Carta Maior, 28/01/2014
Tem um fusquinha no meio do caminho
Por Saul Leblon
Acontecimentos fortuitos muitas vezes sintetizam uma época melhor que as ações deliberadas de seus personagens.
Quando Maria Antonieta – afirma-se - num rasgo de espontaneidade aconselhou a plebe rude a optar por brioches à falta do pão, revelou-se por inteiro o abismo entre a rua que acabara de derrubar a Bastilha e a monarquia agonizante de Luiz XVI.
O general João Figueiredo, ditador entre 1979 e 1985, sintetizou o apreço do regime pela gente brasileira esponjando-se na língua das estrebarias: ‘Prefiro o cheiro de cavalo ao de povo’.
Na largada da campanha tucana em 2010, Eliane Cantanhede, colunista da Folha, definiu-se melhor que seus críticos ao explicar: “O PSDB é um partido de massa , mas uma massa cheirosa’.
O Fusquinha 75 incendiado na avenida da Consolação, em SP, no sábado (25/01), revelou uma incomoda dimensão dos protestos contra a Copa de 2014.
Black blocs que interrompiam a via atribuem o acidente ao piloto, que teria avançado sobre um bloqueio de fogo com crianças a bordo.
Itamar Santos, serralheiro pobre de 55 anos, rejeita o papel de vilão.
Um colchão em chamas, disse ao blog da Cidadania, foi atirado sobre o seu carro quando avançava para escapar de protestos, teoricamente, em defesa de brasileiro pobres como ele.
O Fusquinha no meio do caminho é a pedra no sapato dos que oferecem destinos redentores à sociedade sem combinar com ela - nem dizer como se chega lá.
Contrapor objetivos distintos aos do governo, qualquer governo, é legítimo.
Sem adicionar aos enunciados as linhas de passagem capaz de materializá-los, porém, rebaixa-se a política ao plano do bate-boca inconsequente.
Dispersa em vez de organizar.
A oposição conservadora também é useira e vezeira na atividade exclamativa.
Desprovidos de compromissos com a sorte da nação e de sua gente, seus economistas, egressos em geral do vale tudo financeiro, colecionam receitas de como tocar fogo no país, indiferentes aos ocupantes dos Fusquinhas no meio do caminho.
A instabilidade cambial que ronda as nações em desenvolvimento nesse momento, antes de preocupá-los é vista como um bom aditivo para queimar caravelas.
Move-os a esférica certeza de que o legado recente é incompatível com o futuro recomendado ao país.
A saber: aquele nascido de uma purga ortodoxa, capaz de limpar o tecido econômico de qualquer vestígio de soberania, interesse público e justiça social.
O problema dessa lógica é o bendito Fusquinha atrapalhando o tráfego das boas causas.
Fortemente ancorada na ampliação do mercado de massa, a economia brasileira avançou nos últimos anos apoiada em ingredientes daquilo que a emissão conservadora denomina ‘Custo país’.
Em tempos de interdições inflamáveis, nunca é demais recordar.
O salário mínimo teve una elevação do poder de compra da ordem de 70% desde 2003, acima da inflação; 16 milhões de vagas foram abertas no mercado de trabalho, regidas pela regulação trabalhistas da era Vargas; políticas sociais destinadas a mitigar a fome e a miséria atingem mais de 55 milhões de pessoas atualmente.
No Fórum Social Temático, em Porto Alegre, a ministra Tereza Campello deu um exemplo do que está subjacente a estatísticas para as quais o vocabulário conservador reserva apenas uma palavra: assistencialismo.
Pela primeira vez na história do país, disse Campello, uma geração de crianças pobres, que agora completa 12 anos, nasceu e cresceu livre da fome.
O blackboquismo nas suas variadas versões dá de ombros.
O mesmo trejeito merece o cinturão de segurança de US$ 375 bilhões em reservas internacionais acumuladas no período de fastígio das commodities –‘ciclo desperdiçado pelo governo do PT’, assevera-se.
Não fosse ele, o Brasil seria presa fácil da volatilidade internacional desse momento, com consequências sabidas e equivalentes às da tripla quebra no ciclo tucano.
Mas a blindagem figura como um retrocesso do ponto de vista de quem acredita que as conquistas dos últimos 12 anos devem ser corroídas para reduzir o custo do investimento privado e aliviar o ‘gastança’ fiscal.
Aí sim, sobre os escombros, brotaria uma nova matriz de crescimento ‘mais leve, ágil e competitiva’, temperada por um corte geral de tarifas de importações.
O diabo, de novo, é o Fusquinha na contramão do schumpeterismo blanquista.
Dentro dele, 40 milhões de brasileiros saídos da pobreza extrema e outros tantos que ascenderam na pirâmide social formam a vértebra decisiva de um dos mais cobiçados mercados de massa do planeta.
Os jovens da chamada classe C, por exemplo, tornaram-se majoritários no mercado de consumo.
Em 2013 eles realizaram compras no valor de quase R$ 130 bi - R$ 50 bi acima do valor consumido pela juventude dos segmentos A e B (Data Popular).
Juntas, as faixas de renda C, D e E reúnem 155 milhões de pessoas, o que faz da demanda popular brasileira, sozinha, o 16º mercado consumidor do planeta.
É esse o recheio do Fusquinha que avança na contramão da dupla barreira, a incendiária e a purgativa, que sacode o debate do passo seguinte do país.
Reconheça-se, o tráfego social e econômico brasileiro tornou-se bem menos linear sob a pressão do fluxo de demandas, prazos e requisitos para o seu atendimento.
Cada urgência tem um custo e quase nunca ele é neutro em relação a outra.
Nenhuma novidade.
Desequilíbrio e desenvolvimento são irmãos siameses – exceto quando se entende por desenvolvimento a mera concentração da riqueza nas mãos dos endinheirados.
O Brasil talvez tenha avançado demais para regredir a essa modalidade de paz do salazarismo social.
As multidões que invadiram a economia dentro do Fusquinha não aceitam dar meia volta na estrada da ascensão experimentada nos últimos anos.
Uma nova macroeconomia do desenvolvimento terá que ser construída em negociação permanente com elas.
Ou contra elas – correndo-se o risco de ser atropelado por elas.
A contingência não incomoda apenas o blackbloquismo nas suas variantes sabidas.
Significa também que a vitória progressista em 2014 somente será consistente se ancorada na decisão política de promover a mutação do Brasil que se tornou majoritário na pista do consumo, em um Brasil hegemônico na repactuação de projeto de nação para o século 21.
Carta Maior, propositadamente, insiste em repetir: para isso é preciso – ao contrário do que fazem os shoppings aos sábados - alargar as portas da democracia e criar os instrumentos que forem necessários para sustentá-la.
Não adianta interditar o tráfego. Nem tacar fogo no Fusquinha das demandas populares.
A ver
Carta Maior, 28/01/2014
Vai ter Copa. Não vai ter Copa. Anti-Copa. Como era previsível, o ano começa com a Copa do Mundo ocupando lugar destacado no debate público e midiático. Mais midiático do que público, no momento. É importante lembrar que a Copa do Mundo não é o acontecimento mais importante de 2014. Há quem ache que não vai ter Copa. Mas não há dúvida sobre outro fato: vai ter eleição. E os movimentos políticos em torno da Copa Mundial de Futebol estão todos subordinados, goste-se ou não, à eleição presidencial. Não é uma eleição presidencial qualquer. Ela define o futuro do maior país da América Latina e, de modo indireto, de todo o continente. Com o passar dos meses, essa agenda vai se impor ao debate político do país exigindo escolhas e definição de posicionamentos.
Os grupos, supostamente de esquerda, que tentam alimentar o movimento “Não vai ter Copa”, representam neste início de ano a grande esperança da oposição política e social ao governo federal para derrubar a popularidade da presidenta Dilma Rousseff, candidata à reeleição. A única coisa que foi capaz de derrubar a popularidade de Dilma foram os protestos de junho de 2013. Sem uma agenda política, social e econômica para o país, a oposição capitaneada pelo PSDB acompanha o desenrolar dos acontecimentos, apostando no quanto pior, melhor, e contribuindo para isso com a truculência policial onde governa, como ocorre atualmente em São Paulo. Essa é a receita para alimentar um clima de conturbação social nas ruas capaz de transformar a Copa num pesadelo para o atual governo. Com o passar do tempo, haverá muito pouco espaço para neutralidade e/ou ingenuidade nesta disputa. As peças estão se posicionando no tabuleiro e, no final, do ano, haverá um vencedor e um perdedor.
Há motivos legítimos para se protestar contra a Fifa e contra efeitos negativos da promoção desses mega-eventos, principalmente junto a setores mais pobres da população. Mas, paradoxalmente, podem ser justamente esses setores mais pobres os mais prejudicados, caso os partidários do caos na Copa (que é o que significa “não vai ter Copa”) triunfem. São esses setores os principais beneficiários de um conjunto de políticas públicas universalizantes, que caminham na contramão do que está se fazendo hoje no mundo. Em um debate realizado neste sábado, no Fórum Social Temático de Porto Alegre, a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, resumiu a importância estratégica dessas políticas e da transformação que ela está provocando na vida de milhões de brasileiros:
O Bolsa Família atinge hoje cerca de 50 milhões de pessoas e mobiliza um conjunto de outras políticas. Já são quase 12 anos de uma infância sem fome. A saúde das crianças melhorou em função do casamento do Bolsa Família com o Programa de Saúde da Família. Houve uma redução de 58% da mortalidade infantil causada por problemas relativos à desnutrição. O segundo impacto positivo é na educação, com a alteração da trajetória educacional das crianças. Essa alteração aparece nas taxas de aprovação. Os jovens do Bolsa Família tem um melhor desempenho escolar no ensino médio do que os jovens que não são beneficiários do programa. A taxa de aprovação dos alunos com Bolsa Família no ensino médio é de 79,7%, enquanto a dos alunos sem Bolsa Família é de 75,7%. Houve uma redução de 89% da extrema pobreza, lembrando que essa pobreza se concentra mais entre jovens até 15 anos.
É possível ser anti-Copa e a favor do Bolsa Família? Sim, em tese, é possível. Em tese, muitas coisas são possíveis. Mas, na política, a estrada entre o possível e o real é tortuosa e cheia de armadilhas. Objetivamente, o “não vai ter Copa” virou a bala de prata da oposição. Os grupos e movimentos que trabalham com esse objetivo tendem a se transformar rapidamente em linha auxiliar do conservadorismo brasileiro que quer acabar com o que chamam de “farra fiscal” provocada pelo conjunto de políticas públicas implementadas pelo Estado brasileiro, hoje. Esse diagnóstico tem a cara de uma chantagem? Pode até ser, mas, objetivamente, é disso que se trata. As chamadas “jornadas de junho” foram a única coisa capaz de fazer Dilma despencar nas pesquisas. Repita-se a dose agora, então, se possível em escala maior.
Um caminho para quem deseja protestar contra os desmandos da Fifa e contra, por exemplo, políticas de remoção forçada de populações, é pressionar os poderes públicos, em suas esferas municipal, estadual e federal, e tentar conquistar benefícios para os atingidos por esses efeitos negativos. É um caminho estreito, mas possível. Exige, entre outras coisas, disposição para o diálogo e para a articulação e organização política. Mas é estreito, pois esse caminho é habitado também por grupos que consideram o incêndio de fuscas, lixeiras e bancos públicos como tática revolucionária (sic). A atenção da mídia estará focada nestes grupos e qualquer fusca ou lixeira incendiada ganhará repercussão mundial.
No mesmo debate do qual participou a ministra Tereza Campello, no Fórum Social temático, o sociólogo Emir Sader advertiu para o desencontro que ocorreu entre o Fórum e a ideia do outro mundo possível:
“O outro mundo possível aparece no vídeo que vimos aqui sobre o Bolsa Família, está presente em políticas concretas no Brasil, na Bolívia, no Equador, na Venezuela. O Fórum errou quando, lá atrás, excluiu o Estado, os partidos e os governos de suas atividades. A ideia de uma sociedade civil global é uma ficção e a propalada autonomia dos movimentos sociais é autonomia em relação ao que mesmo? À política? Isso não funciona. Eu esperava um balanço mais crítico dos zapatistas que hoje estão isolados no Sul do México. Outro exemplo é do movimento do piqueteros na Argentina, que surgiu como uma grande novidade, abriu mão de fazer política e hoje simplesmente acabou”.
Os entusiastas das chamadas “revoluções interconectadas pelas redes” costumam minimizar as suas “conquistas” políticas até aqui: uma ditadura no Egito, a vitória da direita na Espanha (e a ascensão da extrema-direita em vários países da Europa), o desvio da atenção, no Oriente Médio, da luta do povo palestino. Obviamente, essas “revoluções” não são as únicas responsáveis por essas consequências, mas tem a sua parcela, sim. Não parece ser pedir demais que se dedique algumas horas a essa reflexão. Inventar novos conceitos pode ser divertido, às vezes pode ser útil, mas, outras vezes, pode ser apenas uma invenção mal-sucedida. O voluntarismo e o ultra-esquerdismo já causaram grandes estragos na história da esquerda. A América Latina conhece bem essa história. Cabe, aqui, lembrar as palavras do presidente do Uruguai, José Mujica, sobre a arte de governar:
(…) No sentido mais profundo é possível que governar seja lutar por tornar evidente o que ainda não o é, significa olhar muito longe. Isso tem um preço: não ser entendido, não ser acompanhado, não ser compreendido. É natural que as pessoas estejam preocupadas com seu presente imediato. Elas querem ganhar mais, viver melhor. É parte do modelo e desta etapa da civilização. Há outra discussão que tem a ver com o desperdício desse modelo porque, no ritmo atual, não há recursos suficiente para todos (…)”.
“(…) É preciso fazer as coisas enquanto a sociedade real funciona, ainda que ela seja capitalista (e o é). Tenho que cobrar impostos para mitigar as enormes desigualdades sociais e, ao mesmo tempo, não posso cair no conformismo crônico de que simplesmente reformando o capitalismo iremos a alguma parte. Devo tentar outra coisa distinta, mas evitar a colisão, porque o choque é sacrifício humano. Não se pode ficar 30 ou 40 anos repetindo a palavra revolução sem que as pessoas tenham o que comer. Não podemos substituir as forças produtivas de um dia para outro, da noite para o dia, nem em dez anos. São processos que exigem inteligência. Precisamos lutar no interior das universidades para a multiplicação do talento humano. Mas, ao mesmo tempo que lutamos para transformar o futuro, é preciso manter o velho funcionando porque as pessoas precisam viver. É uma equação difícil. O desafio é imenso (…)”.
É isso. A arte de governar é cheia de limites, contradições e obstáculos. Ela exige escolhas e definição de prioridades. E a coisa mais importante este ano, para milhões de pessoas mais pobres em toda a América Latina, é a eleição presidencial no Brasil. Não se trata de nenhuma questão nacionalista de ser contra ou a favor do Brasil. Trata-se de uma disputa que influenciará a vida de milhões de pessoas em toda a América Latina, da zona sul de Porto Alegre ao altiplano da Bolívia. Se alguém tem alguma dúvida disso que escute a opinião de Evo Morales, Rafael Correa, Nicolas Maduro, Fidel Castro e de outros líderes latino-americanos a respeito.
Trata-se de uma eleição que define o futuro de políticas públicas que estão mudando a vida de milhões de pessoas. É disso que se trata e reconhecer isso não implica, sob aspecto algum, negar que existem problemas sérios a serem enfrentados ou não reconhecer o direito de manifestação para quem quer que seja.
Mas é impossível não reconhecer também que a única possibilidade de sucesso para a oposição hoje é criar um clima de caos durante a Copa. Pouco importa as designações que nos auto-atribuamos (se somos de esquerda, petista, antipetista, psolista ou anarquista). As nossas ações e escolhas nos colocarão em uma posição nesta disputa. Que cada um faça suas escolhas e se responsabilize por elas depois. E, ao fazer isso, talvez seja prudente ter em mente que o caminho entre o otimismo da vontade e a demência da razão pode ser muito curto.
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