sábado, 18 de janeiro de 2014

De rolézinhos e rolexzinho​s

 




Carta Maior, 18/01/2014

De rolézinhos e rolexzinhos

 
Por Mauro Santayana



O setor de shoppings centers se encontra acuado, nas grandes cidades brasileiras, pelo fenômeno do “rolézinho”. A situação chegou a tal ponto, que, contrariando o direito de livre expressão, já há centros comerciais pedindo ao Facebook que retire do ar páginas que envolvam esse tipo de encontro, que convoca, pela internet, centenas de jovens a comparecer, em data e horário específicos, a endereços-alvo previamente determinados.

A justiça tem concedido liminares que permitem aos shoppings barrar a entrada desses jovens e impedir que os encontros se realizem em suas dependências.

Movimentos sociais de diferentes tendências, alguns mais tradicionais, e outros surgidos, como os Black Blocks, nas manifestações de junho, tacham as medidas adotadas pelos shoppings de racismo e exclusão e ameaçam convocar “rolezões sociais”, já neste fim de semana, para reagir às medidas.

Em junho de 2013, estabeleceu-se, nas ruas e  redes sociais improvável aliança entre “rolexzinhos”, que gravavam suas mensagens contra o governo  e a Copa do Mundo usando como cenário a praça de alimentação de shoppings, e futuros “rolezinhos” da “periferia”.
A periferia pode frequentar shopping, desde que seja identificada tão logo entre, e fique permanente sob o olhar de vigias, e em conveniente minoria. E continue gastando como tem gasto a classe C nos últimos anos, responsável pela explosão do faturamento do comércio de móveis, informática e eletrônicos, por exemplo. 

O problema é que os “rolézinhos” não estão satisfeitos com isso. Eles querem “zoar”, termo que antes estava ligado a ridicularizar, brincar com o outro, e que hoje está sendo substituído, cada vez mais, pelo sentido de “incomodar”.

Os “rolézinhos” não querem apenas “dar um rolé”, expressão que deu origem ao termo, ou se encontrar, conversar, namorar. Eles querem assustar, pressionar, chocar, o pacato cidadão que frequenta shopping, em busca de sua quota cotidiana ou semanal de lazer, consumo, praça de alimentação e ar condicionado. Querem querem ocupar física e maciçamente todos os espaços, dizer aos frequentadores comuns, e aos rolexzinhos - “olha, nós somos mais fortes, mais numerosos  e queremos ter as mesmas coisas, e fazer as mesmas coisas, que vocês”.

Há que se ver como alguns auto-designados representantes da “classe média” - que às vezes nem toma conhecimento de sua existência - irão se manifestar, na internet, com relação ao assunto. A direita terá coragem de defender, abertamente,  a invasão dos shoppings centers pela periferia? Ou vai torcer, secretamente, para que esses encontros, e a polêmica em torno deles, dê origem a nova onda de protestos?

Já se identifica, entre os “rolézinhos”, a infiltração de indivíduos cujo interesse vai além da reivindicação social, coisa fácil de ocorrer, nesse tipo de reuniões, maciça e, às vezes, anonimamente convocadas por meio de redes sociais.    

A ABRASCE, que reúne os shoppings centers, precisa começar a entender os “rolézinhos”, a partir de outra perspectiva, que não seja a mera repressão, o apelo à polícia e ao judiciário. Se cada shopping tratasse todos os frequentadores da mesma forma, independente de sua cor ou vestimenta, e tivesse uma estrutura de lazer ou de cultura na periferia, para sinalizar às comunidades de menor renda que o setor reconhece sua existência e direito à dignidade, em um contexto social tradicionalmente desigual, talvez se pudesse estabelecer um patamar maior de respeito e de auto-estima para esses cidadãos.

É uma pena, no entanto, que o elemento que detonou todo esse processo tenha sido, primeiramente, o consumo. 

Se extrairmos da multidão um ou outro líder, e os “movimentos” sociais “organizados”, que, muitas vezes, são apenas grupos de ação, momentaneamente reunidos pela internet, veremos que há muito em comum entre os “rolézinhos” e “rolexzinhos”.Não existe diferença entre a conversa estéril e esnobe dos “rolexzinhos”, em volta de seus copos de uísque, na happy hour na Avenida Paulista e as letras de funk ostentação que embalam os “rolézinhos” nos bares e bailes da periferia.
São dois lados da mesma moeda, dois extremos de uma sociedade na qual um par de tênis pode custar mais que dez ou quinze livros novos, marcas de carros são cantadas em prosa e verso, e a maior parte das pessoas desperdiça seu tempo correndo atrás do fugaz e do vulgar, sem conseguir deixar sua marca no mundo, ou ter tido, muitas vezes,  a menor consciência política ou espiritual do que representa estar aqui.   
Conquistará o futuro quem souber unir rolexzinhos e rolezinhos em um projeto comum de nação, e isso só ocorrerá com a redução da desigualdade e a melhora da educação. Quem sabe, quando contarmos, no Brasil, com um número equivalente de excelentes universidades e centros de pesquisa, ao que temos, agora, de grandes centros comerciais - cerca de 500 - com o mesmo volume de investimentos e a mesma eficiência e garra, na busca e transmissão do conhecimento, com que hoje se persegue o lucro nesses palácios de aço e cristal.

A sociedade brasileira, com seus “rolézinhos” e “rolexzinhos”, precisa entender que o Brasil necessita mais de Sapiens Centers, que de Shopping Centers, para poder avançar.


 

Rolezinhos: os pobres estão afrontando sua invisibilidade

 
Por Saul Leblon



São Paulo - A socióloga Valquíria Padilha não se surpreendeu com o fenômeno dos rolezinhos. Professora de Sociologia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade , na USP de Ribeirão Preto, ela lançou em 2006 um livro premonitório, “Shopping Center: a catedral das mercadorias” (Boitempo, 2006). Nele sublinha o papel segregacionista desses bunkers do consumo que, em sua opinião jamais serão democratizados. Autora também de outras obras que remetem diretamente à busca de identidade implícita na adesão da juventude pobre aos rolezinhos (são dela: “Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito” (Alinea);  “Dialética do lazer” (organizadora; Cortez) , Valquíria desabafa: a identificação de cidadania com consumo ‘é o fracasso da humanidade’. A seguir, trechos de sua entrevista a Carta Maior

Carta Maior: Shopping center -consumismo -desigualdade e exclusão urbana  interligam-se há muito tempo nas grandes cidades brasileiras. Por que só agora a coisa explodiu na forma de rolezinhos?

 
Valquíria: Eu venho afirmando que os shopping centers são espaços privados travestidos de públicos desde que publiquei o meu livro “Shopping Center: a catedral das mercadorias” (Boitempo), em 2006. São espaços de compras que segregam, impedindo a entrada de quem não tem poder aquisitivo ou de quem não se adequa ao ambiente dos shoppings – seja pelo modo de se vestir ou pelo modo de agir. Recebi muitas críticas por afirmar isso. Agora estamos vendo as provas: pobres não devem compartilhar os shoppings centers com os ricos.

CM:  O marketing da segurança dos shoppings traz a segregação no DNA?

Valquíria: Eles funcionam como os clubes privados, as escolas privadas, os hospitais privados: são bunkers onde as classes mais altas devem se sentir protegidas do mundo real que fica do lado de fora. Isso só é possível com a exclusão de todos aqueles que supostamente significam alguma ameaça, ou seja, que tragam a realidade do lado de fora – a desigualdade social - para essa ilha da fantasia. Shoppings são templos do consumo para poucos. Sempre foi assim no Brasil, desde os anos 1960-70 quando tivemos nossos primeiros shoppings.

CM- O problema não está só no Shopping...

Valquíria- Tudo isso ganha um contorno próprio quando analisamos a organização urbana de nossas cidades brasileiras - indubitavelmente pautada na segregação social e econômica: há os espaços de quem tem dinheiro e há os espaços de quem não tem. Quem não tem normalmente trabalha para os que têm. No caso dos shoppings, os vizinhos ou parentes dos jovens que fazem os chamados “rolezinhos” são os que têm os empregos mais precários: faxineiros e seguranças terceirizados. Como mão de obra barata, servem, sempre servem!  O shopping é mais um dos espaços das cidades brasileiras reservados para o deleite das classes média e alta - servidas pelas ‘classes baixas’....

CM- Retomando, por que o protesto só acontece agora justamente quando se dá a emergência da chamada ‘classe média popular’?

Valquíria- O fato de supostamente uma parcela dos pobres brasileiros estarem aumentando seu poder de compra não significa que eles tenham adquirido o direito de compartilhar os mesmos espaços dos ricosEles não possuem o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chamaria de “capital cultural”. Dito de outra forma, não basta ter mais dinheiro para ganhar o sentimento de pertença nos espaços dos ricos.
CM-  Seria uma evolução natural, a exemplo dos protestos de junho de 2013, de quem não quer ser apenas um mercado de artigos populares e reivindica cidadania plena?

Valquíria - Pensar em acesso aos shopping centers como acesso à cidadania é um grande engano. Sobretudo se entendermos que ser cidadão, nos termos burgueses de nossa organização social, é ter direitos e não apenas deveres. Se pagamos impostos ao Estado, deveríamos ter acesso à uma vida digna, com trabalho, estudo, saúde, cultura, lazer de qualidade. Isso sim é ter cidadania. Mas, a sociedade de consumo – principalmente dos anos 1980 até hoje – nos ensinou a reduzir o conceito de cidadania à esfera do consumo. O cidadão hoje é o consumidor feliz. Isso é uma falácia enorme, um erro que direciona inclusive as ações do governo petista no Brasil. Os pobres passam a ter um pouco mais de renda, mas eles continuam não-cidadãos nos termos a que me refiro aqui.
CM- Há uma confrontação simbólica  desses limites em marcha ?

Valquíria - Os shoppings são símbolos de uma sociedade de consumo e de abundância de bens materiais. São símbolos da lógica do “compro, logo existo”.  Forçar o acesso a esses espaços – que a periferia sabe que não lhe pertence - é um ato simbólico para dizer: “quando a gente vem aqui a gente incomoda os burguesinhos que historicamente nos desprezam”. Uma longa história de invisibilidade vivida pelos pobres no Brasil está vindo à tona com essas “invasões” dos shoppings centers.  Os pobres nunca são verdadeiramente vistos ou ouvidos pelas autoridades públicas e pelos patrões. Esses movimentos chamados de “rolezinhos” são, na minha interpretação, uma tentativa de furar a barreira da invisibilidade a que esses jovens pobres estão sujeitos na nossa sociedade de classes.

CM - Generalizar a ‘receita shopping’ para as grandes metrópoles brasileiras é tão viável quanto estender aos postinhos de saúde o padrão do hospital Albert Einstein, em SP (um shopping da saúde). Estamos diante de uma contradição insolúvel: a propaganda  adestra  o imaginário social a exigir o melhor e agora barra  quem  aderiu ao sonho?
Valquíria - O que sempre me entristeceu é ver essa crença generalizada de que pertencer ao shopping center é alcançar a boa vida. Essa é uma vitória da sociedade de consumo e um fracasso da humanidade. Os adultos, jovens e crianças de hoje foram totalmente cooptados pela crença alienada de que só é possível ser feliz assim. Discutir isso hoje é visto como ridículo, já que essa ideologia consumista transformou-se numa verdade absoluta. Propor discussões críticas da sociedade de consumo, da publicidade, do capitalismo ainda é ridicularizado pela mídia e pelos intelectuais de direita. Somos nós, os pensadores marxistas e de esquerda que devemos mostrar como esse desejo de um mundo mais justo e menos desigual deve ser elaborado para gerar ações definitivas no que diz respeito à igualdade social. Não é nada fácil. As classes dominantes são fortes, poderosas e violentas – sobretudo no Brasil.  Os pobres terão que entender que consumindo as roupas de marca e os equipamentos eletrônicos dos ricos, eles não vão conquistar a liberdade ou a emancipação.
CM—Mas é essa aspiração que os move...

Valquiria - O desejo e a posse de mercadorias nos alienam a todos. No entanto, é óbvio que, num primeiro momento, esse impulso pode parecer revolucionário. Quando eu critico a segregação social dos shoppings centers não desejo como solução que esses espaços sejam democratizados, mesmo porque eu não acredito nisso. Desejo que esses espaços sejam eliminados.
CM- Como ?

Valquíria-  Que sejam substituídos por parques, espaços de cultura, bibliotecas, cinemas, teatros, circos, escolas, tudo aberto a todos igualmente. Uma sociedade emancipada e verdadeiramente rica precisa disso, e não de shopping centers... Esse fenômeno dos “rolezinhos” não aconteceria na Finlândia ou na Dinamarca.

CM—  Essa reciclagem dos shoppings em espaços culturais seria  a utopia de um rolezinho ideal?

Valquíria -  Qualquer solução que propomos na contramão da ordem vigente tem status de utopia,  tamanha é a complexidade social. A publicidade é a espinha dorsal desse sistema. Ela é a maior descoberta e o maior trunfo da sociedade de consumo capitalista, pois consegue manipular os desejos, criar necessidades, reduzir sentimentos. E mais: ela atinge a todos da mesma forma: ricos e pobres, quem vive na cidade e quem vive no campo, crianças e adultos etc.

CM—Os rolezinhos tem fôlego para avançar nessa contestação?

Valquíria - Onde esses movimentos dos “rolezinhos” vão dar eu não sei dizer. Não sou otimista no sentido de imaginar que isso vai fazer com que nossa sociedade deixe de segregar e seja mais justa em curto ou médio prazo. Mas, acho que é um começo e a discussão que surge traz o tema da desigualdade social para a mesa.

Assim como os movimentos de junho de 2013, pode se somar a outras manifestações de insatisfação, provocando, pouco a pouco, novas formas de reflexão sobre o capitalismo e sobre nosso sistema político. Gosto de ver os pobres organizados para incomodar os ricos, forçando-os a enxergar uma realidade que eles insistem em negar ou que ridicularizam.
CM- Que resposta o urbanismo pode dar a essa revolta ainda bem comportada?

Valquíria - Na ordem do capital, não acredito em nenhuma resposta definitiva. Humanizar o capitalismo, ao menos, seria possível, mas não concordo que apenas oferecer mais políticas públicas de lazer e cultura nas periferias seja a solução, pois continua aí a segregação dos espaços urbanos, a cidade continua dividida entre espaços para pobres e espaços para ricos. Isso não é solução, é paliativo.
CM - A Justiça de SP concedeu a 6 shoppings da capital o direito de selecionar  o acesso. É um novo degrau do antagonismo público -privado  no país?

Valquíria - Os juízes que deram essas sentenças deveriam perder o direito de julgar se nosso país fosse sério e cumprisse a Constituição. É um absurdo autorizar o inautorizável. Um juiz não poderia permitir que um espaço aberto ao público pudesse segregar. Discriminação é ilegal.  Racismo é crime inafiançável no Brasil. Esses juízes deveriam ser presos. Os donos desses shoppings também.
CM - É só no Brasil  ou o padrão segregacionista se repete em shoppings de outros países também?
Valquíria - Em outros países não é assim.  Eu morei na França e no Canadá e lá os shoppings são abertos a todos, porque eles respeitam a Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Nos países em que há desigualdade social extrema, a segregação e a discriminação são mais evidentes. Os “rolezinhos” só estão causando tanto alvoroço porque somos um país de desiguais. Enquanto cada grupo fica na sua, com seus “irmãos” de classe e respeitam as fronteiras invisíveis e visíveis, não há conflitos. Os conflitos surgem quando uma das partes resolve confrontar as barreiras. Se não houvesse esse abismo entre pobres e ricos, não estaríamos discutindo isso, não é?  Sugiro que se assista ao documentário ‘Hiato’, que conta como os movimentos de sem-teto e sem-terra organizaram uma visita a um shopping no Rio. É pedagógico.
 

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