seguramente desatualizada quando for publicada. Mais de
setecentos palestinos – grande parte dos quais mulheres, crianças e
anciãos – foram mortos nos bombardeios das Forças Armadas israelenses na
Faixa de Gaza desde que, há duas semanas, iniciou-se uma nova etapa
deste absurdo conflito que se arrasta há décadas. A invasão do
território palestino provocou também mais de 30 mortos entre os soldados
de Israel.
O governo brasileiro reagiu em dois momentos à crise. Na sua nota de 17
de julho “condena o lançamento de foguetes e morteiros de Gaza contra
Israel” e, ao mesmo tempo, deplora “o uso desproporcional da força” por
parte de Israel.
Em comunicado de 23 de julho e tendo em vista a intensificação do
massacre de civis, o Itamaraty considerou “inaceitável a escalada da
violência entre Israel e Palestina” e, uma vez mais, condenou o “uso
desproporcional da força” na Faixa de Gaza. Na esteira dessa percepção, o
Brasil votou a favor da resolução do Conselho de Direitos Humanos da
ONU (somente os Estados Unidos estiveram contra) que condena as “graves e
sistemáticas violações dos Direitos Humanos e Direitos Fundamentais
oriundas das operações militares israelenses contra o território
Palestino ocupado” e convocou seu embaixador em Tel Aviv para consultas.
A chancelaria de Israel afirmou que o Brasil “está escolhendo ser parte
do problema em vez de integrar a solução” e, ao mesmo tempo, qualificou
nosso país como “anão” ou “politicamente irrelevante”.
É evidente que o governo brasileiro não busca a “relevância” que a
chancelaria israelense tem ganhado nos últimos anos. Menos ainda a
“relevância” militar que está sendo exibida vis-à-vis contra populações
indefesas.
Não é muito difícil entender, igualmente, que está cada dia mais
complicado ser “parte da solução” neste trágico contencioso. Foi o que
rapidamente entenderam o secretário de Estado norte-americano, John
Kerry, e o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, depois de suas
passagens por Tel Aviv, quando tentaram sem êxito pôr o fim às
hostilidades.
Como temos posições claras sobre a situação do Oriente Médio –
reconhecimento do direito de Israel e Palestina a viverem em paz e
segurança – temos sido igualmente claros na condenação de toda ação
terrorista, parta ela de grupos fundamentalistas ou de organizações
estatais.
Estive, mais de uma vez, em Israel e na Palestina. Observei a
implantação de colônias israelenses em Jerusalém Oriental, condenadas
mundialmente, até por aliados incondicionais do governo de Tel Aviv. Vi a
situação de virtual apartheid em que vivem grandes contingentes de
palestinos. Constatei também que são muitos os israelenses que almejam
uma paz duradoura fundada na existência de dois Estados viáveis,
soberanos e seguros.
É amplamente conhecida a posição que o Brasil teve no momento da
fundação do Estado de Israel. Não pode haver nenhuma dúvida sobre a
perenidade desse compromisso.
Temos reiterado que a irresolução da crise palestina alimenta a
instabilidade no Oriente Médio e leva água ao moinho do fundamentalismo,
ameaçando a paz mundial. Não se trata, assim, de um conflito regional,
mas de uma crise de alcance global.
É preocupante que os acontecimentos atuais na Palestina sirvam de
estímulo para intoleráveis manifestações antissemitas, como têm ocorrido
em algumas partes, felizmente não aqui no Brasil.
A criação do Estado de Israel, nos anos quarenta, após a tragédia do
Holocausto, foi uma ação afirmativa da comunidade internacional para
reparar minimamente o horror provocado pelo nazi-fascismo contra judeus,
ciganos, homossexuais, comunistas e socialdemocratas. Mas o fantasma
do ressurgimento ou da persistência do antissemitismo não pode ser um
álibi que justifique o massacre atual na Faixa de Gaza.
O Brasil e o mundo têm uma dívida enorme para com as comunidades
judaicas que iluminaram as artes, a ciência e a política e fazem parte
da construção da Nação brasileira. Foi esse sentimento que Lula
expressou em seu discurso, anos atrás, na Knesset, quando evocou, por
exemplo, o papel de um Carlos e de um Moacir Scliar ou de uma Clarice
Lispector para a cultura brasileira. A lista é interminável e a ela se
juntam lutadores sociais como Jacob Gorender, Salomão Malina, Chael
Charles Schraier, Iara Iavelberg, Ana Rosa Kucinski e tantos outros.
Nunca os esqueceremos.
(*) Marco Aurélio Garcia é assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais