sexta-feira, 25 de julho de 2014

Seis razões para defender Fernando Haddad




Carta Maior, 25/07/2014

Seis razões para defender Fernando Haddad



Por
Erminia Maricato





Considerando o histórico da cidade de São Paulo, não ter uma “raposa guardando o galinheiro” já significa uma grande vantagem. É claro que a defesa de Fernando Haddad não pode se esgotar no mal que o prefeito deixa de fazer como os assaltos costumeiros que essa cidade tem vivido ao longo de sua vida, com exceção de alguns períodos. No entanto, esse argumento não é pouco importante para iniciar estas linhas.

Vamos começar lembrando as forças que intensificaram seu comando sobre as cidades brasileiras nos últimos anos. Dificilmente, no reino do analfabetismo urbanístico (e tantos outros analfabetismos que caracterizam a dominação da informação na sociedade brasileira), os moradores de São Paulo se dão conta da articulação de interesses daqueles que a transformam em um grande negócio. A tragédia urbana que vivemos cada dia não é fruto do acaso. O exemplo que salta aos olhos são as obras viárias que mais desorganizam do que organizam a mobilidade na metrópole. A cada 10 ou 15 anos, uma confluência de interesses  impõe aos fundos públicos uma lista de obras viárias de orientação absolutamente questionável para o desenvolvimento urbano mas funcional para abrir espaço para a especulação imobiliária e para os automóveis. Empreiteiras, mercado imobiliário e indústria automobilística, ligados ao financiamento de campanhas eleitorais, desenham mais as cidades do que os Planos Diretores.
 


A grande mídia, engordada por anúncios publicitários de imóveis e automóveis, insistentemente repete que “falta planejamento urbano”. A relação entre mobilidade e uso do solo é o nó górdio do planejamento urbano como insistem congressos históricos de urbanistas pelo mundo afora. Mas dominar a produção da cidade real subordinando determinados interesses para cumprimento de bem intencionados planos está na esfera da política e não do planejamento. Desde que os bondes foram banidos da cidade, na primeira metade do século passado, seguindo pressão do transporte sobre rodas, de inspiração norte-americana, São Paulo tem sido objeto de obras rodoviaristas que priorizam o transporte individual.

Poderíamos fazer um balanço a partir do plano de Avenidas do prefeito Prestes Maia que impermeabilizou vários e importantes fundos de vale (calhas naturais de drenagem), mas lembremos de um evento um pouco mais recente: um assalto à cidade previsto nas 8 mega obras viárias iniciadas na gestão municipal de Janio Quadros (1985) – que contemplavam todas as grandes empreiteiras nacionais, enquanto o transporte coletivo permanecia em segundo plano. Parte delas (túneis, viadutos, pontes, abertura de vias) foi paralisada na gestão de Luiza Erundina (que sofreu verdadeiro massacre midiático) e depois retomada, e ampliadas em número, na gestão seguinte de Paulo Maluf.

Um exemplo mais recente, modelo de insustentabilidade ambiental, pode ser encontrado no bilionário alargamento da Marginal do Rio Tietê que ampliou a impermeabilização da margem do rio e contrariou manifestação pública de mais de 30 doutores em planejamento urbano. Como foi previsto pelos urbanistas, essa obra não entregou o que prometia e hoje temos ali mais espaço para o congestionamento de veículos que, parados, contribuem para poluir ainda mais o pouco saudável ar da cidade. Poderíamos lembrar outras intervenções que sangram os fundos e contrariam o interesse público como a extensão das Avenidas Faria Lima, Berrini e Águas Espraiadas resultante de uma clara articulação de capitais (e governos municipais de plantão) que foi estudada em vários trabalhos acadêmicos.

A lista de exemplos poderia ser engordada pelos projetos que, neste momento de boom imobiliário, assolam todas as cidades brasileiras prometendo um cenário glamoroso, revitalizado, renovado, e coisas semelhantes mas que entregam mais especulação, segregação privatização do espaço público e carência habitacional para a maioria da população, exatamente aquela que não alcança os  preços explosivos. Aí estão, entre outros,  o “Novo Recife”, a “Nova BH”, o “Porto Maravilha” (este no Rio de Janeiro). Mas aí está também o Arco do Futuro que, na atual correlação de forças dificilmente escapa das forças hegemônicas.    

São Paulo, na segunda década do século XXI, vive um quadro de intenso congestionamento e forte processo de especulação imobiliária. Os congestionamentos batem recordes a cada dia e o aumento dos imóveis passou, entre 2009 e 2012, de 154% o M2. Como repetiu a Revista Exame na capa de recente número: “É a maior alta do mundo”. Trata-se de um processo que desestrutura a cidade e expulsa os mais pobres devido à alta dos aluguéis. Ela se torna ingovernável.

Assim como no período de Luiza Erundina, Fernando Haddad tem sido apontado como responsável por problemas que são de natureza metropolitana, mais do que municipais. Parte da população que trabalha em São Paulo mora em outros municípios. Pesquisa recente do SEADE mostrou que 20% das empregadas domésticas que trabalham no município moram fora dele. O transporte, reconhece o levantamento, é um dos maiores problemas vividos por essas mulheres que estão entre os trabalhadores de mais baixos salários. Em alguns casos, até 30% das viagens de um município, como Taboão da Serra, da Região metropolitana, tem como destino a cidade de São Paulo. Da mesma forma, parte dos manifestantes que ocupa terrenos em São Paulo, premida pelo insustentável aumento dos aluguéis e má qualidade dos transportes, vem de outros municípios. Mobilidade tem tudo a ver com habitação.

Ao invés de ampliar as alternativas de habitação o atual boom imobiliário, em ambiente de disputa desregulada pela terra urbanizada expulsa os mais pobres para mais longe. Assim como os principais problemas do município de São Paulo são metropolitanos, o mesmo acontece com os demais municípios da Região Metropolitana. Com a palavra os prefeitos dos municípios que, na região metropolitana, tem papel de dormitório da população trabalhadora pobre. A Região Metropolitana de São Paulo, uma das maiores manchas urbanas contínuas do mundo, é gerida como se fosse uma colcha de retalhos, composta de 39 municípios, cada um apontando para um rumo com seu prefeito e Câmara Municipal defendendo interesses pontuais.
A coerência indispensável da gestão metropolitana não é cobrada por ninguém. Problemas como enchentes, mobilidade, saneamento, habitação, saúde, educação, meio ambiente dependem, obviamente, de abordagem metropolitana ou até macrometropolitana se atentarmos para os corredores que ligam são Paulo a Santos e Campinas. A Constituição Brasileira de 1988 remeteu a questão metropolitana para a definição das constituições estaduais e gestão dos governos estaduais. Mas quem se interessa pela complexa administração das metrópoles? Quem cobra os diversos governos estaduais pelo desprezo em relação a essa importante tarefa?   

Após o alerta para o cenário das metrópoles desgovernadas vamos apontar os pontos positivos do atual governo municipal de São Paulo:

MOBILIDADE - Quando Haddad foi eleito, a cidade passava pela iminência de mais uma armação que listava uma relação de novas obras, embora estivesse fortemente endividada. Felizmente, as jornadas de junho de 2013 colocaram a mobilidade urbana na agenda política brasileira. Enquanto as cidades se entupiam de automóveis o transporte coletivo se afundava em ruínas impondo um sacrifício imenso e diário à população. Pressionado pelas jornadas de 2013, o prefeito Fernando Haddad decidiu cancelar o início das obras de um túnel, que o prefeito anterior se apressou a deixar licitadas para seu sucessor executar. O túnel, que fazia parte da Operação Urbana Águas Espraiadas, tinha orçamento inicial de R$ 1,5 bilhões (que poderia exceder a arrecadação prevista pela Operação) e não admitia tráfego de ônibus.

Para enfrentar a imensa crise de transporte na cidade, o governo municipal reagiu, no início do primeiro ano, com a solução de curto prazo que estava à mão: os corredores de ônibus, dando clara prioridade ao transporte coletivo sobre o individual. Parece simples e óbvio. O Brasil é reconhecido internacionalmente pelos projetos de corredores de ônibus e o  transporte coletivo é prioridade em todos os Planos Diretores, todas as campanhas eleitorais, todos os programas de governos, mas infelizmente não o é na realidade da gestão das cidades. Foi dado início à implantação imediata de novos corredores, sem grandes obras ou gastos num primeiro momento. Os dados mostram que o tempo de muitos percursos de transporte coletivo já foi reduzido embora os congestionamentos continuem extravasando as centenas de quilômetros como não podia deixar de ser já que sua compra foi potencializada pela exoneração dos impostos definida como estratégia federal de retomada do crescimento econômico.

COMBATE À CORRUPÇÃO - Também no começo da gestão criou a Controladoria Geral do Município, que desvendou um esquema milionário de corrupção envolvendo funcionários públicos na aprovação de projetos e emissão de alvarás. Corrupção e especulação andam de mãos dadas. Poucos temas são mais importantes do que o achaque aos cidadãos por meio do uso da máquina administrativa pública, nos governos. A grande mídia, aparentemente muito sensível a esse tema, não só não deu a importância devida ao fato, como tentou incriminar o próprio governo. A Controladoria Geral do Município foi criada legalmente bem como a carreira de controlador com 100 cargos iniciais.

PLANEJAMENTO - Há um claro esforço de planejamento e enfrentamento dos problemas financeiros como mostram o Plano de Metas e o planejamento financeiro apresentados à público no Conselho da Cidade de São Paulo. O PLANO DIRETOR foi bastante discutido e constitui uma peça importante para o futuro do município, caso seja implementado e não tenha o destino do Plano de 2002. Detalhes inovadores de desenho urbano poderão, se implementados e continuados, assegurar um padrão de maior qualidade da mobilidade urbana e dos espaços públicos.  A cidade recuperou a zona rural, ao sul do município, com a finalidade de a) dar sequencia e capacitar para a produção orgânica os pequenos produtores de alimentos, b) desenvolver atividade turística e c) preservar a mata nativa visando proteger a produção de água na Bacia do Capivari- Monos. Sim, São Paulo tem mata nativa de alta biodiversidade. Quantas cidades no mundo podem apresentar essa condição? Mas, sim, há pressões para destruir o que resta desse patrimônio sob a forma de matas e águas. Que o digam os ativistas do movimento AEROPORTO EM PARELHEIROS, NÃO!, que juntamente com os militantes do MTST fizeram a legítima pressão sobre a Câmara Municipal para aprovação do substitutivo do PDE.
Se os moradores de São Paulo não conhecem o paraíso natural que fica próximo de suas casas é devido ao padrão de alienação que predomina na relação entre a sociedade e seu território, no Brasil. Como urbanista dificilmente deixaríamos de achar detalhes a serem melhorados neste PDE: gostaríamos de ver a Cota de Solidariedade restrita ao pagamento em terra, gostaríamos de ter certeza de que o aeroporto privado não vai se instalar em Parelheiros, gostaríamos de ver mais ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social que de fato garantissem um mix de renda em bairros centrais desta cidade que é uma das mais desiguais da América Latina. Mas a simples aprovação do Plano já é um avanço e cabe à parcela da sociedade que o apoiou ficar alerta para sua implementação .

Outras medidas como a lei que prevê o alargamento das vias que receberão corredores de ônibus e ciclovias também podem garantir um futuro melhor para a cidade. O mesmo acontece com as iniciativas que buscam modificar a lei do zoneamento tornando-a mais original, inovadora e adequada para nossa realidade urbana. Recuperar o espaço público e a calçada para os pedestres é uma das mais importantes tarefas dessas propostas.

PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA - A criação das secretarias de Direitos Humanos, da Igualdade Racial e de Política para as Mulheres; a reativação de 9 Conselhos Temáticos como Saúde, Educação, Habitação, entre outros e a instalação do Conselho da Cidade de São Paulo que reúne representantes dos moradores de rua aos empresários da construção civil num mesmo espaço revela a confiança na participação social e no jogo aberto.

HUMANIZAÇÃO E DIÁLOGO - A Operação Braços Abertos revelou uma nova forma de tratar os dependentes de droga resultante da articulação de vários órgãos de governo que raramente trabalhavam juntos. Com essa articulação, uma favela que assustava a cidade foi desmontada pacificamente em um dia e seus moradores, doentes, dependentes de droga, encaminhados para pensões e tratamento voluntário.

A ampliação dos centros de triagem de reciclados com a organização de cooperativas de catadores têm efeito no meio ambiente diminuindo o lixo descartado e gerando trabalho e  renda com a reciclagem.

A originalidade e amplitude da política de cultura, envolvendo jovens na periferia com a arte e a cultura são iniciativas que mostram a forma mais eficiente de combater o crime e a violência na cidade. O comitê Juventude Viva reúne 25 gestores voltados para os jovens e as jovens, especialmente negros, das periferias urbanas. O resultado dessas ações dependem de sua continuidade, portanto não são decorrentes do calendário eleitoral.

SEGURANÇA ALIMENTAR - A conquista do PAA para o município de São Paulo (Programa de Aquisição de Alimento do Governo Federal) promete melhor alimentação nas escolas e outros órgãos públicos bem como garante sobrevivência para os produtores agrícolas que tem como permanecer produzindo nas bordas da metrópole. O meio ambiente também se beneficia com a manutenção da produção agrícola, especialmente de produtos perecíveis sem agrotóxicos.

Alguns dias atrás eu diria que o maior feito do prefeito estava na escolha dos subprefeitos. Ao invés das indicações costumeiras de vereadores o prefeito nomeou, contra a tendência geral, técnicos de carreira, arquitetos e engenheiros (e não militares aposentados como muitos, na gestão anterior), conhecedores da cidade e da máquina municipal. Essa impessoalidade no critério nega a tendência patrimonialista brasileira, afirma o profissionalismo. Aparentemente a aprovação do Plano Diretor custou a indicação de 12 subprefeitos. Muitos argumentam que a competência técnica não garante necessariamente um bom gestor assim como o critério da indicação de aliados não implica necessariamente na privatização da máquina pública.  Como sempre, a melhor solução está na cidadania ativa acompanhando e cobrando o subprefeito que, afinal, está mais próximo.

Não se trata aqui de fazer uma relação de realizações da prefeitura de São Paulo na gestão Fernando Haddad pois isso é tarefa do setor de comunicação. Este, por sinal, poderia ser mais eficiente embora seja preciso reconhecer que está difícil romper o muro midiático.

Tratou-se isto sim, sem a preocupação que exigiria um levantamento exaustivo, de lembrar que há uma aposta no diálogo, nos laços comunitários, no desarmamento, na expressão da cultura social, no respeito aos direitos legais e ao meio ambiente.

Mas é preciso lembrar também que as conquistas possíveis numa máquina municipal como essa, nesse momento, tem limites. Elas dependem da herança recebida, do contexto encontrado e da correlação de forças. A herança é terrível e o contexto é adverso se considerarmos o endividamento do município e o massacre midiático. Os valores conservadores são apregoados sem pudores especialmente pela televisão que constitui canal de informação para 97% da população. Nem o partido do prefeito e, por vezes, nem o próprio time dos aliados que integram o governo saem à luta na defesa do governo. De um modo geral, não há respostas aos ataques midiáticos e nem parece haver uma estratégia alternativa de comunicação com a maioria da sociedade que é objeto das políticas municipais.

Não me refiro aqui à luta pelo poder eleitoral, que não deixa de ter sua importância, mas à luta por uma política urbana que a sociedade tome como sua e que a torne sujeito  da história da cidade, o que é muito mais importante. Temos a rara oportunidade de exercitar a democracia urbana em São Paulo em que pese a grande dificuldade da polícia lidar com ela. E ela não se dá sem conflitos porque há muita coisa em jogo. A expressão de conflitos é natural na vida democrática.

Apenas o pensamento único não quer reconhecer essa evidência. 

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